Sábado, 6 de setembro de 2025, 22h10. Sentei pra ver o filme como quem tinha acabado de comer uma cumbuca de farofa de banana — com um gosto agridoce na boca. E apenas um prato de origem afro-indígena poderia me abraçar agora. Como me preparar para ver um filme que se passa na época da escravidão e retrata uma revolta “que não foi bem-sucedida” para o meu povo?

Eu já passei por experiências parecidas diversas vezes. Toda vez que tento consumir, em formato audiovisual, conteúdo da era da escravidão, sou tomada com completa dor, raiva, ira e, por fim, uma solidão coletiva. Parece que tocam com o dedo uma parte doída do meu DNA que fica pulsando por horas. Na sala de aula, na sala de cinema, na sala de casa, no chão da sala — nenhuma dessas salas consegue evitar como meu corpo se encolhe ao som da chibatada.

E vamos começar por aí. A presença do islamismo no filme, em coexistência com o que entendo ser o candomblé, o torna um dos melhores personagens do filme. Meus dedos, viciados no Google, se encontraram com o retrato dos iorubás islamizados e me renderam pesquisas que vão durar uma vida para entender as mudanças entre o que vi na tela e o que vejo hoje: homens e mulheres orando juntos, mulheres que não se cobriam de forma restritiva e muitos outros traços que eu erroneamente assumia como “raiz”.

Mas a curiosidade cinematográfica vence qualquer um desses traumas. Afinal de contas, como dizer não para os Pitangas juntos, dirigidos por Antonio, num longa sobre um dos maiores levantes urbanos de escravizados da história do Brasil? Liderado por negros muçulmanos, ainda por cima? Não tem como.

Foi um toque bem dado para que eu aprendesse que o islã, assim como todas as religiões, é algo vivo, cultural e (bom, esse já sabemos) fruto do seu momento político. Mais uma vez, vemos como o capitalismo e o colonialismo levam o que de melhor temos entre nós. Mas não se preocupem e fiquem atentas — Edvana Carvalho vai fazer a pergunta que todas nós queremos fazer aos homens islâmicos.

Aos poucos, o amargor da aula de história contada pelos vencedores vai se dissipando ao entender que a história que se desenrola é sobre as possibilidades e tudo que de fato a revolta significou. O ensino da leitura, a liberdade religiosa, a troca de saberes, os bolsões de liberdade, a construção dos quilombos, as faíscas dos forros — tudo serve pra gente se orgulhar mais do caminho que percorremos até aqui.

E fica mais uma aula. Porque, como gritou-se no filme: “Hoje é dia de matar branco!”. É uma provocação direta à branquitude. Um lembrete de que a dívida é, sim, histórica. De que não se trata apenas de políticas públicas ou reparações materiais, mas de uma violência simbólica e estrutural que se prolonga há séculos. Tá aí, escancarado na tela.

Já para nós, é um lembrete de que é hora de matar o branco que nos habita. A descolonização passa por não mais se adequar a padrões eurocêntricos de beleza, comportamento, sucesso, mas também por entender que negros somos muitos: de etnias, traços, línguas e religiões diferentes. E seria impossível que essas mudanças não descendessem junto com os tons de pele.

Essas diferenças aparecem brilhantemente várias vezes, com Camila Pitanga, Samira Carvalho, Heraldo de Deus, Rodrigo de Odé e Rocco Pitanga nos conduzindo por esses momentos: quando temos que fazer a escolha de Sabina entre nossa família e uma distante liberdade coletiva; quando nossa ideia de amor romântico é confrontada por Abayome, grávida em meio à fuga; quando Vitório questiona se vale a pena ser livre quando seus iguais ainda têm grilhões no pescoço; quando Ahuna constrói um plano que inclui se humilhar, sabendo o que estava em jogo no futuro; e quando, todos juntos, nos unimos a Dassalu para vingar mais um estupro.

Falando em violências, é importante acenar para as escolhas desse filme. Gritos, sangue, cicatrizes e contraplanos são utilizados para que, para além do gráfico, ela sirva para contar uma história. Escancarar o horror em uma medida desconfortável o suficiente para que as cenas sirvam como elemento narrativo — e não simples pornografia da miséria.

E a sequência final é um abraço. Apesar de linda, não é um “aceno de esperança”; é a representação da vida possível que alcançaram. E funciona porque não é única: os reencontros entre beijos e abraços, o sexo como instrumento de cura, a mesquita erguida em trabalho comunitário e até a vingativa cena de Patrícia Pillar com a Máscara de Flandres constroem um mundo que expressa o resultado de 20 anos de pesquisas feitas por Manuela Dias, criando uma delicada rede de proteção que nos leva até o fim. 

Terminei de ver o filme à 00:04, primeiros minutos do Dia da Independência do Brasil. E então, ao invés de sentir meu código genético estremecer, me conectei com o poder do cinema de ressignificar as coisas.

“Malês” não é sobre uma revolução frustrada.
“Malês” é uma aula de história, filosofia e sociedade para todos nós que estamos de ouvidos e olhos abertos.
E me acalenta saber que, pelo menos, vivemos numa época da cultura brasileira onde o presidente já assistiu essa lição.

Agora, todos os povos podem assistir juntos no dia 2 de outubro.