Lei Aldir Blanc: diálogo para vencer a burocracia e dar conta da emergência cultural
Se os R$ 3 bilhões previstos forem, efetivamente, aplicados neste ano de 2020, será o maior volume de fomento direto investido no setor cultural num único exercício fiscal.
Por Ericka Gavinho*
Em maio, na Câmara dos Deputados, foi aprovado o projeto de lei (PL) 1.075-A/2020 que daria, meses depois, origem à Lei nº 14.017/2020, conhecida como Lei de Emergência Cultural, ou melhor, Lei Aldir Blanc. Essa lei originou-se de um enorme esforço de agentes do setor cultural e também da iniciativa de deputados da oposição, que, inclusive, ampliaram o debate, conseguindo o apoio da base do governo. Tanto que o Presidente da República só vetou um único dispositivo (importante, por sinal), mas que não causou, até aqui, maiores prejuízos ao espírito da lei. Essa comunhão de representantes do setor, de parlamentares e de gestores culturais precisa, agora, mais do que nunca, ser reeditada para que a aplicação e a fiscalização dos recursos aconteçam em consonância com as peculiaridades da cultura brasileira.
Se os R$ 3 bilhões previstos forem, efetivamente, aplicados neste ano de 2020, será o maior volume de fomento direto investido no setor cultural num único exercício fiscal e com capilaridade em todo o território nacional, deixando a lógica, até aqui vigente e de certa forma preponderante, de fomento à cultura pelas leis de incentivo (Rouanet, ICMS e ISS), que termina por passar, necessariamente, pela mediação dos departamentos de marketing das empresas patrocinadoras. Destaco que não se trata de nenhuma censura ao fomento indireto, mas é preciso reconhecer a sua limitação no financiamento à cultura e às artes no Brasil, pois nem tudo interessa ao mercado, havendo de se contar com o Estado, sob pena do empobrecimento de nossa diversidade cultural.
A Lei e seu decreto regulamentador (Decreto 10.464/2020) estabelecem três tipos de subsídio: (i) renda emergencial mensal aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura; (ii) subsídio mensal para a manutenção de espaços artísticos e culturais, de microempresas e pequenas empresas culturais e de outros agentes culturais e (iii) promoção de editais, chamadas públicas, prêmios e etc. A lei determina que, para a realização de seleções públicas de iniciativas culturais, seja investido, pelo menos, 20% (vinte por cento), do montante total destinado à Lei de Emergência Cultural, o que significa um total de R$ 600 milhões num único ano. Para se ter uma ideia da importância desse montante, necessário relembrar que, recentemente, o governo federal, por aquele seu secretário nacional de cultura que se alinhava com os ideais de Goebbels, anunciou, naquela peça tragicômica, como se um grande feito fosse, um edital de R$ 20 milhões para o Brasil inteiro. Absolutamente, risível!
A dificuldade, hoje, é a seguinte: diante da repartição da verba, determinada pela própria Lei Aldir Blanc, como forma a ser elogiada de pulverizar esses recursos por todo o país, muitos entes subnacionais (Municípios, Estados e Distrito Federal), provavelmente, jamais executaram, em tão pouco tempo, uma quantia tão significativa, não existindo estrutura administrativa para a aplicação e a imperiosa fiscalização desses recursos públicos. Neste quadro, a chegada desses recursos, que têm natureza de emergência, na ponta, precisa acontecer logo, a fim de se evitar o colapso desse setor já tão atacado, sob vários aspectos, principalmente, em seu valor simbólico. Na verdade, é bem possível que já tenha se passado muito tempo e muitas iniciativas culturais e artísticas já não consigam manter-se em pé depois de tantos meses, quase seis, de pandemia.
Para tanto, os agentes do setor por si ou por suas representações precisarão, com a mesma ou maior dedicação do que fizeram até aqui, mediar eventuais conflitos e construir pontes com gestores públicos e controladores ou esse valor, tão significativo, terminará devolvido à União sem que alcancem seu efetivo objetivo: manter a atividade desse setor tão importante para o país, não só pelo seu valor para a construção de nossa identidade nacional, mas também por sua capacidade de geração de renda e empregos, ou seja, outros ativos também muito importantes a qualquer sociedade que se queira civilizada.
Ora, mas construir consensos em um ambiente de tanta polarização, como se vê na nossa sociedade, e também em defesa de um setor tão atacado neste jogo de disputas que hoje determina os rumos do país, não é tarefa fácil. Há, então, imperiosa necessidade de que os agentes do setor, que já tanto fizeram neste processo todo, sigam mobilizados para vencer a burocracia estatal e, enfim, os recursos destinados a salvar o setor cultural do Brasil cheguem aos agentes, pessoas físicas e jurídicas, da cultura brasileira. Sem nenhum fatalismo, ou isso acontece ou a cultura terminará esse período grave da história da humanidade totalmente inviabilizada, e não estará em pé para, quando tudo passar, as pessoas poderem saciar a sua fome de beleza, aquela que tranquiliza a alma e dá sentido a essa nossa existência que, muitas vezes, parece não ter nenhum. Mas a arte nos pode dar!
*Advogada, especialista em Direito Administrativo. Doutoranda e Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio