Margarida Salomão: O grito surdo nas urnas
Em um cenário político sem Lula, as intenções de voto nos outros candidatos não aumentam. O que isso significa?
A análise de Mauro Paulino e Alessandro Janoni, sobre o Datafolha divulgado no último dia 31 de janeiro, é de uma profundidade raras vezes vista na mídia convencional. Os pesquisadores acertam ao pontuar que o principal dado do levantamento está no inconformismo daqueles e daquelas ante a uma eventual ausência de Lula nas eleições presidenciais de 2018.
Pudera, os números da pesquisa são bastante eloquentes. Mesmo enfrentando sucessivos ataques, Lula lidera, e com folga, em qualquer cenário. Ratifica-se a força do ex-presidente enquanto desmistifica-se a cruzada legal/moral que enfrenta, movida pela Lava-Jato. Mesmo a encenação do julgamento de Porto Alegre não foi capaz de alterar a convicção da população sobre sua inocência.
Retirado seu nome, contudo, nenhum dos outros candidatos cresce. O que há é um aumento significativo – e simbólico – das intenções de voto branco ou nulo. Argumentam Paulino e Janoni, a “possível inelegibilidade do ex-presidente aprofunda a crise de representação no cenário político e lança ainda mais incertezas sobre o pleito deste ano”.
Estão corretos os pesquisadores. Falta, contudo, pontuar historicamente esse fato, bem como ampliar o escopo de seu significado.
Na prática, o que a eventual ausência de Lula fará é que se repita fenômeno já notado nas eleições de 2016, quando o esgarçamento do debate público – provocado seja pelo comando de caça firmado entre o juizado de Curitiba e setores do Ministério Público, seja pela incapacidade de candidatos e partidos apresentarem alternativas políticas efetivamente viáveis – fez com que o número de votos brancos, nulos e abstenções alcançasse índices inéditos.
Novamente, temos aqui números eloquentes. Na eleição da cidade do Rio de Janeiro, mais de dois milhões de pessoas deixaram de dirigir seu voto a um candidato – Crivella acabou eleito com 1,7 milhão de votos. Em São Paulo, o total de brancos, nulos e abstenções foi também superior à votação de Dória. O mesmo repetiu-se em cidades como Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre.
Em tempos recentes, a comunidade de intérpretes da sociedade busca motivos que justifiquem a ausência de protestos de ruas mais potentes contra os atuais governantes – Temer à frente de todos os demais.
Não há silêncio, mas um grito surdo.
A seu modo, a sociedade demonstra seu inconformismo com a trajetória recente da democracia brasileira. Democracia em conceito amplo, devendo aplicar-se às demais instituições nacionais.
Às intenções de voto nulo, branco ou de abstenção, devem ser somados os irrisórios índices de confiança da população nas instituições brasileiras. Levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de outubro de 2017 já apontava para a baixa credibilidade do governo federal, Congresso Nacional, mídia, partidos e igrejas.
Nesse rol, insira-se com destaque as instâncias do Poder Judiciário. Segundo a pesquisa da FGV, são as que registraram maior queda de confiança entre todas as instituições elencadas.
Índices que tendem a aumentar, tanto pelo escárnio do julgamento de Porto Alegre, como por um eventual descarte de elementos do Poder Judiciário enquanto instrumento para a instauração das bases da pós-democracia no país.
Não surpreende que os “escândalos” mais recentes, sobre o recebimento de auxílio-moradia, envolvam membros dessa instituição e alcancem mesmo Sérgio Moro. Cumprido o papel, o de condenar Lula, tornou-se dispensável. Marcelo Bretas haveria de ser apenas boi de piranha.
Não que o Judiciário deixe de ser o esteio da pós-democracia. Seu papel ainda é fundamental, seja para que regras e garantias operem segundo as necessidades do neoliberalismo, seja para que tais infrações passem desapercebidas, dando a impressão de que “as instituições continuam funcionando”.
(Eis, em poucas linhas, o roteiro do golpe de 2016.)
Ao cabo, contudo, institui-se um jogo de perde-perde, que retroalimenta o pessimismo quanto a democracia e suas instituições.
Tome-se o próprio Poder Judiciário. Sua versão de verniz legitimador do neoliberalismo faz com que a Justiça do Trabalho brasileira venha sendo dia após dia esvaziada, em poder e em importância – algo reforçado pela recente reforma trabalhista de Temer.
Não é sem sentido, portanto, que alguns políticos vociferem pela sua extinção – o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, sendo um exemplo emblemático.
Movimentos tectônicos, subterrâneos e por vezes quase imperceptíveis, justificam tsunamis. São as ondas gigantes que provocam a devastação, mas é o discreto acomodar de solos quem precipita a destruição.
No Brasil dos dias atuais, esses pequenos sismos compreendem todos os breves ataques à ordem democrática no país. O tsunami que vivemos advém da própria pós-democracia e de seus fenômenos associados. Terra arrasada é terreno fértil para o neoliberalismo.
Só há superação deste cenário legitimando-se a democracia brasileira mais uma vez. Um novo pacto há de ser formado, pacto esse calcado no suporte popular em torno de um programa de efetiva reforma do Estado – algo que vai além de uma simples reforma política, portanto.
O esteio para tanto nos remete mais uma vez ao Datafolha. É em Lula que repousa a confiança popular. É ele o vértice de uma aliança a ser construída, que terá a responsabilidade histórica de reconquistar e aprofundar a democracia no país.
Por isso gritamos que eleição sem Lula é fraude. Por isso insistimos em sua candidatura à presidência. Por isso ainda haveremos de muitas vezes ocupar as ruas. Por isso ainda haveremos de alcançar vitória.