Lusofonia, diversidade e inclusão de gênero marcam nova comunidade feminina tecnológica
Confira em coluna de Renata Frade uma entrevista exclusiva com Lorenna Vieira, cofundadora da Todes, um espaço para mulheres e pessoas não-binárias formado por profissionais de diferentes áreas da tecnologia que buscam capacitação pelas Tecnologias da Informação.
Durante minha pesquisa de doutorado em desenvolvimento sobre feminismo e tecnologia, e de comunidades femininas em TI, chamou-me a atenção a única feminina em tecnologia portuguesa tendo como pilar a igualdade de gênero. A Todes reúne características que a tornam especial, mesmo em tão pouco tempo de vida, em torno de um ano. Trata-se de um espaço seguro para mulheres e pessoas não-binárias formado por profissionais de diferentes áreas da tecnologia – sobretudo brasileiras e portuguesas – as quais buscam capacitação pelas Tecnologias da Informação. O coletivo também foi impactado pela pandemia de covid-19, a maioria das iniciativas e ações ocorre em canais digitais, como Instagram e Slack. Diversidade e inclusão são valores fundamentais para líderes e participantes, assim como a busca por autonomia e empoderamento em áreas tecnológicas, pela criação de oportunidades reais para todos os grupos sociais e étnico-raciais.
A Todes pretende ser uma rede de ajuda na formação em tecnologia, formações e compartilhamento de conteúdo didático e motivacional. Para apresentar a comunidade tecnológica lusófona, que tem proporcionado um espaço seguro e de intensa interação entre, sobretudo, a brasileiras e portuguesas sobre informações sobre oportunidades de emprego, dúvidas sobre programação, fontes para cursos e atualização científica, por exemplo, convidamos Lorenna Vieira, uma das cofundadoras. Oriunda de Belém do Pará, fez Relações Internacionais na Universidade de Brasília e, após o término do curso, ingressou como Gestora de Contas na Zomato, uma empresa indiana do ramo FoodTech, em São Paulo. Posteriormente, foi convidada para continuar o percurso profissional na Zomato Portugal, empresa com sede em Lisboa, onde ficou 6 anos gerenciando times e formando a equipe comercial portuguesa. Decidiu mudar de área em 2020 para realizar um bootcamp de programação. Hoje, trabalha como desenvolvedora backend na Advicefront, uma empresa que desenvolve uma plataforma para consultores financeiros.
Fale um pouco sobre sua relação com a tecnologia e como foi sua transição de carreira de Relações Internacionais para se tornar desenvolvedora. Desde quando e onde já atuou em TI?
Meu pai é engenheiro de telecomunicações, logo, vivemos todas as fases da tecnologia dentro de casa. Ele sempre foi muito antenado e trazia as inovações. Lembro quando tivemos o nosso primeiro computador, um Windows 95 e o barulho inesquecível da internet discada. Muito curiosa, ficava olhando-o desmontar o computador, equipamentos. Sempre achou que eu seria uma engenheira, porque um dia me encontrou consertando um micro-system com uma solda que achei em sua caixa de ferramentas.
Quando completei 15 anos, pedi de presente um notebook, lembro-me de configurá-lo e customizá-lo do jeito que queria. Porém, acho que por desconhecimento dos cursos de Computação ou de outras Engenharias, e por achar um ambiente demasiadamente masculino, escolhi ir para as Ciências Humanas por afinidade e porque queria um curso que me desse possibilidades fora de Belém.
Durante meu curso de Relações Internacionais na UnB o que mais me estimulava eram os projetos com os quais eu estava envolvida, em todos eles desenvolvia um papel de comunicação, tinha muita facilidade em mexer com programas de computador, fazia os designs das nossas comunicações, vídeos. Realizei estágio na APEX e gostava muito mais de criar os gráficos no Excel e mexer com SPSS, do que fazer os relatórios de análise de mercado. Ao terminar a universidade, entrei em alguns processos seletivos de trainee de Marketing, descobri que tinha perfil de vendas. Um amigo me indicou para uma oportunidade na Zomato para vendas. Foi meu primeiro trabalho e contato com uma startup, trabalhar com uma app, ver de perto os lançamentos das novas versões e ser a linha de frente na hora de apresentar o produto.
Durante o meu percurso em vendas e gestão, sempre busquei entender o produto a fundo e automatizar processos. Precisava ser desafiada intelectualmente e aprender algo novo, foi assim que surgiu a ideia de aprender programação. Fiz o bootcamp de nove semanas da Le Wagon e aprendi a linguagem Ruby e sua framework Ruby on Rails. Ao final do curso, os alunos participam de uma semana voltada para carreira. Felizmente fui contratada como Junior Backend Developer pela Advicefront logo que terminei o bootcamp. Completei um ano na empresa e fui promovida. Acho que minha experiência com TI começa desde quando comecei automatizar os processos para a gestão de informação na Zomato.
