Outro dia, numa festa, encontrei um conhecido indígena, cacique do Xingu.

Soube que, entre uma viagem e outra, ele estuda acupuntura em São Paulo. Atraído pelas técnicas orientais, me contou que em breve visitará o Japão. Seu médico acupunturista admira a medicina Yawalapiti e fez o convite. Fascinação recíproca. Duas medicinas, uma oriental e outra indígena-brasileira.

Um outro amigo também indígena foi convidado por uma das mais importantes bienais de arte do mundo para discutir arte e pensamento. Sua fala será referência para artistas e curadores na reflexão sobre arte contemporânea. Não é o primeiro nem o último convite do tipo que recebe.

Me vi pensando no contraste entre essa admiração cultural pelos indígenas em circuitos culturais e humanísticos internacionais com o desprezo e violência nacionais. Desprezo abertamente vocalizado, entre outros, por um caricato aspirante a presidência 2018.
O contraste das culturas que circulam e os genocídios cometidos por pistoleiros no Mato Grosso do Sul e Pará, com direito a cenas de mãos decepadas e assassinatos a sangue frio.

O tapete estendido nas Nações Unidas e as portas fechadas do Congresso Nacional, onde a bancada ruralista hoje aprova a mutilação de florestas e tenta reverter demarcações.

Uma história que não é nova mas ganha contornos mais dramáticos.

No momento atual, em que a ameaça aos direitos indígenas cresce a níveis que colocam em risco até o que havia sido conquistado desde 1989, a cultura brilha e se articula. A arte, a medicina, a ciência e filosofia indígenas conquistam mais espaço para além de territórios tradicionais. Ao mesmo tempo em que grassa uma barbárie cotidiana.

Outros acontecimentos culturais recentes no Brasil nascem do encontro entre indígenas e não indígenas: a recente abertura do pavilhão em Inhontim para a fotografia de Claudia Andujar em parceria com o povo yanomami ou o acontecimento intelectual-literário que foi o lançamento do livro de David Copenawa e Bruce Albert, A Queda do Ceu. O projeto dos Ashaninka com o fundo Amazônia para a agrofloresta. Ou do lançamento do documentário Martírio, de Vincent Carelli, obra-prima realizada pelo coordenador do projeto Video nas Aldeias. Ou da exibição de Abraço da Serpente, notável filme colombiano. Ou dos trabalhos de realidade virtual realizado em aldeias. Algumas destas obras e projetos resultados de décadas de trabalho e de interação criativa entre indígenas e não indígenas.

 

Nas áreas de pensamento, tecnologia, arte e cultura, instituições entre as mais relevantes observam e buscam interlocução com os pensadore(a)s e criadore(a)s indígenas brasileiro(a)s. São casos de trocas e interculturalidades entre os povos da floresta e parceiros no Brasil e no mundo. Trocas sempre expressivas.

Os vínculos que se constroem entre povos indígenas e alguns desses artistas, projetos e instituições são diplomáticos. Não se confundem com qualquer tipo de exotismo, mas de alianças e estratégias definidas.

A política se faz aí com p maiúsculo. Nasce de estratégias bem pensadas por parte dos indígenas e encontra terreno na aguda e urgente percepção de que a contribuição dos povos da floresta é fundamental para qualquer discussão mais abrangente sobre a vida humana. Na percepção de que a cultura é maior e mais ampla que a política.

Ano passado foi realizada com apoio da Prefeitura de São Paulo uma segunda mostra de cinema indígena, agora Bienal de Cinema Indígena. Tive alegria de ajudar a viabilizar este projeto coordenado pelo próprio Ailton Krenak e por Alice Fortes. Na Spcine, durante a gestão de Fernando Haddad, articulamos e disponibilizamos as salas públicas de cinema aos próprios indígenas na exibição de suas narrativas audiovisuais, seguido de debate com os cineastas.

