Marchando contra a insensatez
Neste primeiro de maio em que combatemos o funeral de nossos direitos proposto pelo governo ilegítimo que assola o Brasil, fazemos também o chamado a outra luta. Pela ciência, pela democracia, pelo planeta, pelos nosso direitos. Marchemos.
Os tempos difíceis que vivemos não são privilégio do Brasil. O conservadorismo obscurantista vem dando as caras em todas as partes do mundo, sob diferentes formas de expressão. Xenofobia contra refugiados na Europa, o propósito de “civilizar os índios”, expresso essa semana por um deputado no plenário da Câmara, a violência contra o turbante de uma jovem negra em plena festa de formatura universitária! Sem contar as ameaças de conflagração mundial postas pelos rompantes belicistas do governo americano.
A era Trump é, literalmente, uma ameaça global, potencializada pela hegemonia americana sobre a imaginação mundial.
Nem em nossos piores pesadelos suporíamos ter que enfrentar a invasão dos Robocops. Trump trouxe de volta o nacionalismo na sua expressão mais estreita: vide o muro contra a imigração latino-americana; ou a defesa dos empregos industriais, que a financeirização da economia americana exportou, às expensas dos cuidados ambientais.
É neste contexto que se explica sua investida contra a ciência, a campanha de desmoralização das pesquisas sobre mudanças climáticas, posta em prática desde o período eleitoral. Deslegitimar esse tipo de ciência é condição necessária para o sucesso de uma estratégia econômica e geopolítica que combina truculência com a necessidade de legitimação imediata pelo senso-comum.
Insurgindo-se contra isso, a Marcha pela Ciência ganhou as ruas nos Estados Unidos, no Brasil, na França, em muitos países, no último dia 22 de abril. Mais do que denunciar a retórica de Trump, tais manifestações procuraram demonstrar a condição basilar das ciências na enunciação do mundo moderno. Inclusive como expressiva da diversidade de perspectivas e de concepções sobre este mesmo mundo.
Não cabe dúvidas sobre o papel das ciências na alavancagem econômica das sociedades.
Contradizendo fundamentalistas como Malthus, a evolução das ciências agrárias permite que a população mundial toda se alimente. Como a evolução das ciências da saúde permite virtualmente a todos a expectativa de alongamento da vida. A falta de comida e a falta de saúde não se devem a insuficiências materiais clássicas: devem-se sim a um deficit ético na distribuição da riqueza do mundo.
E sobre o entendimento dessa deficiência social também a ciência muito tem contribuído. Retrocedendo a Kant, espera-se da interpelação científica uma superação da “menoridade” a que nos reduz todo dogmatismo; um “esclarecimento” da desigualdade social que nos agrilhoa, mas cuja superação temos capacidade de imaginar e de construir.
Fazer ciência é um eterno romper limites – inclusive nossos próprios limites. Não há efetivo avanço civilizatório se a própria ciência aceitar o inaceitável. O que exige na cena científica que se manifeste a pluralidade das vozes. Temas sociais como gênero e raça requerem que haja pensadores e pensadoras que a eles se dediquem reivindicando sua própria experiência, seu próprio sofrimento.
Por essa razão também, é criminoso o contingenciamento de 44% do orçamento brasileiro para ciência, tecnologia, inovação. Não apenas por ameaçar projetos em andamento. Mas por retardar e dificultar a expansão inclusiva de novos pesquisadores no horizonte da ciência brasileira, horizonte que cresceu exponencialmente nos primeiros anos deste seculo: vide o artigo de Nader e Davidovich no portal da SBPC “Ciência Brasileira: os últimos suspiros?”.
Neste primeiro de maio em que combatemos o funeral de nossos direitos proposto pelo governo ilegítimo que assola o Brasil, fazemos também o chamado a outra luta. Pelo gesto irreverente de Galileu ultrapassando a visão comum com seu telescópio. Pela defesa de Kant à ousadia da razão. Pela convocação de Marx a todos os oprimidos do mundo.