Lulas sem multidão
Antônio, líder quilombola, também teve celeridade em seu processo, como Lula. Já os que o ameaçam, seguem sem a ‘perturbação’ da lei.
Por Leonardo Nader
Na inauguração dos planos de transformar o antigo DOPS de Belo Horizonte num “Memorial da Liberdade”, o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, pegou emprestado a poesia de Cecília Meirelles para externar sua indignação com a justiça, ou mais precisamente a falta dela; aplicada ao caso Lula. As palavras da obra Romanceiro da Inconfidência, da década de 50, fazendo alusão ao período de sedição mineira, soaram assombrosamente contemporâneas: em “Das Sentenças”, falavam de uma justiça seletiva, corporativa, elitista; ferramenta dos fortes sobre os fracos. Pimentel declarou-se triste pelo que acontece a Lula, e conseguiu, com o poema, evocar a imagem do ex-Presidente no imaginário dos presentes.
Minha memória, porém, me enviou alhures. No coração do Vale do Jequitinhonha, um dos territórios mais pobres de Minas Gerais, fica o Quilombo do Baú. Situado no município de Araçuaí, o Quilombo se encontra num interminável processo de reconhecimento de seu território, e em aberto conflito com grandes proprietários de terra que pleiteiam para si as terras ancestrais quilombolas.
Enquanto Pimentel evocava Lula, no écran da minha mente se formava a imagem de Antônio Cosme, líder daquela comunidade, preso preventivamente sob acusação de portar uma arma com numeração raspada.
O crime dele, em si incontroverso, é citado nos autos fora de seu contexto: Antônio é reconhecido enquanto ‘defensor de direitos humanos’ sob ameaça de morte, protegido como tal pelo Programa Estadual de Defensores de Direitos Humanos. Foi preso a caminho de uma audiência pública do Ministério Público para tratar da questão fundiária; e já havia denunciado inúmeras vezes que estava sob ameaça de morte por fazendeiros locais. Faltou nos autos de seu processo uma reflexão sobre a motivação do porte ilegal da arma: desespero, frente a omissão do Estado, de zelar pela própria vida.
Na voz de Pimentel, ouvi Cecília Meireles: “Já vem o peso do mundo com suas fortes sentenças. Sobre a mentira e a verdade desabam as mesmas penas (…) já vem a Jurisprudência interpretar cada caso (…) e a Justiça é mais severa com os homens mais desarmados.”
O peso do mundo recai sobre Lula, enquanto preso político no cume de um processo de usurpação da democracia. É o estopim para o retrocesso em direitos que permite a repressão mais abrasiva de Antônio, e de outros como ele por todo o país. O Direito está sendo sequestrado pelos doutores da justiça, aplicado com rigor quando convém, e com camaradagem quando impera o interesse corporativista e o sentimento de classe. A celeridade do trâmite processual de Lula em muito remete à maneira eficiente em que a denúncia contra Antônio procedeu na polícia local: foi localizado, preso, indiciado e mantido em prisão preventiva com eficiência ímpar naquela comarca. Já o processo de reconhecimento do quilombo defendido por Antônio, e as investigações de denúncias por crime de ameaça e agressão contra ele e os demais quilombolas; estão todos estagnados. Qual a medida de esforço e eficiência aplicada nas autoridades, em ambos os casos?
Cecília ainda lembrava: “Mas há muita barra de ouro, secretamente, a caminho; mas há pedras, mas há gado prestando tanto serviço que os culpados com dinheiro sempre escapam aos castigos”
A criminalização seletiva foca sua lupa nos pecados dos que lutam por direitos; exonerando ou jogando para um eterno ‘segundo momento’ os donos do poder econômico, e seus aliados. Sejam os empresários recompensados com gordos acordos de delação – desde que neles sussurrassem o ‘nome-de-quatro-letras’ – ou os fazendeiros que mantém milícias de jagunços para intimidar quem com eles entra em conflito; o aparato legislativo e judiciário parece apto a abrir arestas processuais e garantir amplo recurso quando o culpado é abastado ou influente.
