Luto por Marielle: contra a violência do Estado no Brasil
O desejo de que a dor de hoje se consubstancie em novos tempos de esperança.
Centenas de milhares de pessoas foram às ruas para velar a morte de Marielle Franco. Foram às ruas para expressar que também elas foram atingidas pelo crime político que vitimou Marielle. Para expressar sua indignação ante o uso bárbaro da violência contra quem dedicou a vida à denúncia dessa mesma violência.
Por isso mesmo, as centenas de milhares de pessoas que foram às ruas para velar Marielle são o fato político mais relevante no país desde 2016. Elas representam as vozes abafadas, desejosas de por um fim a recente onda de intolerância e violência que se propaga país afora. O desejo de que a dor de hoje se consubstancie em novos tempos de esperança.
A dimensão da solidariedade demonstrada a Marielle e a Anderson Souza, vítima do mesmo ataque, soa como um alento àqueles que consideram as ruas como lugar por excelência para transbordar a indignação frente a tantas afrontas que se acumulam nessa conjuntura pós-golpe.
Claro que avaliações desse tipo exigem cuidado. Primeiro, por respeito às vítimas, seja em sua dor, seja ao identificar o espaço político que merecem e devem ocupar. Cumpre sempre lembrar que o assassinato de Marielle é também mais um episódio da ampla série de crimes que distinguem o processo de genocídio da população negra brasileira. Uma morte a cada 21 minutos. Guerra civil. Guerra racial.
Trata-se, portanto, de uma luta a ser protagonizada pela população negra, luta que devemos apoiar e reconhecer na sua cobrança de uma larga dívida.
A dívida da abolição inconcluída e da escravidão não resgatada sequer pelo valiosos esforços em favor da inclusão social, levados a cabo neste início do século XXI.
O cuidado estende-se à compreensão da conjuntura em que nos encontramos. O martírio de Marielle desnuda elementos específicos, cujo encastelamento delineia de forma mais nítida o complexo Brasil pós-golpe, motivo para que sejam ser melhor apreendidos.
A descoberta de que as balas que vitimaram Marielle e Anderson pertenciam a um lote adquirido pela Polícia Federal ratificam a existência de uma relação promíscua entre Estado e crime organizado – revelação que transcende fronteiras. Vale lembrar que cápsulas do mesmo lote foram também utilizadas em recente chacina no estado de São Paulo. Mais do que isso, demonstram que organizações milicianas colonizam não apenas as polícias do estado do Rio de Janeiro, mas mantêm intimidade com estruturas do próprio governo federal.
Tudo isso torna ainda mais intrincada a questão da superação da violência urbana. O que por sua vez dá nova prova da nulidade da intervenção militar no Rio. O Exército pode até ter sucesso em espantar “aviõezinhos”, confinando-os ainda mais aos guetos e favelas, mas nada poderá fazer para desmontar a cadeia de comando do crime organizado, cujas raízes alcançam diversos pontos do poder político formal.
Trata-se de uma tarefa muito mais apropriada àquelas instituições com capacidade de investigação e dotadas de uma mínima independência do poder político,: teoricamente, o Ministério Público e o Judiciário. Aliás, vale lembrar que as características do assassinato de Marielle reiteram o da juíza Patrícia Accioly, executada com 21 tiros por milicianos, alvos de investigação coordenada por ela.
Na prática, todos esses elementos atestam a falência do Estado brasileiro, seja pelo esfarelamento das políticas de bem-estar da população, seja pelo desvirtuamento dos aparelhos de segurança pública, utilizados contra o povo ou mesmo subsumidos por organizações criminosas. Não é à toa que, durante o ato do Rio de Janeiro, tenham preponderado palavras de ordem pedindo o fim da polícia (em sua versão militar).
Concluindo esse texto, quero dialogar com duas outras manifestações, entre tantas motivadas por essa morte cuja decifração nos desafia.
O primeiro, de André Singer, intitulado “Assassinato de Marielle representa o fracasso da democracia”, tematiza as insuficiências do processo da redemocratização brasileira, duramente desvelado na morte desta mulher parlamentar, no momento mesmo em que praticava seu ativismo. E essa barbaridade não é um ponto fora da curva: relatórios internacionais situam o Brasil no quarto lugar mundial em assassinatos de ativistas ( com o México, a Colômbia, e as Filipinas).
O outro, de Manô Miklos, intitulado A vida e a luta de Marielle Franco: não foi em vão assinala aspecto antagônico: a presença radiosa de uma jovem mulher negra, lésbica e favelada, cuja corajosa assertividade abriu caminho para tantas outras como ela numa dimensão da cena pública que lhes é historicamente interditada.
Ambos os textos têm razão. De um lado a redemocratização brasileira por não ter enfrentado de verdade uma Comissão da Verdade, ao modo argentino ou chileno, acabou naturalizando as violações de direitos humanos que são estruturais na nossa história . Essa covardia da nossa institucionalidade permitiu que um torturador fosse saudado no momento mesmo em que era cassada a única mulher brasileira já eleita presidenta, uma mulher ex-guerrilheira e que também foi torturada.
De outro lado, o processo político brasileiro admite que, por suas frestas, brotem Marielles como uma flor no asfalto. Em número muito menor do que necessitamos, mas, usando as palavras de Drummond, “garanto que uma flor nasceu”, “furou o tédio, o nojo, o ódio”. As milhares de pessoas na rua pranteando sua morte atestam isso.
Nesse momento, em que estamos condenados a derrotar um golpe, que ceifou de cheio nossas expectativas de avançar gradualmente na construção de uma sociabilidade mais justa e mais digna, é hora de considerarmos as condições de recomeço. A necessidade de construção de um estado verdadeiramente democrático. Para o qual categorias como direitos humanos, gênero, igualdade racial não sejam palavrões.Portanto, um estado para a cidadania. E não simplesmente para a defesa da propriedade.