Muitos são os ataques e avanços conservadores contra nós. E, por isso, como nos diz sempre a mana Lua Leça, precisamos somar e multiplicar.

No seu discurso como vitorioso nas últimas eleições, o atual presidente disse que iria acabar com os ativismos no país. Não se tratava apenas de palavras ao vento, mas de uma conclamação para que as forças conservadoras ampliassem a perseguição e a violência contra quem luta por justiça e liberdade. Eu me recordo do quanto fiquei indignada e, pouco depois, perplexa com o umbiguismo de determinados setores hegemônicos da esquerda, achando que isso se tratava apenas deles. Pelo contrário. Mais uma vez, os movimentos e ativismos que fazem lutas interseccionais e populares é que viam a mira sendo apontada, literalmente, para eles.

Um dos fatores centrais para a reorganização das direitas e sua ofensiva, foram as ações que faziam os filhos da “ralé”* ascenderem aos bancos universitários, disputando a produção de saber e, portanto, configurando seu próprio projeto de país, o que envolvia mudanças profundas, estruturais, na configuração de classes sociais e de identidade socio-cultural racial.

Ao dizer que não haveria “nenhum passo atrás”, estes movimentos e ativismos não estão apenas com pretensões, estão afirmando a partir de uma realidade.

É bem verdade que estes “filhos da ralé” ainda enfrentavam muitas questões estruturais: violência urbana, seja pelas dinâmicas do tráfico, milícias e policial; postos de trabalho precarizados; encarceramento em massa; desrespeito a direitos constitucionais como acesso à saúde, saneamento, escolas de qualidade, moradia…

A moradia. Um direito garantido na Constituição, fundamental para a qualidade de vida e pleno desenvolvimento, jamais respeitado em nosso país. Está lá, na nossa lei maior. E é importante afirmar isso, mesmo que ela nunca tenha sido “mainstream” no país. Os movimentos de moradia no país são notadamente liderados, em sua maioria, por mulheres. E isso acontece por uma série de fatores, dentre elas este avanço de famílias monoparentais chefiadas por mulheres. E elas decidem ir à luta. Imóveis abandonados são ocupados, demandando o direito à moradia e contra a ociosidade para o lucro diante daqueles e daquelas que só querem o que lhe é de direito: um teto com dignidade.

Na última semana, 4 lideranças de movimentos de moradia do centro da cidade de São Paulo foram detidas, de 9 mandados autorizados. Os mandados foram expedidos a pedido da polícia civil paulista, a partir apenas de relatos anônimos. A investigação começou após o desabamento do edifício Wilton Paes, no Largo do Paissandú, em decorrência de um incêndio. Segundo a polícia, várias pessoas que ali viviam fizeram denúncias de que eram obrigadas a pagar taxas aos coordenadores do movimento que ali se organizava. Sendo assim, iniciou-se uma investigação sobre vários movimentos. Em um dos processos, Dona Carmem Silva, liderança do MSTC (Movimento dos Sem Teto do Centro), foi absolvida, justamente porque conseguiu comprovar com prestações de contas e recibos que todo o valor arrecadado de moradores das ocupações que ela coordena é disponibilizado para melhoria das condições de sobrevivência das pessoas nos edifícios ocupados, além de que não tinha nenhum envolvimento com processos escusos, sendo, inclusive, uma importante, e conhecida, figura que não permite que organizações criminosas adentrem as ocupações que lidera.

Mas, o estado penal não se contenta. Em um inquérito, que os advogados de defesa, tiveram dificuldades para acessar – em um evidente desrespeito a uma garantia constitucional elementar, do direito de defesa – , decretaram a prisão cautelar, por 5 dias, de Preta e Sidney Ferreira (do MSTC), Angelica dos Santos Lima e Ednalva Franco Pereira (do MMPT). Importante frisar que estas lideranças não tem nenhuma relação com a ocupação do edifício Wilton Paes, são de movimentos diferentes, inclusive, e jamais se opuseram à contribuir com as investigações. Mas, como eu disse, o estado penal não se contenta e, então, o “inimigo penal” ** precisa ser combatido.

A criminalidade feminina negra aparece como se constitutiva de como esta representação se estabelece na sociedade.

No caso das mulheres brancas, vistas como vítimas, esta seria uma caracterização. Às mulheres negras e indígenas, a criminalização sempre esteve presente, além de práticas punitivas muito mais severas e de posse de seus corpos. O controle público do corpo feminino negro sempre esteve presente, diferente da arena privada para o controle de corpos femininos não negros.

Um dos aspectos da criminalidade de mulheres negras na Bahia no século XIX era por conta do comércio exercido por elas. As chamadas “negras de ganho” vendiam produtos e uma parcela era entregue aos senhores, ao passo que o restante, muita vez, era utilizado para comprar suas alforrias. Ocorre que estas mulheres tiveram sucesso em suas vendas, chegando a controlar o comércio de determinados produtos.

A preocupação, então, aumentou diante do poderio e exerceu-se controle sobre estas mulheres.

Uma série de taxas, leis, foram criadas e ao desrespeitá-las a criminalização se instaurava, construindo a imagem de mulheres violadoras da ordem, como “baderneiras”. Muitos dos registros de época apontam esta categorização de mulheres negras como criminosas, ofensoras e inadequadas.

A construção, portanto, da criminalidade ligada às mulheres negras vai se desenvolvendo no percurso histórico e seja pelo controle sexual seja pelo controle público, do exercício de suas atividades, com forte fator de confronto e repressão policial.

Por isso, não é algo aleatório uma ofensiva tão violenta diante de um movimento no qual mulheres, majoritariamente negras, exercem liderança política. E se entendemos, para além de um conjunto de palavras reunidas, a afirmação de Angela Davis de que mulheres negras ao se movimentarem movimentam toda uma estrutura com elas, não podemos apenas lamentar e seguir nossas vidas quando estas mulheres são atacadas. Repetindo outra frase já marcante de que não basta não ser racista, é preciso ser antirracista. Portanto, é preciso agir.

Há advogados no caso. Mas sabemos que a mobilização popular é fundamental. Não podemos mais permitir esta imagem construída de mulheres negras como criminosas, quando estão fazendo nada mais nada menos do que lutar por seus direitos. Criminoso é o Estado que desrespeita direitos constitucionais. Afinal, você já pensou quem define quem é criminoso e o que é crime? Um dado: até jogar capoeira, hoje patrimônio nacional, já foi considerado criminoso. E quem disse que lutar por direitos e dignidade é crime? Uma pulga atrás da orelha pelo menos pode ser deixada quando apresentamos o dado de que 68% das pessoas em situação prisional no país são negras, mais da metade sem ensino fundamental completo, no caso das mulheres, mais de 50% sem emprego formal quando presas, apesar de mais da metade delas serem as chefes de suas famílias; ao passo que 84,5% dos juízes são brancos, 64% dos magistrados são homens, e 82% dos tribunais superiores são ocupados por homens.

Reflita. Lutar por um direito não é crime. Não se perca. Rompa o silêncio e se levante contra injustiças. Acione suas redes, acompanhe a página dos movimentos FLM e MSTC, seja soma e multiplique. Seja luta.

Libertem Preta Ferreira!

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*Ralé é um conceito desenvolvido pelo sociólogo Jessé Souza em “A ralé brasileira: quem é e como vive”. Editora ContraCorrente, 2009
**Inimigo penal é conceito desenvolvido pelo criminalista Eugênio Raull Zaffaroni em “Inimigo no Direito Penal”. Coleção Pensamento Criminológico. Editora Revan, 2006