Limpeza periférica: a farda que pratica o mal
60 por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada quatro pessoas mortas pela policia, três são negras. Nas universidades brasileiras, apenas 2 por cento dos alunos são negros.
Texto por Isabela Alves
60 por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais
Já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela policia, três são negras
Nas universidades brasileiras
Apenas 2 por cento dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente
Em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente
Racionais Mc`s, Capítulo 4 Versículo 3
Nos últimos dois dias a Favela do Moinho, localizada na região central de São Paulo, passou por momentos de turbulência e terror. Sexta-feira 20, policiais fizeram uma ação de apreensão de drogas, cerca de 200 kg, em um barraco. Ação foi motivada por uma queixa, de boletim de ocorrência, feita por um dos moradores. O boletim anunciava que dentro de um barraco havia alguém armado.
No final da ação, a polícia levou três jovens que estavam – segundo a Rádio CBN – sentados na calçada ao lado do barraco onde estavam localizados os entorpecentes, como testemunhas para a delegacia 77 DP. Ao chegar na delegacia, os detidos foram indiciados como criminosos, donos do material apreendidas. Permaneceram detidos e na audiência de custódia, realizada no Fórum da Barra Funda durante a tarde de sábado 21, a juíza Nidea Rita Coltro determinou a prisão, sem provas de flagrante e completamente contra aos depoimentos dos jovens e da polícia.
O capitão Eduardo Lima, responsável pela ação, informou à rádio CBN que “eles estavam bem nessa porta aqui que dava acesso ‘pra’ escadinha e a gente entrou por essa porta. E a droga estava condicionada nesse cômodo. Totalmente exposta, vou arriscar assim dizer que 80% da droga apreendida estava exposta no chão. Na minha opinião (em relação ao jovens e as drogas) não por conta das características, eu não posso afirmar se eu não peguei na mão.”
Além disso, os próprio jovens também estavam tranquilos, pois em todo momento pensaram que eram testemunhas de uma apreensão, e não culpados, afirmou um ativista à Rádio CBN.
Todo esse cenário de terror nas periferias, até mesmo as mais centrais, coloca novamente o debate da seletividade do encarceramento e serve de gatilho para uma mobilização geral, e não polarizada, para gritar liberdade a esses meninos. Afinal, todo camburão é um navio negreiro.
O processo de disputa de território permeia a história de nossa país. Como sabemos, desde a chegada dos colonizadores, os povos oprimidos resistem geograficamente, a luta de demarcação de terra indígenas não é só a garantia de ter um lugar para se morar, que foi roubado, mas uma certeza que uma cultura irá existir e resistir, irá passar e transpassar sabedoria para muitas e muitos. Os Quilombos também ilustram essa estratégia de luta, de se instalar em um lugar e nele lutar, defender e viver pela sua cultura e liberdade.
As ocupações centrais e as periferias têm origem na lei da falsa abolição do sistema escravocrata assinada pela princesa Isabel há 130 anos. Depois dessa lei, negros e negras não tinham empregos garantidos, muito menos moradias ou acesso aos hospitais. A população foi deixada ao abandono. Muitos voltaram a trabalhar para os antigos donos, que pagavam pouco e davam continuidade à torturas e a explorações. Tempos depois, o Estado achou uma outra forma de exterminar a população negra, desta vez, trazendo os imigrantes ao Brasil. Foi a retomada do programa de embranquecimento do país, que estava pretinho demais.
Com a vinda desses imigrantes – principalmente os japoneses -, não causaram apenas um embranquecimento pontual na população, mas também um apagamento dos polos de resistência negra. O bairro da liberdade, por exemplo, região central da São Paulo era, antes de virar símbolo da cultura oriental, um lugar de convivência negra, de rituais, músicas e resistência.
Hoje, o território é internacionalmente reconhecido como uma das maiores concentrações de população japonesa fora do Japão. Deixo claro que há importância no Bairro da Liberdade e que nenhum povo merece sofrer a favor de outro, entretanto é necessário ressaltar que os japoneses são parte de um embranquecimento institucional.
O Coletivo Crônicas Urbanas produziu um material rico sobre o apagamento negro na cidade de São Paulo, colocando que a população era a maioria dos moradores do centro, produzindo jornais, revistas, músicas e dança. Outro ponto que o coletivo coloca é a partir do bairro Bexiga, que tem como símbolo a resistência Italiana, também imigrantes. De fato, os italianos tem muito para contar, entretanto antes de ser embranquecido por pizzas e molhos, o Bexiga era lugar de samba, feijoada e sorrisos negros.
Voltando para o nosso ponto, uma vez retirados do centro, a população negra sem nenhum auxílio estatal, uma falsa liberdade, ocupou as marginalidades da cidade. Moinho não é marginal geograficamente, mas toda a sua vivência é por fora das grandes decisões e vidas dos prédios coloniais da zona central.
Uma vez colocando as pessoas na periferia, é necessário criar um mecanismos para não saírem desse lugar, não ascenderem socialmente e não terem como exercer a voz de cidadão. Por isso: encarceramento em massa. E aqui chegamos naquele dado estrondoso: as prisões estão lotadas por pessoas que poderiam estar em liberdade respondendo processo. São possíveis traficantes, possíveis vendedores, possíveis assaltantes. Todos seguem o protocolo estabelecido pela polícia: pele preta, barraco como morada.
A disputa de território nas favelas reside exatamente nesse mecanismo de encarceramento em massa. Os morros são reduto de drogas vindas de inúmeros lugares, as “facções criminosas” poderiam ocupar os prédios mais chiques, mas não, ficam na periferia fazendo o papel do estado: garantindo dinheiro, cultura e velório para os moradores. Quando a polícia entra, ou é negócio ou é furdunço. Não tem outra opção.
Quando a PM cercou a favela do Moinho com cerca de 30 viaturas, para averiguar um boletim de ocorrência, eles já sabiam que sairiam dali com alguém no camburão. Não podemos afirmar que os policiais já sabiam que as testemunhas iam virar criminosos, mas existe uma diferença de pegar 3 jovens, possivelmente negros, e 3 meninas, ou 3 senhoras ou 3 crianças. A grande chance dos jovens serem tomados como traficantes na delegacia, nos depoimentos, nos buchichos da comunidade, na mídia, é enorme. Os meninos se tornam símbolo de segurança e eficácia, importantes em ano de eleição.
A ação não foi pontual, a polícia vasculhou inúmeros barracos, apesar do delator da denúncia dizer exatamente onde se encontrava a droga e a pessoa armada (informações da CBN). O domínio do território não é só de quem mora, é de quem historicamente colocou os moradores lá.
Portanto, a ação da PM na Favela do Moinho nos últimos dias não é sem pé nem cabeça, tem uma origem histórica de higiene central, de política de embranquecimento e encarceramento. Além disso, tem uma motivação mais pontual: as eleições estão próximas e uma camada da sociedade precisa ver gente presa para se sentir segura. Transcendendo esses dois pontos, a construção do hospital privado na região da Luz irá trazer consequências devastadoras para os marginalizados, é possível dizer sim que três jovens presos sem provas, não é o começo, mas continuação de uma estratégia de disputa de território político, da máquina liberal do mundo. Fechando com Racionais:
“Periferias, vielas e cortiços
Você deve tá pensando
O que você tem a ver com isso
Desde o início
Por ouro e prata
Olha quem morre
Então veja você quem mata
Recebe o mérito, a farda
Que pratica o mal
Me ver
Pobre, preso ou morto
Já é cultural”
– Racionais MC’s, Negro Drama.