Para Lula e Antônio, e o que representam nas esferas ‘macro’ e ‘micro’ da luta de direitos humanos; resta a celeridade processual; a jurisprudência draconiana; o viés condenatório. Para o fazendeiro denunciado; para o município omisso; para os mandantes da chacina de Unaí, para os executivos da Samarco; o sistema é lento, as garantias são plenas; a indignação midiática é narcoléptica, e a tese judiciária é garantista.
Enquanto fenômeno político, Lula foi construído nas lutas de milhares de Antônios, defensores de direitos e das causas sociais que angariaram força para um projeto de poder popular no Brasil. O tal ‘grande pacto nacional’ precisava de fato ser ‘com Supremo, com tudo’ para deixar subentendido contra quem se pactuava, quem estava excluído desse processo.
O impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula não são fins em si; mas condições permissivas para garantir um ambiente onde os poderes executivo, legislativo e judiciário são voltados para suprimir os Antônios, Marielles, Dorothy Stangs, Padre Amaros e demais vozes dissidentes.
A criminalização seletiva de Antônio não causa mobilização internacional. Mesmo o Brasil sendo nomeado por organizações como Anistia Internacional e Frontline como um dos países que mais mata defensores de direitos humanos no mundo; quando tombam líderes quilombolas; líderes indígenas; sem-terra; lutadores pela igualdade racial ou pela diversidade; não há convulsão social. São muitos ‘Lulas’ sem multidões de seguidores; em lutas sem visibilidade. Só no programa nacional de proteção aos defensores de direitos humanos já foram incluídos mais de 250 defensores ameaçados. Em Minas Gerais, governada por Pimentel, o programa de proteção já ultrapassou a marca dos 100 defensores e defensoras correndo risco. Em 2017, a CPT anunciou novo recorde de mortes, com 70 assassinatos motivados por conflitos no campo – maior número desde 2003, e quase o dobro desde a eleição de 2014.
Com o foco no ex-presidente; e o clima ocasionado justamente pela prisão deste; a situação dos defensores de direitos humanos ameaçados arrisca piorar. Encorajados pelo clima de autoafirmação da classe jurídica enquanto força repressora; os algozes ousam mais nas ameaças e nos atos de violência. O sangue derramado nos conflitos pela terra continua a jorrar enquanto a caravana da Lava-Jato passa, sequestrando o imaginário público.
É aí que Cecília conclui: “Já vem o peso da vida, já vem o peso do tempo: pergunta pelos culpados que não passarão tormentos, e pelos nomes ocultos dos que nunca foram presos. Diante do sangue da forca e dos barcos do desterro, julga os donos da Justiça, suas balanças e preços. E contra seus crimes lavra a sentença do desprezo.”
Os 60 anos de conquistas sociais iniciado desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos dão o tom para uma maré-da-história que não perdoará a narrativa míope que constroí Lula e seus milhares de Antônios como fontes dos problemas de nossa sociedade.
O mesmo imaginário popular entorpecido pelas manchetes ainda há de cogitar o que aconteceu com aquele helicóptero cheio de cocaína; aquele operador político ligado ao Presidente em exercício; os mandantes de chacinas por todo o país. Há um limite histórico; e esse será quando finalmente ficar escancarado que a balança do judiciário tem um preço; e que a justiça que deveria servir a todos; foi submetida a interesses privados e a uma agenda política antipopular.
Lula é o primeiro, e mais pesado dominó, de alguns milhares na reação-em-cadeia enfileirada pelo golpe. Pelo símbolo que representa, os atos de resistência democrática à sua prisão são plenamente justificáveis. Porém, a esquerda não pode cometer o erro de considerar que Lula é o alvo dessa ofensiva: almeja-se erodir direitos, inclusive pela repressão e criminalização de defensores de direitos humanos Brasil afora. Esses ‘Lulas’ não tem multidões solidárias, não tem comitês internacionais, não atraem vigílias. Mas são o sustentáculo que alçou o retirante a sindicalista, a candidato, Presidente, e agora símbolo da derrocada institucional brasileira. O foco no símbolo não pode ofuscar o firmamento que o ostenta. O planejamento da resistência, os apelos para a comunidade internacional, precisa cuidar também de Ântonios e Marielles, Brasil afora, que estão sobre risco de violência ou criminalização pela sua luta. Para eles, o Brasil que criminaliza as pessoas de luta já existe a bastante tempo, e só tende a piorar.