Foto: Renan Oliveira

Um dos mais respeitados documentaristas brasileiros, Silvio Tendler segue firme aos 74 anos na sua produção cinematográfica. Lançará agora em breve um filme sobre o líder Leonel Brizola, mantendo uma de suas características de pautar a política por meio de biografias. Sua obra já conta com mais de 70 filmes, alguns deles com recordes de bilheteria, além de doze séries abordando os mais diversos temas: ditaduras, meio ambiente, memória, capitalismo e socialismo, dentre outros.

Professor, cineasta e historiador, Tendler nasceu no Rio de Janeiro. É conhecido como “o cineasta dos sonhos interrompidos”, devido às personalidades retratadas nos seus filmes, como Jango, JK, Carlos Marighella e Glauber Rocha, dentre outros fundamentais à história do Brasil, por partirem prematuramente sem concluírem seus legados. Também passou por alguns órgãos da imprensa, secretarias de governos e teve uma breve carreira político partidária. Desde 2011 ficou tetraplégico, devido a uma doença grave, mas sem esmorecer recuperou os seus movimentos e ampliou ainda mais a sua produção neste período.

Na entrevista à Ninja, ele fala sobre a produção e distribuição audiovisual no Brasil, sua insatisfação com a política nacional e entusiasmo com as inovações tecnológicas no meio, além de fazer reflexões sobre a sua obra. Para ele, ainda que inconscientemente, a arte é política. Ao final da conversa, comenta também, enquanto judeu, a guerra entre palestinos e israelenses, e os desafios enfrentados hoje nos países do terceiro mundo.

Como você enxerga o cinema hoje levando em consideração que alguns filmes, como Aquarius, Bacurau, Marighela, os do Cláudio de Assis, dentre outros, tiveram certa relevância política e visibilidade nos últimos tempos?

De Pernambuco eu gosto de Paulo Caldas e Paola Vieira, são pessoas que têm um trabalho muito interessante. Ele tem um filme chamado Saudade que é espetacular, e a Paola tem uma série chamada A persistência da Memória que é muito boa também. Esses filmes a que você se referiu não são meus xodós em cinema. O Marighela tem três, sendo o meu o primeiro por volta de 2002. Ninguém falava dele na época, consegui R$ 50 mil, busquei arquivo, entrevistei gente, como os dominicanos que estavam na sua morte, o seu segurança, a Clara Charf, sua companheira, então modéstia parte o melhor Marighela é o meu. É o mais original e que melhor fala dele, que era um furacão, um cara que chegava nos lugares ocupando os espaços, um agitador.

As três maiores bilheterias de documentário são minhas: Jango (1 milhão de espectadores), JK (800 mil) e O mundo mágico dos trapalhões (1,7 milhões). Não dá para comparar com um filme de 300 ou 400 mil espectadores. Esses que você citou são de pessoas que sabem se colocar na mídia e ganhar prêmios, mas não são bons diretores. Mas existe um cinema contemporâneo muito bom, como o do José Joffily sobre o diplomata José Maurício Bustani que é genial do ponto de vista de temática, linguagem e construção cinematográfica. Ele foi na Globo News e fez mais público que todos esses citados, essa coisa de estar na mídia é muita conversa. Você tem o filme dos bicheiros feito na televisão, que estourou a boca do balão enquanto público e todo mundo comentou. Estar na mídia é muito relativo, para mim é ser visto de forma permanente porque esses filmes são de época e desaparecem.

Você comentou na entrevista com o Juca Kfouri em relação às novas tecnologias da produção audiovisual índigena, quilombola e de outros setores com suas próprias mídias. Como você tem analisado esse cenário?

Sou fã da tecnologia, tenho a cabeça formada pelos cineastas do cinema direto e verdade dos anos 60. Ken Loach, meu grande guru com o cinema político, Chris Marker com o cinema político poético e Jean Rouch antropológico. Me ensinaram a trabalhar com a economia da tecnologia, começaram com câmeras de 16mm, depois o Chris foi para o vídeo e transcodificou para o cinema. Fez um filme sobre o Chile, por exemplo, em super 8 e usou como linguagem: como se uma pessoa estivesse asilada numa embaixada e acabado de comprar uma câmera super 8, e como não tinha nada para fazer, começou a filmar a vida lá dentro. Aí ele comete todos os erros de todo mundo com tecnologia quando começa, com zoom para frente e para trás com a câmera meio perdida usando como linguagem. Esse filme A embaixada é uma aula de cinema, depois ele foi fazendo experiências. Quando fiz o Glauber todo em vídeo foi inspirado no Chris Marker, e ele fazia umas maluquices tecnológicas de contratar um artesão para fazer a transcodificação do vídeo para cinema. Conheci esse cara mas não senti confiança, então fiz com um brasileiro que também usou umas tecnologias muito loucas. Sempre gostei da menor tecnologia possível, como o celular que é maravilhoso e vou experimentando.

