Mães não existem
Qual a sua mãe favorita? Dessas de mentira, que conhecemos na ficção. Mas que, obviamente, se conformam e se inspiram nas práticas e costumes da realidade. As listas, neste domingo das mães, já apareceram.
Por Clayton Nobre, Mídia NINJA
Qual a sua mãe favorita? Dessas de mentira, que conhecemos na ficção. Mas que, obviamente, se conformam e se inspiram nas práticas e costumes da realidade. As listas, neste domingo das mães, já apareceram.
Em outro Dia das Mães citei Zana. Ela ainda é uma das minhas preferidas, a mãe de Omar e Yakub, os Dois Irmãos. É pela vontade ansiosa de ter filhos, à revelia do próprio marido, que Zana conduz toda a narrativa do trágico romance de Milton Hatoum. O amor incondicional que passou a despejar nos filhos, e a preferência por um deles, ajustando todos os conflitos que se deram pela rivalidade entre os irmãos. A construção da família, o amor e a superproteção modelando um futuro nem tão harmonioso assim. Às mulheres, responsáveis por nossas condutas no mundo, recai sempre o peso e a culpa por tudo o que nos transformamos.
Domingas, a outra mãe, a índia-doméstica, nesta mesma história, tão forte, é tão pouco falada. É a mãe do curumim que nos narra a história dos dois irmãos, o menino que não sabe qual dos irmãos é seu pai. Domingas é a expressão de tantas outras mulheres. Sobretudo se pensamos a Amazônia, onde ela nasceu, e nos milhares filhos do boto, uma paternidade transformada em lenda para justificar sua ausência, para romantizar a violência contra as mulheres, floreada pelas dramaturgias de todo o mundo até hoje.
Vejamos se no agosto dos pais será este o Boto uma das celebridades a serem listadas nas narrativas de comemoração do superpai.
Imaginou qual seria a sua mãe favorita? Seria interessante pensar nossas próprias mães dentro deste rol que as literaturas nos apresentaram. Pensar as nossas mães de ficção, já que certamente suas práticas se encaixam na história extraordinária de nossa própria existência.
Qual mãe ela seria? A mãe protetora, a mãe lutadora, a mãe mortícia, a mãe rainha, a mãe rosemary? Ao ver tantas, a nossa e a dos outros, concordemos que mais do que mães existe uma imagem de mãe. Esta é a que dura pra sempre. A imagem que nos diz o que é enfim a mãe verdadeira, o modelo a ser conduzido por todas as mulheres, mesmo que essa imagem também esteja presente nos modelos de famílias homoafetivas, o casal de dois homens.
Penso um pouco nas outras mães, aquelas que se distanciam desta imagem a que a elas atribuem. Como Medeia, uma das mais famosas, a mãe que se recusou a ser a ama de seu traidor, matou os filhos não somente para vingá-lo, mas para que sua desgraça no mundo não tivesse herdeiros. Fora da mitologia e da ficção, são tantas. Neste mesmo ano, não faltaram histórias de mulheres que mataram os filhos, seus ou dos outros. Uma curiosidade imensa de viajar na mente dessas mulheres, que perderam suas condições de mãe, para além do carimbo tão rápido de psicopatia que recebem.
Que importância teria nosso papel, o de pensar as outras fugas à imagem da mãe, que não tivessem o ódio e a violência como triste e trágico efeito!
Não esqueçamos a mais tradicional leitura católica dada ao “pecado” de Eva no Eden. A mulher deverá parir e sofrer a dor do parto para pagar pelo erro de nascer mulher. A dor do parto, não seria a própria maternidade?
Dia desses assisti a um dos mais interessantes debates no SESCTV, Filosofia Pop, de Márcia Tiburi. Para a filósofa, a mãe é uma ficção, assim como a família é um teatro de nossas sociedades. Engraçado ela mencionar a Mãe, máquina que rege a Nave de Alien o 8o Passageiro, de Ridley Scott, como uma de suas ficções prediletas. Pra entrar em nossas listas.
Vale muito fazer as variadas leituras sobre o conceito e papel da família, aquela que Zana tanto queria constituir a partir da maternidade. Vale ainda notar como elas sempre constituíram o oposto daquilo que se convém a qualquer uma delas, em seu papel educador e de organização social e fraterna dos indivíduos para a humanidade. Só para ilustrar com o extremo: é dentro de casa que 96% das mulheres espancadas sofreram violência. Dentro de casa que ocorrem 86% das práticas de pedofilia.
Também já viram um outro vídeo, de Jout Jout Prazer, sobre o fato tão simples de que todos vão transar? Sabendo disso, por que nunca nos prepararam para o sexo? Absurdo pensar como as escolas ainda são proibidas de tratar o assunto e nas próprias famílias o sexo é tabu. Nossa própria identidade enquanto sujeitos ganham na família uma função super conservadora. Há uma imensa responsabilidade dadas a essas instituições para nos organizarem para as grandes armadilhas do mundo, quando o mundo próprio é quem também nos constitui. Há um espectro de família, paternidade, maternidade que se espalha por outros campos de conformação dos sujeitos. Espalha-se tanto que pode se tornar ainda mais fácil falar que nossas famílias podem não passar, de fato, de um grande teatro.
Hoje brigamos por uma ideia de família que fuja da modalidade padrão que o próprio Estado busca interpor, à revelia de uma série de formas diferentes daquela formada pela mãe, pai e seus filhos. Talvez trilhássemos o longo caminho contra caretice – no pior dos sentidos que a palavra pode ter – se de fato desmontássemos o mito da maternidade, e da própria paternidade. No mínimo, sinalizaríamos uma dívida com as mulheres e especialmente nossas próprias mães, pelo enorme peso da responsabilidade imposto por todas as tragédias que já sofremos.
Da mesma forma, ainda se impõe a elas e a nossas mães o peso de um futuro próspero, fraterno e pacífico, as que devem “parir o mundo novo”. A pelo menos todos os que atuamos no ativismo social, deveríamos pensar quais possibilidades temos para equilibrar o importante peso materno, sem a linha paternal autoritária construída pelo patriarcalismo. Declarar a inexistência da mãe não seria de antemão o melhor dos horizontes utópicos?
Separar o parto da criação pode ter um teor, a priori, violento, lembro logo as mães de Handmaid’s Tale. Contudo, há que se mirar com bastante otimismo como justamente o contraponto daquilo que a série produz, o protagonismo das mulheres e a independência de nossas mães, têm possibilitado algumas poucas alternativas de criação, modelos de “família”, de formação dos indivíduos.
Vivo com alguns pequenos que vez ou outra me chamam de mamãe. Eu prefiro até, se pensarmos que o papel do pai está sempre atrelado a encarnação da autoridade no interior da família. Contudo, o mais interessante nisso é como de fato os papeis de gênero ainda se confundem nas cabeças de crianças de dois anos de idade. E como convencionalmente impomos uma ideia de identidade. “A vida resiste à ideia de identidade”, disse Judith Butler em conversa junto a Paul Preciado, gênios.
Longe de falar que é privilégio das mulheres, por tudo o que já foi exposto, mas nos parece uma honradez quando nos ouvimos chamar de mãe. Que bom seria se todos nos sentíssemos assim responsabilizados por todas as gerações que estão por vir e que se beneficiarão do legado que estamos construindo! Ouvir das crianças é também quase um alerta daquele débito que temos com nossas mães, eu pelo menos com a minha, de entender, já fora do ventre e da maternidade tão próxima, como o mundo foi injusto com ela.