Em seu trabalho como desenvolvedora considera haver alguma diferença no desempenho da entrega de demandas no trabalho em relação aos homens, como performance, trabalho de equipe, etc?
Dentro da minha experiência, tanto em vendas, quanto agora como desenvolvedora, considero-me muito mais organizada e metódica que alguns colegas de trabalho. Sinto alguma hesitação na hora de comunicar da parte de outras pessoas, e isso nunca foi um problema para mim. Se não entendo o que preciso fazer, eu pergunto até que eu consiga entender. No início do trabalho, por medo de acharem que tinham feito uma má escolha, eu passei muito tempo buscando as soluções das minhas tarefas sozinha, consegui ser bem sucedida, mas minha curva de aprendizado foi bem íngreme e lenta.
Quais foram os maiores desafios encontrados por você para ingressar e permanecer trabalhando em tecnologia e como conseguiu superá-los? Teve a ajuda de alguma comunidade feminina tecnológica, de alguma entidade governamental, ou de outras mulheres em tecnologia?
Acho que o maior desafio é a síndrome da impostora. É bem difícil silenciar a voz de que eu não sei o que estou fazendo. Como é um trabalho que exige muita técnica e as chamadas ‘hard-skills’, estou constantemente me desafiando intelectualmente nas decisões que faço com o código que estou escrevendo. No primeiro mês de trabalho, fiquei bem desesperada porque meu chefe não tinha muito tempo para me ajudar, tive sorte porque pude contar com duas pessoas mais seniores que me guiavam. Infelizmente, eu era a única desenvolvedora mulher na minha equipe, senti falta de uma aliada. Entretanto, por gostar do que estava fazendo continuei a pesquisar bastante e a ganhar cada vez mais confiança nas minhas habilidades.
Ajudou-me muito ter tido outras amigas dentro do curso que fiz de programação, ter outras mulheres com quem eu pudesse trocar experiência. A minha primeira referência de mulher em tecnologia é uma grande amiga de Belém, a Natália Oliveira, desenvolvedora Java, que programa desde a adolescência e entrou no curso de Ciências da Computação no Pará. Ela me incentivou muito a fazer o bootcamp. Minha tia Carla há muito tempo trabalha como Gestora de Projetos em Tecnologia. Essas referências me deram força na decisão que eu estava tomando. Antes de tomar minha decisão de mudar de área, fiz um workshop de final de semana com um projeto chamado SheCodes, que visa ensinar programação apenas para mulheres, foi um primeiro contato maravilhoso porque não me senti intimidada com o público, isso faz completamente a diferença para quem quer pelo menos conhecer essa área.
Como é atuar como desenvolvedora em Portugal? Como é sua rotina e de outras brasileiras que atuam em TI no país? Quais são as vantagens e maiores desafios encontrados? Poderia explicar como ocorrem os processos de seleção e de avaliação?
Na minha primeira experiência, ser desenvolvedora é estar em constante conversa com outras equipes (como design e produto) para conseguir efetivamente traduzir o que é pedido em linhas de código. Acredito que esta seja a principal função da desenvolvedora – entender as funcionalidades, as necessidades das outras equipes e colocar isso na tela do computador. Não consigo falar por todas as outras brasileiras, mas as que eu conheço sempre dizem sobre essa importância da comunicação. A rotina da desenvolvedora às vezes está muito mais focada em entender o que é pedido, organizar as ideias para depois passar isso para código.
As vantagens de atuar como desenvolvedora em Portugal, a meu ver, para além dos benefícios de morar num país seguro, de custo relativamente acessível e bom de se viver, são as possibilidades para atuar em TI no continente europeu. Os desafios eu diria que depende da empresa na qual estão, mas é justamente a comunicação. Por ser tão necessária se estiver numa empresa que os(as) colegas de trabalho tenham algum preconceito em relação a nacionalidade, ou mesmo a gênero, ela vai ser a primeira a ser prejudicada.
Os processos de seleção para uma vaga de desenvolvedora vão sempre exigir uma etapa técnica, que para mim é a mais desafiadora. Existem, ainda, etapas para avaliar se o candidato se encaixa na cultura da empresa, mas a parte técnica exige que a pessoa saiba os conceitos da linguagem da vaga para a qual está se aplicando, saber arquitetura de programas. Há também algumas perguntas de lógica feitas para perceber como é o seu raciocínio.