Vi que você estava fazendo uma experiência nova com o WhatsApp, inclusive contornando as dificuldades em relação ao direito autoral facilitando o processo…

O cine zap não tem dono, aquele material que circula gratuitamente na internet, você recebe sem saber de quem e manda sem saber para quem. Fui juntando e colando e fiz cinco filminhos. O cine zap como possibilidade de linguagem revolucionária, porque não tem direitos, não tem dono, eu não ganho nada e o cara que vai ver não tem que pagar. É arte pura, desvincula a arte do comércio e eu gosto muito disso.

Você fala que a independência é muito relativa, como você vê a questão da arte em relação ao comércio e à política no meio? Existe uma arte genuinamente autônoma?

A arte está toda dominada pelo comércio. Essa questão dos direitos autorais, por exemplo, é uma barbárie por que está cada dia mais difícil contar uma história. A cada dia um fotograma é mais caro, e isso vai fazer com que um dia o país pague um preço muito caro pela ausência de memória. As televisões hoje cobram R$ 7 mil em um minuto para se fazer um filme, a Getty Images está pegando filmes públicos alemães da 2ª Guerra Mundial, se apropriando e vendendo a mil dólares. Isso é uma loucura, é o domínio da memória. Todos que ficamos felizes quando vendemos um fotograma devemos ficar preocupados, porque amanhã você vai ter que comprar caríssimo. Como construir a memória de um país, de uma história? Daqui a pouco só a Getty vai poder contar a história do nazismo!

Nos Fóruns, debates e espaços de intelectuais e artistas o que está sendo proposto enquanto alternativa para esses desafios de produção?

Sou um dos poucos contra os direitos autorais, meus filmes estão todos livres na internet de graça. Não vou conseguir vendê-los, então prefiro dar. Quando existia DVD, via meus filmes no camelô e fazia uma fotografia e agradecia por estar divulgando meu filme. Estava ali na banca ao lado de clássicos do cinema, como do [Serguei] Eisenstein, alguns deles faziam inclusive capas melhores que as minhas. Estar nesses espaços me orgulha, não me chateia. Uma vez sai de um debate em Juiz de Fora sobre o Milton Santos, e o pessoal começou a me desviar do caminho e eu percebi que tinha umas bancas com os meus filmes. Fui lá nas bancas e agradeci por divulgarem meu trabalho, e agora os filmes estão sendo vistos. O cara vende a um preço que o sistema comercial não me permite vender, um filme me custa R$ 24 e ele vende a R$ 10. Como posso concorrer com ele?

Você citou Marighela e Milton Santos, gostaria que você falasse sobre a concepção da sua obra como um todo. Como você vai compondo esse conjunto?

Nunca entendi muito bem a minha obra. Fiz Jango e JK, daí fui viajando em Castro Alves e tantos outros. O embaixador Arnaldo Carrilho era um grande amigo do Glauber, e ele me identificou como o cineasta dos sonhos interrompidos. Primeiro ele falou dos vencidos, mas achou muito pouco e ficou assim: pessoas que não conseguiram terminar suas obras. Adotei e acho que ele tem razão.

Mas Jango e JK têm uma certa continuidade temática, vendo no todo você vai e volta em diversos temas. Tem algum método e pensamento, ou vai rolando?

Acho que todo cineasta é assim, não tem um que tenha o conjunto de uma obra amarrado numa temática. A gente vai, volta, constrói. O [Michelangelo] Antonioni era o cineasta do existencialismo e de repente inventou de filmar a China, que não tem nada a ver com a sua obra. Nenhum cineasta tem compromisso com a linearidade, e sim com a criação, inovação, pesquisa. O Vladimir Carvalho, por exemplo, é o maior cineasta brasileiro e talvez não tenha a mídia [comentada por você] que merece.Digo que ele é o João Cabral de Melo Neto do cinema brasileiro. Ele é absolutamente genial e não tem essa linearidade, tem o seu grande clássico O país de são saruê, censurado durante a ditadura, e outros sobre o Renato Russo, Teotônio Vilela e José Lins do Rego, etc.

