Marcelo Amaro lança seu quinto disco de samba com muita ancestralidade e religiosidade
Nascido e criado em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, ele apresenta neste disco um pouco da ancestralidade rítmica das suas origens.

O cantor, percussionista, compositor e educador musical Marcelo Amaro chegou aos 50 anos lançando o seu quinto álbum, Axé do Canjerê. Ele tem se destacado nas rodas de samba e na cena artística carioca há mais de 20 anos, e traz nessa nova obra uma reverência às religiões de matriz africana. No dia 26 de setembro as músicas estarão disponíveis nas plataformas digitais.
Nascido e criado em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, ele apresenta neste disco um pouco da ancestralidade rítmica das suas origens. O álbum conta com parceiros da sua cidade natal, e coincide com o tema do samba enredo da Portela em 2026, que fala sobre negritude e raízes no Rio Grande ao resgatar o mistério do príncipe bará.
Na entrevista à Ninja, ele conta mais detalhes sobre o lançamento e os desafios que os sambistas enfrentam no mercado fonográfico. Fala também sobre racismo, a importância do protagonismo do negro no samba e as dificuldades de produzir as rodas nas ruas da cidade. Segundo ele, as mudanças sempre vêm e o samba é uma espaço democrático para todos, mas é importante nunca perder de vista sua origem e respeitá-la.
Conta um pouco da sua história no samba carioca.
Nos anos 2000 vim morar em Santa Teresa, então descia para o samba da Feira da Glória. Ali conheci Paulo Franco, Lula Matos, falecido Edson Cortes e toda a rapaziada dessa nova geração. Comecei trabalhando no carnaval aqui nos Arcos da Lapa no projeto Palcos da Cidade, onde conheci o Galocantô, o João Martins e toda essa rapaziada aí da cena. Comecei a tocar com o grupo como músico de apoio, e acompanhei dezenas de artistas: Mestre Monarco, Wilson Moreira, Seu Walter Alfaiate, Xangô da Mangueira e tantos outros bambas. Toda terça tinha o almoço no Beco do Rato, a gente fazia uma comida e depois começava a roda desplugada e com músicas autorais. Vi nascer ali muitas músicas, todo o repertório do primeiro disco do Galocantô aconteceu na Feira da Glória e nessa roda do Beco do Rato. Íamos pras rodas de samba no subúrbio também. Nossa rapaziada está colhendo os frutos de uma caminhada muito bonita, né? De muita verdade, e as composições não param de surgir. Me tornei compositor a partir disso e em 2016 fiz o meu primeiro álbum. Tudo é fruto desse acolhimento, dessa troca, da força do samba urbano carioca.
Em que contexto chega agora esse teu novo álbum?
É uma celebração, uma questão mais da maturidade, e também vem muito forte nesse álbum a religiosidade de matriz africana do Rio Grande do Sul, da diáspora africana no Brasil. É uma forma de falar que precisa ter respeito à nossa religião. São muitas delas no Brasil e vivemos um momento de intolerância. Desmistificar a questão do Exú e também trazer outros elementos, porque no Rio Grande do Sul tem o batuque das nações Oyó,, Jêje, , Ijexá e Cabinda. Desde o meu primeiro álbum em 2016 venho falando dessa cultura afro-brasileira e no álbum Afro Gaúcho tive oportunidade da participação do João Donato. Me fascina muito conectar com o continente africano, trazer as minhas raízes com o meu DNA. Entender mais a região da Costa da Mina no: Benin, Senegal, Costa do Marfim, etc.