Você está à frente da Todes, uma comunidade portuguesa de mulheres em tecnologia com viés de lutar pela igualdade de gênero. Fale não só sobre porquê decidiu se dedicar a esta causa, como do que se trata, há quanto tempo existe, e quantas colaboradoras e membros participam? Qual é o perfil das pessoas que participam deste grupo e seus principais objetivos?
Sempre trabalhei em mercados dominados pelo gênero masculino. Quando comecei a estudar programação, uma questão foi ficando cada vez mais pertinente na minha cabeça: quem são as pessoas que estão desenvolvendo os programas que usamos todos os dias? A resposta na maior parte deles é: homens, brancos e cis. Comecei a perceber a importância de termos diferentes tipos de pessoas entrando para neste mercado. O mundo está numa progressão tecnológica desmedida e as pessoas apenas convivem no dia-a-dia, mas não estão interessadas em perceber o que está por trás. Minha preocupação é que sejamos engolidos e não agentes nesta progressão.
A Todes surgiu com o intuito de descomplicar a tecnologia, de mostrar para outras pessoas que existe todo o tipo de gente em Tech, trazer mulheres cis e trans, pessoas não binárias e da comunidade LGBTQIA+ que sejam programadoras, UX designers, product managers. Ampliar as referências de pessoas que vivem no mundo tecnológico. Facilitar também um grupo de apoio e uma comunidade para que as pessoas que tenham interesse em entrar na área acharem apoio e suporte. O perfil é variado mas, geralmente, são mulheres, pessoas da comunidade LGBTQIA+ que se interessam por tecnologia.
Existe uma mistura bastante interessante de interação na Todes, sobretudo no Slack, de desenvolvedoras e de pessoas em transição de carreira para TI, portuguesas e brasileiras. Isto foi algo planejado, ou se tornou orgânico, espontâneo?
Foi tudo muito orgânico. Começamos eu, Thainá e Diana com um curso introdutório de Desenvolvimento Web mas, após muitas conversas, sentimos que era importante não ser só sobre programação, mas sobre as várias oportunidades em Tecnologia. Começamos com o Instagram e, por sermos duas brasileiras e uma portuguesa, e estarmos em Portugal, o público ficou misturado.
A Todes pretende realizar ações no Brasil e em Portugal com membros da sua comunidade? Caso sim, quais seriam, quando e qual é o perfil destas atividades?
Começamos com tudo online devido a pandemia e, por agora, queremos manter assim. Quem sabe mais para o futuro conseguiremos fazer um dos nossos workshops ou uma das nossas rodas de conversa de maneira presencial?
Quais são os planos da Todes para 2022?
A ideia em 2022 é ampliar as parcerias com outras comunidades para fazermos trocas de conteúdo e termos uma comunidade mais dinâmica e orgânica. Queremos que todes sejam participantes ativos na criação de conteúdo e para usar o canal como partilha e troca de conhecimento.
Quais são seus maiores sonhos como desenvolvedora, mulher em tecnologia e líder de comunidade?
Meu maior sonho é conseguir incentivar mais mulheres e pessoas da comunidade LGBTQIA+ migrarem para a programação e ter um papel ativo no aconselhamento destas pessoas. Para conseguir isso, preciso crescer enquanto desenvolvedora e meu maior objetivo é ser excelente e referência na linguagem que programo. Quero conseguir aproveitar a sede que tenho por conhecimento para me instruir e estar por dentro das atualidades e da evolução da Web 3.0 para conseguir instruir outras pessoas.
Como é possível participar da Todes?
A Todes tem a comunidade do slack aberta, basta clicar no link na nossa bio do instagram do @todes.pt. Quem quiser colaborar com partilha de conteúdo, criação de workshops pode falar diretamente comigo que usaremos o canal do Todes para divulgar.
Como avalia o cenário de comunidades femininas em tecnologia em Portugal e no Brasil, semelhanças e diferenças?
Tenho a impressão de que as comunidades femininas no Brasil têm um alcance maior, não só por ser um país bem maior, mas também pela qualidade na produção de conteúdo, o Brasil é uma máquina de bom conteúdo. A principal semelhança é o objetivo comum destas comunidades, fortalecer mulheres na Tecnologia e aumentar a diversidade nesta área. Acho que as diferenças residem em aspectos culturais e o alcance do conteúdo de cada uma delas. Acredito que as comunidades femininas em Portugal ainda não atingiram o mesmo grau de maturidade como algumas do Brasil.