Mas você é pobre, disse o menino
Dá pra ver mesmo um lado bom “pra gente” nessa reforma trabalhista..
A CLT como um “dinossauro” é um bicho enorme entalado na minha goela desde sempre. Já tentei desentalar na universidade, escrevi sobre isso, pesquisei cobertura da mídia sobre isso, dei aula, me joguei em banca de concurso pra fazer pergunta disso pros meus futuros atuais colegas de carreira, conversei com quem estuda isso há muuuitos anos, fui atrás de quem dá seu lombo pra carregar esse bicho.
Nesse turbilhão de porradas dos últimos meses, não sei como, tenho feito algum esforço de escutar quem pensa diferente. Tenho escutado os amigos que são a favor da recente reforma trabalhista. E tenho lido e relido os textos que enxergam alguma modernização na flexibilização de regras sobre jornada, salário, demissão, enfim, sobre os pontos centrais da relação entre patrões e empregados.
Depois de muito escutar sobre “o valor da liberdade de negociação”, sobre a ampliação de possibilidades de contratação com “formatos mais modernos e dinâmicos”, lembrei de uma história que escutei de uma amiga, companhia agradável, profissional que admiro, mas de cujas opiniões políticas sempre discordei bastante, pelo viés liberal. (Liberal no sentido respeitável da expressão, tá gente? Não se trata da direita escrota bolsomítica, de jeito nenhum.)
A história que ela contou era de um diálogo com seu filho de quatro anos de idade.
Pra que não levássemos a mal o pequeno (aquela criança carismática, linda e inteligente pela qual me derreti assim que conheci), ela começou explicando que o seu filho adora a babá. Todos os dias ela dá banho, desce pra brincar no parquinho, cozinha as comidinhas preferidas dele, cuida da roupa, limpa o quartinho de brinquedos. Ele não desgruda dela.
Por isso o diálogo assustou a mãe, que nos contou a história numa mistura de perplexidade e tristeza:
_ Filho, tá na hora de concentrar pra fazer o dever de casa, deixa o brinquedo naquele cantinho um pouco.
_ Não quero parar de brincar.
_ Filhinho, tá tarde. Amanhã cedo não vai dar tempo de fazer o dever. Senta aqui que vou ler pra você o exercício. Você precisa fazer.
_ Quero não. E não preciso.
A babá, ajeitando as coisas pra ir embora, tenta ajudar a mãe no convencimento: Querido, precisa sim. Todo mundo tem que cuidar dos seus deveres. Pensa bem, eu acordo cedinho, venho de ônibus láááá de longe, trabalho o dia todo sem parar, cuidando de você e da casa. Agora to indo pra escola, lá onde passo todas as noites estudando pra um dia, quem sabe né?, conseguir um emprego melhor. Quando a noite tá quase acabando, pego o finzinho que resta pra voltar pra casa, de ônibus que vai looooonge até minha cidade. É cansativo, tem muito dever, mas assim é a vida. A gente precisa.
_ É diferente, eu não preciso como você, explica o menino, sem agressividade, no tom de voz tranquilo de quem sabe que está coberto de razão.
_ Todo mundo precisa sim, a babá insiste.
_ Mas você é pobre, disse o menino. Então é diferente.
Em cada papo sobre as garantias “retrógradas” e “engessadas” que a reforma trabalhista extinguiu, tento dizer aos amigos liberais que, para a imensa maioria dos milhões de trabalhadores brasileiros, não existe qualquer condição real de usufruirem de “liberdade” pra negociar com seus patrões ou de escolherem ser contratados em modalidades “mais modernas”.
Em vez de retirar garantias e direitos dos 40 milhões de brasileiros com carteira assinada, maximizando a capacidade de exploração do trabalho, deveríamos lutar para inserir os outros milhões que estão fora do mercado de trabalho formal. E visibilizar a profunda diferença das relações de poder entre patrões e profissionais estudados de alta remuneração (médicos, advogados de escritórios chiques, gerentes de grandes empresas, por exemplo) comparadas às relações de poder entre patrões e todos os demais (imensa maioria) de trabalhadores.
Não tenho conseguido sensibilizar ninguém e fico frustradíssima, porque sou uma otimista patológica, me diz meu irmão. Mas aí me lembro da história da babá. É diferente porque eles são pobres.
Então tá tudo natural, dá pra ver mesmo um lado bom “pra gente” nessa reforma trabalhista.