Kobe Bryant, a construção de estereótipos e criação de um senso comum racista através da mídia
Como podemos garantir que as partes lesadas e silenciadas tenham voz e também seja possível que vozes em demasia exerçam escuta e que desse processo tenhamos como produto soluções não punitivas, mas que respeitem vítimas e possibilitem que elas se reposicionem como re-existentes?
Um ídolo do basquete faleceu de modo trágico. Kobe Bryant morreu junto de sua filha, Gianna, e mais 7 pessoas em uma queda do helicóptero em que estavam. Diversas personalidades dos esportes, do cinema, da música e dos ativismos políticos e acadêmicos explicitaram tristeza e condolências à família do atleta. Pudera, Kobe Bryant foi um dos maiores atletas da história da NBA e, sem dúvida, um dos gigantes do time Los Angeles Lakers. Dos poucos recrutados pela NBA direto do ensino médio, Bryant é pentacampeão na NBA, participou 18 vezes do All Star Game, foi escolhido 15 vezes como membro da equipe ideal da liga de basquete, eleito, em 2008, o jogador mais valioso da NBA, e medalha de ouro nas Olimpíadas de Pequim. Mas seus feitos superaram o mundo dos esportes e, em 2018, Bryant ganhou um Oscar de “melhor curta-metragem de animação”, com o filme “Dear Basketball”. Em sua homenagem, os Lakers aposentaram os números 8 e 24 usados por ele. Bryant é o único atleta de seu time a receber tal honraria na história. Um dos assuntos mais comentados nas redes sociais, tornando-se uma hashtag-movement, foi do orgulho que o jogador demonstrava sobre ser pai de meninas. Bryant é pai de 4 meninas e falava sobre isso sempre que havia oportunidade, inclusive explicitando como uma de suas filhas, Gianna, que também estava no acidente e faleceu, era melhor do que ele no esporte.
Diante da comoção, uma importante polêmica emergiu da biografia do atleta. Em julho de 2003, Kobe Bryant foi acusado por violência sexual a partir da denúncia de jovem mulher de 19 anos, que trabalhava em um hotel em que o astro havia se hospedado. Bryant negou o estupro, mas admitiu, posteriormente, que pode não ter pedido explicitamente por consentimento. A denunciante se recusou a testemunhar e condicionou a retirada das acusações a um pedido de desculpas formais de Kobe à corte. O advogado do atleta o representou e leu a declaração de desculpas do astro em que o mesmo explicitava que não havia realizado qualquer pagamento à jovem e que, após todo o período, compreendia os sentimentos da mesma. Bryant manteve, em sua declaração, que tinha um entendimento diferente dos fatos, mas que se desculpava. O processo foi para a esfera civil e resolvido entre as partes diretamente, sendo encerrado em 2005 sob sigilo.
Diversos jornais estamparam manchetes que, ao falar da morte do atleta, davam ênfase à denúncia de violência. E isso tudo causou um grande debate nas redes sociais. De um lado, até que ponto personalidades são alçadas ao status de heróis e deuses após seu falecimento, apagando pontos, no mínimo, problemáticos de suas trajetórias. E, de outro, a denúncia de como, em um momento de morte e luto, jornais podem ser irresponsáveis e reafirmar imagens de controle sobre homens negros em busca de cliques e vendas pela polêmica. Havia, ainda, mais outro lado, que era o de impulsionar as vozes silenciadas de vítimas de violência sexual.
Eu não gostaria de responder a isto tudo apenas com “é uma questão complexa” pelo simplismo da resposta. Mas não posso fugir de dizer que, realmente, é complexo e, ainda, contraditório. Mas, geralmente, não gosto de pessoalizar discussões. Não acho que se trata de refletirmos apenas sobre o caso de Kobe Bryant. Ao focar nele, seria importante ressaltar que a morte de Kobe Bryant não significa apenas a morte de Kobe Bryant, assim como a morte de toda pessoa não representa um processo de morte de si mesma apenas. A morte envolve toda uma rede que, no caso de Bryant, envolve a morte e memória de sua filha Gianna, o luto de sua esposa e de suas outras filhas, de seus pais e demais familiares e amigos. Do ponto de vista mais amplo, a morte e comoção, principalmente entre a comunidade negra estadunidense, se estende às várias famílias negras que o viam como modelo de superação, responsabilidade, profissionalismo e exercício de paternidade. Os três últimos, inclusive, bem caros às discussões que se realizam sobre masculinidades negras e as imagens de controle sobre homens negros.
Então, como realizar esta discussão garantindo as contradições e complexidades, estabelecendo diálogos abertos e sinceros? Como discutirmos a difícil necessidade de construções de heróis e o quão isso pode ser nocivo à sociedade?
