Intolerância religiosa e racismo no foco do debate sobre justiça social
O racismo evolui, se sofistica e se adapta, daí a importância de garantir a liberdade de culto e crença, conforme estabelecido na Constituição Federal
Por Amarílis Costa
Falar sobre racismo e intolerância religiosa em um país que se diz tolerante e plural nos inspira reflexões ao mesmo tempo importantes e incômodas, muitas vezes adiadas. São inúmeras as violações de Direitos Humanos perpetradas pelo racismo no Brasil, derivadas de discriminação, intolerância religiosa e segregação, instaurando e mantendo um estado de desigualdade racial. O racismo é um sistema de exclusão e marginalização cívica, que reflete um padrão de desrespeito a direitos e de agressão à cidadania de modo global.
A democracia racial é uma farsa, e tem sido assim desde 13 de maio de 1888. O racismo brasileiro é perverso, negado e negligenciado por grande parte da população, ainda que sempre presente em práticas discriminatórias na vida cotidiana. A crença de que o país escapou do racismo e da discriminação prejudica as discussões sociais sobre efetiva reparação pelo genocídio praticado na era colonial e por todas as políticas instituídas a partir da edição da Lei Áurea para exclusão da população negra e efetiva criminalização da existência das pessoas negras na sociedade brasileira, instauradoras de uma estrutura de branqueamento que alcança os mais variados aspectos da sociedade atual.
A partir do debate racial e da luta de entidades sociais organizadas, como o Movimento Negro Unificado, a Constituição Federal de 1988 inseriu o tema referente às identidades raciais na perspectiva dos direitos e garantias fundamentais. Apenas neste momento, passado um século da abolição da escravatura, houve o reconhecimento do racismo como um problema nacional. A Lei Caó (Lei nº 7.716/89), aprovada no ano seguinte, foi um marco dessa conquista e o início da jornada do Estado para reparar sua dívida histórica com a população negra, criminalizando a prática do racismo, ainda que não indicasse o arcabouço de políticas públicas necessárias para alcançar a justiça racial e social.
Mesmo constituindo maioria de 57,3% da população (IBGE), os grupos étnicos historicamente oprimidos, como pretos, pardos e indígenas, até hoje não estão em patamar de equidade perante os chamados grupos dominantes, sendo que as consequências das violências que lhes foram impingidas perduram por gerações, como mostram, ano após ano, as estatísticas oficiais de temas como violência urbana, empregabilidade, educação, moradia, renda familiar, saúde, entre outras.
Dentre as muitas formas de preconceito e violência racial, o racismo religioso é uma das mais perversas, e se manifesta por meio de atos que visam negar elementos das religiões minoritárias na cultura brasileira, como música, dança, alimentos e até mesmo na literatura escolar. Esses atos são, muitas vezes, acompanhados de agressões físicas e simbólicas, perpetuando estereótipos e marginalizando comunidades religiosas.
Essas tentativas de apagamento de origens afro-religiosas têm sido descritas em pesquisas contemporâneas e, desde o início do processo de redemocratização, no final da década de 1970, o Movimento Negro do Brasil já compreendia a questão de terreiros e religiões de matriz africana como entidades que careciam de especial proteção do estado, tratando-se de demanda política basilar das lutas sociais e políticas. Hoje, é fundamental abrir espaços para a mobilização e a organização dos povos de terreiro no âmbito de todas as lutas progressistas da sociedade.
O Brasil, forjado pela diversidade cultural e religiosa, continua enfrentando desafios nesse sentido, e o racismo religioso persiste, apesar das garantias constitucionais de liberdade de culto. Nos últimos dois anos, os crimes em razão da religião aumentaram em 45% no país. As que provêm de matrizes africanas seguem sendo o foco dos ataques violentos e, em 2022, foram registradas três queixas diárias relativas a esse tipo de intolerância, de acordo com dados do “Disque 100”, canal do governo federal para denúncias.
A morte de Mãe Bernadete Pacífico, matriarca do quilombo Pitanga dos Palmares (BA), em agosto de 2023, é emblemática. Ela lutava desde 2017 pelo esclarecimento do assassinato de seu filho e denunciava a perseguição sofrida pelos quilombolas. Foi também assassinada com 12 tiros dentro de seu terreiro, ao lado de seus netos.
A demolição do terreiro de Candomblé Ilê Asé Odé Ibualamo pela Prefeitura de Carapicuíba (SP) é um exemplo de arbitrariedade e desrespeito. A administração municipal alegou risco de desabamento do imóvel, mas Mãe Zana, a responsável pelo terreiro, que funcionava há 30 anos no local, afirma que os problemas estruturais foram causados pelas obras da própria prefeitura para a canalização de um córrego.
Não houve diálogo ou consulta prévia ao terreiro, que foi tratado como uma habitação comum. Nem mesmo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) conseguiu retirar a tempo peças que poderiam ter sido preservadas. O caso, que infelizmente não é um episódio isolado, levanta um urgente questionamento sobre o tratamento dispensado pelo Estado brasileiro à existência e ao legado dos espaços sagrados das religiões de matriz africana no país.
O racismo evolui, se sofistica e se adapta, daí a importância de garantir a liberdade de culto e crença, conforme estabelecido na Constituição Federal. A proteção da diversidade religiosa é fundamental para uma sociedade inclusiva e plural e, neste sentido, é crucial que a aplicação das leis considere o respeito aos direitos fundamentais, evitando a criminalização indevida de práticas religiosas legítimas.
Considerando o racismo como tecnologia de poder que produz divisões sociais e justifica meios de intervenção e controle, a Rede Liberdade espera que os avanços antidiscriminatórios permitam que o Direito siga firme em seu propósito e seja o agente constitucional de mudanças, envidando seus melhores esforços para a consagração do projeto de uma sociedade livre, justa e solidária, regrada por codificações eminentemente constitucionais.
Amarílis Costa é advogada, doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito USP, mestra em Ciências Humanas, pesquisadora do GEPPIS-EACH-USP, diretora executiva da Rede Liberdade.