A arte tem que ser necessariamente política? É uma obrigação a cumprir pelo artista?

Ela não tem que ser política, ela é mesmo que involuntariamente. Ela é no momento que você está fazendo e vivendo, a temática que está trabalhando. A arte é conjuntural, então tem a necessidade de responder a questões daquela conjuntura. E não é perecível, a boa arte é a que dura pelo menos 30 ou 40 anos. E você vê a geração como ela é, o show da Madonna por exemplo foi uma aula de história: a luta de uma geração dos anos 80 para assumir a sua sexualidade, lutar contra os preconceitos, contra a aids, etc. A obra é extremamente política o tempo todo. Tem uma geração hoje de homossexuais mais velhos que choram vendo um show, porque sabem que para ter essa liberdade sexual hoje houve muita luta. Muita gente morreu por causa da aids, era uma loucura, a minha geração foi contaminada e a Madona conta isso. A liberdade dos costumes, está tudo ali misturado, isso é política. Agora que estamos numa época muito careta, vemos na vida e no trabalho da Madonna o retrocesso político que estamos vivendo.

Falando em retrocesso, como você enxerga essa ascensão da direita após quase duas décadas de um governo progressista?

Acho engraçado porque no dia 01 de maio o Alckmin estava com o bonézinho da CUT, outro dia vi uma reunião do PSB e ele cantando a internacional socialista [risos]. Sacanagem com a Opus Dei, porra [risos]. A política brasileira está surrealista, primeiro eu digo que sou um utopista porque não pertenço a partido nenhum. Já fui filiado mas por pirraça, fui Secretário de Cultura do governo Cristovam Buarque em Brasília (DF) e massacrado pelo PT. Pedi para sair porque estava prejudicando mais que ajudando, e entrei para o PPS. Mas deu ruim, e depois quando o Eduardo Campos foi candidato a presidente junto com a Marina [Silva] entrei para o PSB. A Dilma me ligou cobrando e eu falei: calma presidenta, tem segundo turno. Logo depois liguei dizendo que meu voto era dela. Nessa última eleição não tinha jeito, era voltar no Lula, mas hoje quero reconstruir a bandeira socialista de verdade. Estou fazendo um filme sobre o Brizola e falando do socialismo moreno o tempo todo.

Você está fazendo essa autocrítica da esquerda, mas qual a sua leitura em relação à ascensão da direita e essa polarização?

Você acha que a esquerda não tem nenhuma responsabilidade nisso? Vamos ficar o resto da vida cultivando os nossos deuses? Aquela eleição em 2018 não poderia ser diferente se essa aliança que aconteceu em 2022 tivesse acontecido antes com o apoio do Lula juntando todo mundo (Marina, Alckmin, Ciro, etc) e fazendo uma grande frente anti fascista? O Bolsonaro teria sido eleito? Foi responsabilidade nossa, temos que falar a verdade.

O Mano Brown fez um discurso forte no último comício aqui na Lapa que deu um banho de água fria na militância nesse sentido…

Eu estava lá, começaram a vaiar ele e o Caetano o abraçou falando que ele tinha razão. As pessoas como eu, que não temos esse engajamento partidário, somos livres para falar o que pensamos. Ele é um desses que tem total liberdade, fala o que ele quer na hora que ele quer, ninguém segura.

Voltando à questão geracional, tem uma galera mais nova engajada na cultura e arte fazendo um trabalho com uma estética e linguagem de qualidade?

Foto: Renan Oliveira

Tem buscas, conheço uma garotada de Japeri que faz um teatro maravilhoso. Outro dia vi uma peça do Renato Borghi de 80 e tantos anos muito boa, o Amir Haddad também, Andréa Beltrão fez uma peça sobre a Mércia [Albuquerque], que foi advogada do Gregório Bezerra, lindíssima. Tem muita gente fazendo coisas muito boas, não não estou sozinho nessa luta não. Perguntaram ao Nelson Rodrigues qual o conselho que ele daria aos jovens, e ele falou: envelheçam, meus queridos [risos]. Acho que essa coisa de ser jovem e lúcido, batalhador, consequente, não tem essa relação, porque toda geração se constrói e ela mesma se destrói. Glauber tinha 24 anos quando fez o Deus e o Diabo na Terra do Sol, depois terminou mal. Essa coisa da arte é muito complicada você querer uma continuidade e coerência, isso não existe. A arte é mutante.

A questão da distribuição dos filmes, o fechamento das salas de rua e o fenômeno dos cinemas nos shoppings e agora os streamings, qual a sua análise?