Modéstia parte, posso dizer que sou hoje um porta-voz da minha cultura negra do Rio Grande do Sul aqui e no mundo . Trago, por exemplo, o tambor de Sopapo, que tem um metro de altura e está neste álbum. O Onilu, que é utilizado no batuque e no Xangô de Pernambuco. O xequerê que tem aqui e no Maracatu, no batuque do rs chamamos de Agê, e é tocado deitado na mão. Então hoje talvez com mais maturidade consigo falar de onde eu vim de fato e entender a minha missão na música . Meu pai nasceu em Pelotas e encontrou com a minha mãe em Porto Alegre, e é de lá que aportam os negros sequestrados. Minha avó paterna foi uma Iyalorixá então tenho essa ligação muito forte com as religiões de matriz africana e desde criança uma personalidade muito forte com relação à negritude mesmo que ainda intuitivamente. Tenho um projeto de musicalidades e sonoridades chamado Canjerê do Amaro desde 2017 no qual traduzo a relação com o axé, religião da energia vital, da saúde, do vocabulário do tronco linguístico yorubá, com o Canjerê, que é uma palavra de origem do tronco linguístico Banto, que significa cerimônia e celebração.. O projeto reverbera toda a ancestralidade africana que habita em mim.
Você já me falou uma vez que tem dezenas de instrumentos de percussão em casa, conta essa necessidade e estudo a respeito da ancestralidade.
Tem coisas que a ancestralidade não tem como explicar muito. Com 5 anos de idade já batucava na panela e baldes da minha mãe tudo que escutava nos discos. Isso veio de uma forma muito natural. O meu avô era músico, não cheguei a conviver com ele, e essa questão da música e ancestralidade está muito ligada aos meus avós de Pelotas. A questão da religiosidade vem da minha avó, que veio morar com a gente. Comecei a partir de um tantã que ganhei de aniversário, aí fui comprando, ganhando e estudando os instrumentos. Fui praticando e hoje tenho cerca de uns 40 instrumentos. Uma coisa que sempre me chamou atenção foi os efeitos, então gravei muitos discos, como o do João Martins e do Renato da Rocinha.
Comecei a tocar profissionalmente com uns 17 anos em Porto Alegre, depois começo a estudar música e pesquisar ritmos. Vou parar na Europa, num festival de música em Genebra na Suíça, onde foram vários artistas gaúchos, que a gente chama de MPG – Música Popular Gaúcha. Sai de lá para estudar no conservatório Souza Lima, em São Paulo, e no caminho passei pelo Rio e desisti de tudo para realizar meu grande sonho. Se eu morrer amanhã, estou feliz pra caramba, porque conheci muita gente da música que nem imaginava bater papo e gravar. No Rio você está muito próximo dos seus ídolos, mas tem que ter os pés no chão. Quando comecei a compor entendi o que queria, mas gosto de dar aula também, então minha grande missão é ter uma escola de percussão e estou trabalhando para que isso aconteça.
Você acha que a galera dá mais valor lá fora do que aqui à nossa música de raiz?
O samba é uma cultura, é muito amplo. Quando falam assim: pô, o samba tem que ser igual ao sertanejo. Primeiro que é cultura daqui do Brasil e não trabalha com algum negócio como o agro. Enquanto gênero musical, a gente não toca na rádio de segunda a sexta, só na hora do churrasco no fim de semana. E qual artista independente toca nas rádios? A discussão é que o Rio é uma cidade de samba urbano e está no mundo inteiro. Estamos falando das maiores letras de música do mundo, se você considerar Chico Buarque e Cartola, por exemplo. A Bossa Nova( que é um estilo de Samba) foi beber nessas fontes, em gênios como Pixinguinha. O samba nunca vai morrer, mas a gente não consegue avançar enquanto dita nova geração, que já não é mais nova há muito tempo. Tem um apagamento, que é interessante para quem? Pras plataformas, porque quando você não tem playlist nelas tem que subir uma música com um pagode, você já está fazendo um apagamento desse gênero. Bota o subgênero para vender mais, ter mais lucro. A Beth Carvalho falou em uma entrevista que o nome do pagode foi deturpado, porque era interessante para as multinacionais.