Essa discussão me lembrou de questões levantadas de modo veemente pela intelectual Michelle Alexander. A advogada provoca os ativismos negros e de Direitos Humanos a irem além da confortável posição de defesa de pessoas que estão convencidas de que são inocentes. Veja, eu não estou aqui dizendo que minha contribuição ao debate se tratará de uma defesa, mas de que levantemos algumas discussões se vislumbramos um outro tipo de sociedade. O que quero chamar atenção é para a formulação da intelectual que questiona o que ela chama de “política da respeitabilidade”. Ou seja, um ardil em que muitos de nós caímos muitas vezes ao focarmos em alguns tipos de pessoas negras, que serão compreendidas e aceitas como “boas e respeitáveis”, ocasionando uma outra imposição de parâmetros de hiper positivação na tentativa de confrontar as imagens de controle e estereótipos negativos, estabelecendo um código de conduta rígido, “acima de qualquer reprovação e livre de qualquer traço negativo que pudesse ser usado como justificativa”. A questão colocada pela intelectual é a de que enquanto fizermos isto, não estaremos de fato combatendo um sistema de desigualdades baseadas em hierarquias raciais, se não, apenas reforçando uma narrativa agradável aos ouvidos brancos.
O que quero dizer aqui é que não devemos, e não podemos, ser reticentes em apresentar as complexidades quando estamos tratando de pessoas.
E este é outro ponto em que quero tratar.
Ao criamos estes padrões de respeitabilidade, estabelecemos uma dinâmica perigosa entre nós de cultuarmos uma “excepcionalidade negra”. Esta é uma questão também discutida por Michelle Alexander. Primeiro, porque, como a própria aponta, estes “exemplos altamente visíveis de sucesso negro são essenciais para a manutenção de um sistema de castas raciais”. Obviamente, a intelectual está focada na discussão sobre encarceramento. Mas eu a estendo para o debate sobre como pode ser pernicioso para nós quando potencializamos determinadas figuras como exemplos inalcançáveis, como se fosse possível atingirmos um padrão de perfeição humana.
Se estamos falando de humanidade, a perfeição é nada mais do que um sonho. Uma das características de um sistema de dominação, principalmente na colonialidade, é a desumanização. Esse processo, negativado, tem como consequência a inanimação e objetificação de pessoas. Mas, ao ser hiper positivado, esse processo se finaliza em atribuições de dotes divinos de pessoas. Ou seja, ambos os processos impossibilitam a humanização de indivíduos. A desumanização planifica, esvazia indivíduos e suas dignidades, suas contradições, seus desvios. O humano é contraditório, imerso em características diversas. Então, como esperarmos uma trajetória que não reflita o que de mais profundo e estrutural existe na sociedade? Como responder aos anseios de amplificar vozes de vítimas elevando um padrão irreal de perfeição? E, ao mesmo tempo, como não desrespeitar uma rede ampla que vivencia o luto?
Por fim, mas não menos importante: como podemos estabelecer processos de responsabilização e de restauração em conflitos em nossas sociedades? Como podemos garantir que as partes lesadas e silenciadas tenham voz e também seja possível que vozes em demasia exerçam escuta e que desse processo tenhamos como produto soluções não punitivas, mas que respeitem vítimas e possibilitem que elas se reposicionem como re-existentes? Voltando ao caso de Kobe Bryant, é evidente que o mesmo, por ser um homem, famoso e rico, se beneficiou de um sistema de justiça criminal estruturado pelo sexismo. Ao mesmo tempo, é inegável as mãos mais pesadas pela criminalização de homens negros, atendendo a estereótipos de agressividade mas, o mais grave para mim, como se fossem características incorrigíveis e inatas, reverberando teorias eugenistas e deterministas. Se, por um lado, essa criminalização não recaiu sobre Bryant pelo sistema de justiça criminal, fica evidente que ela foi reverberada por uma face importante, como alerta Angela Davis, na construção de estereótipos, da criação de um senso comum racista através da mídia.
A meu ver, não se trata de absolver ou criminalizar Kobe Bryant. Mas de questionarmos um padrão de mitificação que criamos, presos a necessidade que ainda temos da representatividade e de narrativas excepcionais de sucesso – e que são lançadas à máxima potência, principalmente em casos nos quais as figuras de representatividade morrem. Nosso desafio, talvez, estaria em conseguirmos equilibrar legados em todo o seu possível em símbolo e desvios, sem apagamentos e sem exaltações. Ainda em acordo com Michelle Alexander, creio ser importante que repactuemos humanidades, inclusive para que reivindiquemos, com qualidade, responsabilizações que não aprofundem punitivismos, mas que construam saídas a partir de dinâmicas do fazer escutar, do reconstruir o falar e do restaurar o existir.