Guilherme Boulos: Meirelles e a falência da democracia
Quando o poder econômico tira e põe governos de acordo com sua conveniência, independente de quem esteja no poder, qualquer coisa parecida com democracia já não passa de abstração filosófica.
“Com Temer ou com Maia, eu fico.” Essa frase vem sendo dita por Henrique Meirelles a quem queira ouvir. Mesmo sob uma crise política sem precedentes e com a avalanche de denúncias ao sistema político do país, o ministro e sua equipe vem sendo tratados como intocáveis pelo mercado e pela imprensa. Difícil imaginar um Ministro da Fazenda tão confortável no seu posto com indicadores pífios e piora da recessão, chegando a 14 milhões de desempregados. A economia? Derrete. E a equipe econômica? Vai muito bem, obrigado.
Com qual autoridade Meirelles diz isso? Com a autoridade de quem representa o verdadeiro poder, oculto por detrás do espetáculo encenado em Brasília. O poder que colocou Temer e que, eventualmente, pode tirá-lo. Meirelles é o homem mais simbólico do mercado financeiro no Brasil, com uma ficha corrida de serviços prestados aos bancos e atestados de confiabilidade, seja como presidente do BC de Lula, seja como ministro de Temer. Afinal, é alguém de casa. Foi presidente mundial do Bank Boston, da holding J&F de Joesley Batista e circulou a vida toda nos corredores das corporações financeiras.
Por isso, mesmo com as indelicadezas do ministro – que chegou a se reunir fora da agenda com Rodrigo Maia enquanto a denúncia contra Temer era lida na CCJ – não passa pela cabeça de ninguém sua demissão. Temer sabe que sem Meirelles perde o apoio da banca, que ainda o sustenta. Assim como Maia sabe que, para ser o Temer do Temer, precisa de Meirelles como lastro de continuidade. Daí o ministro poder ser tão escrachado em suas manifestações públicas.
Isso diz muito sobre a democracia, ou sobre a falência dela. Quando o poder econômico tira e põe governos de acordo com sua conveniência, quando mantém seus lugares-tenentes independente de quem esteja no governo, bem, neste caso, qualquer coisa parecida com democracia já não passa de abstração filosófica.
A soberania do voto popular está, cada vez mais, em contradição com o regime de acumulação selvagem imposto pelo sistema financeiro. O golpe de 2016 foi expressão genuína desta sanha: sequer estavam com seus interesses ameaçados pelo governo Dilma, mas pretendiam uma marcha de retrocessos que sabiam incompatível com um governo eleito.
Registre-se, esta é uma tendência mundial. Governos do mundo todo são reféns das agências de risco, as mesmas que assobiavam tranquilamente até a manhã do dia em que faliu o Lehman Brothers em 2008.
A chantagem financeira faz com que, em várias partes, o povo vote contra a austeridade e leve… austeridade: como no fatídico caso do plebiscito grego deslegitimado pela troika. A maioria dos governos aceitam sua condição subordinada, abandonando a política que os elegeu e rejeitando qualquer enfrentamento. O resultado é que a soberania popular vai à lona e, com ela, a consideração das regras democráticas mais formais.
Daí não haver grande assombro quando Meirelles expressa a todos sua condição. Daí o maior jornal econômico do país publicar, sem estranhamento, uma manchete que diz que “eleições podem atrapalhar as reformas”. Ora, não seria essa a confissão de que as reformas exigidas pelo mercado são incompatíveis com a democracia?
Depois se surpreendem quando o povo revela sua descrença no sistema político, quando busca outsiders, quando crescem as abstenções. Nada mais natural que as pessoas não se sintam representadas por uma política que não as representa. O caminho difícil é evitar que este sentimento seja canalizado para a busca de salvadores e capturado por discursos intolerantes e anti-populares.
O desafio, mais que nunca, é orientar a legítima indignação para projetos coletivos de resgate da democracia e sintonizados com o interesse das maiorias.