Não temos espaço nessas plataformas e nas rádios, por isso as rodas de samba são o nosso meio de comunicação. Se um compositor não pode cantar um samba inédito, autoral, numa roda de samba, ele tem que fazer a sua roda e criar o seu próprio espaço. Tem que se reinventar, não é só se organizar, mas se entender. Quando falam que a roda de samba desplugada não é vendável, não é para quem? Tudo que está na internet é vendável. Precisamos ter o protagonismo do samba. Todos os artistas da música brasileira vêm beber da fonte dele, isso é maravilhoso, só que a gente não consegue viver no samba. Vejo vários artistas com potencial gigante que não têm espaço.
Mas há uma efervescência cultural do samba, um mercado com rodas e casas que tocam samba todo dia na cidade. Tem inclusive segmentações, como algumas rodas mais direcionadas a certos públicos de acordo com o local, etc.
O Rio sempre teve uma característica muito interessante de ter muitos sambas. Tinha um samba na quarta-feira no Mourisco em Botafogo por muitos anos que o irmão do Reinaldo fazia, o Negão da Abolição, e eles conseguiam retomar esse samba do subúrbio para cá com muita força. Tinha as pastoras que cantavam na primeira fila da roda e algumas músicas autorais, era maravilhoso. Tinha o Terreiro do Galo na quadra da São Clemente que também pegava fogo, aí aconteceu no Samba da Feira a vinda de muitos compositores do Pagode da Tia Ciça, em Irajá, do Cacique de Ramos, Tia Doca.
Agora vivemos um momento que a internet é que vai ditando qual é o samba mais hypado. Hoje tem uma retomada do centro da cidade com essa questão dos centros culturais, isso é maravilhoso para o Rio e os músicos. Contudo, não conseguimos avançar na questão da remuneração. As rodas de samba que acontecem nas praças têm muita dificuldade, porque para tocar precisa investir uns R$ 10 mil. No samba você tem que garantir a estrutura primeiro e não dá para muita gente conseguir esse dinheiro. O Terreiro de Crioulo em Realengo consegue dentro dessa comunidade reacender de uma maneira muito brilhante um espaço, fazer um QG com samba mensal e a partir dali tocar em outros estados e bairros. O Samba do Trabalhador, no Renascença, e o Cacique de Ramos mudaram seu público, que hoje é bem turístico, assim como no Beco do Rato. E o público carioca está buscando a rua, se encontrar num lugar onde o samba acontece nas praças e o público já não é mais aquele nosso antigo ( envelhecemos rs). Temos que entender esse lugar: o samba é de todo mundo, mas tem uma origem e as pessoas têm que ter essa consciência. É totalmente democrático, o gênero que agrega todas as etnias e classes sociais, mas tem toda uma história de sua origem africana que precisa ser respeitada.
Outra questão é que se religião o samba não existiria, para mim é muito simples. O Pixinguinha cantava e compunha macumba, por exemplo. Ah, mas ele tocava choro, um sax lindamente, etc, só que tinha macumba na sua musicalidade . Seu Getúlio Amor e Eloy Antero gravaram um disco em 1920 só de macumba, então isso a gente não pode separar. Martinho da Vila vem e faz um disco respeitoso sobre a umbanda, Festa de Umbanda e depois fez um só de candomblé, Festa de Candomblé em homenagem às suas raízes, então precisamos assumir a nossa negritude. Enquanto viver de mentira o Brasil não vai andar, só seremos uma nação se todo mundo se respeitar.