Isso é um crime calculado, um planejamento de um homicídio. Acompanhei o surgimento dessas salas de shopping nos anos 90 e eles nos venderam a ideia de multiplicar o número de salas de cinema. Imagina 12 salas no shopping, ia ter cinema para todo mundo, e então começaram a fechar as salas de rua. As igrejas, os bancos, as academias de fitness etc começaram a ocupar os espaços, e quando mudou a gente acordou: você vai gastar R$ 100 para ver um filme? Porque a pessoa faz um lanche no McDonald ‘s, compra um tênis de marca, pipoca, refrigerante e esse filme sai muito caro. Uma administradora de sala de cinema e me disse que ganha muito mais vendendo pipoca que bilhete. Então papamos mosca, e quando vimos já era tarde, o crime já tinha sido cometido e perdemos as salas. E o streaming também com os contratos dos grandes estúdios, como a Netflix, o cara senta na ilha de montagem contigo e não te deixa fazer seu filme. Aquela coisa autoral vai para o espaço, tem uma diretora brasileira que para concorrer ao Oscar abriu mão da criatividade.

Tem um padrãozinho, uma coisa pasteurizada com condições para entrar no circuito?

Vamos dar mais ritmo, ser menos violento, e nisso a autoria vai embora. O Glauber encarou isso nos EUA quando foi fazer um filme lá, disseram que tinha que sentar com ele alguém para montar o filme. Eu não vim para hollywood para isso, disse o Glauber, ninguém senta na ilha de montagem comigo. Ele não fez o filme.

Então tem um gargalo na produção e na distribuição, e onde entra o debate de política pública, incentivo, etc? Você geralmente arruma uns apoios de parceiros, como o MST na construção do Veneno está na Mesa, como é essa questão?

É muito difícil porque sempre vai ter uma negociação, quando filmei JK, o meu primeiro filme, arranjei um maluco que botou grana. Ele falou que bancava o filme, mas não queria perder dinheiro no cinema e queria que fosse feito para o público. JK deu 800 mil espectadores, a terceira maior bilheteria de documentários brasileiros.

Você fala em entrevistas sobre o general Giap, do Vietnã, que antes de morrer falou que este século seria de paz. Mas tem alguns conflitos, inclusive o palestino, acho que nunca vi você de descendência judia falando a respeito.

O Giap é o maior herói do século XX, derrotou os japoneses, franceses e americanos. Tinha 1,5m e o Ho Chi Min pediu para ele criar um exército, porque era professor de história e sabia de guerra. Preparou ele e ganharam, era uma figura maravilhosa, conversamos mais de 1h30. Sou o único brasileiro que o entrevistou, meu orgulho pessoal. Tinha 15 dias do ultimato do Bush ao Iraque, então perguntei como ele via: estamos entrando no milênio da paz, disse. Aí ele errou solenemente, mas construiu um país que está em paz.

Acho que está tudo errado em relação a esta guerra no oriente médio, porque a guerra verdadeira é a que começou a aparecer agora com o Irã jogando drones e Israel bombas. Fica claro que o povo da Palestina está sendo bucha de canhão. Tenho uma relação muito carinhosa com o povo da Palestina, fui a Israel em 1996 com o Cristovam Buarque convidado pelo partido conservador do [Ariel] Sharon, e fomos à Palestina onde encontramos por acaso o [Yasser] Arafat. Fui a Gaza e Ramallah, onde voltei depois para entrevistar um guerrilheiro condenado a 27 anos e que cumpriu 19. Conversei também com uma grande jornalista isralense, depois voltei e conversei com combatentes pela paz: oficiais israelenses que se recusavam a bombardear Gaza, e guerrilheiros palestinos que não queriam mais a guerra. Em se tratando de guerra, o meu campo é o da paz. Escrevi muitos artigos sobre esse conflito desde 2007, quando Israel bombardeou a frota da Turquia com os alimentos, então já fui muito crítico. Sou um utopista, procurando a paz.

A gente não tratou de terceiro mundo e América Latina, que são assuntos de seu interesse.

Precisamos reconstruir um mundo que foi destruído. Frequentei muito Cuba, morei no Chile e tenho muitos amigos de muitos países. Acho o terceiro mundo a invenção mais saudável da humanidade, mas infelizmente estamos num momento de muitas ditaduras. A África hoje tem não sei quantas guerras, a América Central muitas ditaduras, aqui mesmo no nosso entorno a Argentina e o Uruguai com governos de direita. Temos que lutar pelo socialismo.