Fale mais sobre o seu novo disco, Axé do Canjerê
O álbum Axé do Canjerê retrata bem o protagonismo do negro brasileiro e afrodiaspórico no geral, porque traz elementos da percussão de matriz africana e letras de orixás. A mitologia africana , e enaltece também as mulheres negras. São sete faixas, o número de Bará, Exu. Os arranjos são do Daniel Delavusca que divide a produção musical com Tuti Rodrigues. O disco fala bastante sobre o batuque do Rio Grande do Sul, mas também do samba urbano ao do Recôncavo Baiano.. Toda a pesquisa que venho fazendo há anos. A gente está falando do extremo sul do Brasil até o interior da Bahia com essa linguagem de prato e faca. A Aliança da Paixão é uma música romântica, que fala sobre o amor entre dois orixás, tipo uma mulher de Iansã e um homem de Ogum. Traz a beleza e importância da mulher, já que o samba e o candomblé são matriarcais. O samba com todo o seu machismo, ele é conduzido por mulheres. O Monaco sempre contava muitas histórias, e falava que as mulheres é que decidiam que samba que ia ganhar, se era bom ou não.
Você tem a Tia Ciata e tantas outras lá na origem do samba carioca…
Isso aí,na casa dela e de tantas outras tias baianas que tudo aconteceu. Tenho um samba falando sobre isso, o nome inclusive é Tia Ciata, que fala de outras tias baianas que estavam ali e que, inclusive, tocavam percussão. Tem um livro que fala que a mãe do João da Baiana tocava pandeiro, por exemplo. É muito bom esse movimento de mulheres, de alguns grupos instituídos só por elas, mas ao mesmo tempo acho que em algum momento precisa ter um contato para trocar ideias e tocar junto. Isso vai fazer com que a gente se fortaleça e pense e aja como movimento. Estão surgindo várias mulheres canetando, elas estão nessa busca justa de ocupação de espaço, de território. Um grande exemplo é o movimento das mulheres sambistas que tem como frente a produtora executiva Patrícia Rodrigues. Acredito piamente que é urgente um seminário sobre a cultura do samba na cidade do Rio de Janeiro. A capital do Samba.
É um ato político esse álbum também, no sentido de trazer essa identidade e ancestralidade?
Sim, esse álbum é também um ato político. Ele nasce do desejo de afirmar a identidade e ancestralidade da cultura afro-gaúcha, mas também de enfrentar a intolerância religiosa e o racismo estrutural. O repertório não está apenas para combater o racismo religioso: ele reafirma o protagonismo do povo negro no samba. O samba é de todos, mas é fundamental reconhecer de onde ele vem, cultuar nossas origens africanas, nossos orixás e nossas histórias.
Muitas vezes, grandes músicos e cantores negros não conseguem espaço ou reconhecimento, porque o racismo cria barreiras invisíveis. Há um embranquecimento evidente nas rodas, quando quem toca e canta bem não é chamado. Esse apagamento faz muitos desistirem da música e empurra muita gente a buscar o que chamo de quilombo urbano — um espaço de identidade, de fortalecimento entre pares, para não se perder o sentido comunitário e ancestral do samba.
O Rio de Janeiro é uma cidade partida, e isso se reflete também na música. Basta ver o preconceito linguístico: quando falam em “sambinha”, já sabemos a conotação. Ninguém fala “roquinho” ou “sertanejinho”. Esse rebaixamento simbólico faz parte do processo de exclusão. Além disso, o mercado tem privilegiado um samba “hypado”, mas com pouco espaço para a música autoral. É preciso olhar para o público e trazer para ele o que realmente pulsa nas nossas.
Temos uma nova geração potente de autores — como Hugo Ojuara, Viny Santa Fé, Marina Iris e Aos Novos Compositores — que está abrindo caminhos. O Viny, por exemplo, canta com muita propriedade sobre questões sociais, políticas e raciais. Isso mostra que o samba, assim como o hip hop, precisa dialogar mais com a juventude, falar da violência cotidiana, da guerra civil não declarada que a gente vive.
Wilson das Neves gravou um samba que já dizia: “O dia que o morro descer e não for carnaval, ninguém vai ficar pra assistir o desfile final”. O samba sempre se reinventa, traz inovação, mas sem perder de vista que não inventamos a roda: estamos dando continuidade a um legado que precisa ser respeitado, valorizado e transmitido.