São Paulo é uma das poucas metrópoles do mundo que tem quatro aldeias indígenas em sua área metropolitana, o que torna, a olhos atentos, uma cidade ainda mais central em termos culturais. Mesmo assim, a cidade ainda pouco reconhece essa importância. Um bom exemplo é que não há um grande museu ou centro cultural indígena, entre as centenas de ótimos equipamentos culturais.
Na mostra audiovisual indígena, foram 53 filmes exibidos, oriundos de cineastas de povos tão diferentes como Guarani, Yanomami e Huni Kuin. O que salta aos olhos é um cinema autoral de imensa qualidade. Graças a projetos como Vídeo nas Aldeias, e a programas como pontos de cultura lançados pelo governo federal desde 2003, na década passada, a produção audiovisual indígena ganhou enorme fôlego no Brasil.

A mostra foi um sucesso de público, no centro e nas salas implantadas na periferia. Muitos espectadores manifestavam ao final da sessão terem alcançado uma visão nova dos indígenas brasileiros, seus dramas e sonhos. Ficou claro o abismo que separa a maioria dos brasileiros de uma informação atual sobre os indígenas.

Creio que ao menos dois documentários autorais de cineastas indígenas podem ser colocados facilmente na lista dos 50 mais importantes já feitos. Duas obras-primas. Não porque de cineastas indígenas, ou de minorias, mas porque são excelentes filmes.

Me refiro a Bicicletas de Nhanderu (de Ariel Ortega e Patricia Ferreira) e Curadores da terra floresta, de Mozarniel Yanomami.

O audiovisual é estratégico como linguagem para os indígenas. Tanto por ser uma linguagem não escrita, que estimula a potência da criação visual, como por não depender só da língua portuguesa e da sua inevitável matriz colonial, num país que tem mais de 200 outras línguas faladas.

Todos os governos da nova república ficaram devendo em políticas e reconhecimento aos povos indígenas. Governos que, independente de partidos, foram pautados em grande medida pelo viés desenvolvimentista e economicista e uma visão submissa ao agronegócio.

Vitórias como a demarcação de Raposa Serra do Sol foram momentos importantes, mas exceções. A política de commodities e as hidrelétricas foram desastres absolutos pela falta de diálogo, pelo anacronismo e por desconsiderar a floresta, rios e populações da floresta como riqueza sócio-cultural e ambiental decisiva para o contexto em que vivemos.

Mas é preciso registrar um momento importante de avanço na cultura. Na década passada, durante o governo do presidente Lula, o Ministério da Cultura reconheceu os indígenas como interlocutores e parceiros na realização de seus projetos. Gilberto Gil, Ministro da Cultura, abriu as portas da instituição aos povos e a culturas indígenas. Foram centenas de projetos apoiados desde então. Juca Ferreira continuou e aprofundou essa política.

No primeiro edital lançado em 2006 pelo Ministério da Cultura para os povos indígenas, 436 projetos apresentados ultrapassavam e colocavam em xeque todas as imagens pré-concebidas sobre o que pensam e o que desejam os índios. Os projetos foram criados e geridos de forma autônoma.

Projetos como os “guerreiros online” pankararu, passando pela rádio comunitária potiguar incluindo confecção de livros, dezenas de documentários, ações de memória e resgate linguístico, recuperação de rios e suas histórias. O edital tinha a particularidade de permitir a inscrição oral e nas línguas nativas, o que estimulou enorme participação. Muito do que estava represado pela omissão histórica do Estado brasileiro veio à tona.

Em outra parceria do MinC com Universidades Federais, mestres do saber tradicional indígenas foram reconhecidos como o que são de fato, cientistas da floresta.

O protagonismo do pensamento indígena deve estar na centralidade de qualquer pensamento novo sobre o Brasil e o mundo, a meu ver, pelas razões a seguir.

A luta dos indígenas gira em torno das diferenças culturais e de modo de vida, e da necessidade do mundo global aprender a (con)viver com elas. A aspiração de viver em um mundo em que diferenças culturais sejam valorizadas é também oxigênio e base de um leque mais amplo de escolhas humanas.

As áreas demarcadas como terras indígenas são as porções de floresta mais preservadas do Brasil.

Os projetos indígenas de agrofloresta (que visam diversificar a produção agrícola e evitar o desmate) apontam para um modelo econômico em que a floresta dá o sustento mas não é derrubada.

As medicinas indígenas trazem ao debate uma abordagem da saúde que integra corpo, mente e meio ambiente.

As diversas práticas espirituais e as plantas de poder ganham adeptos em todo planeta, estabelecem novos fluxos de cura, meditação, reflexão e novas formas de subjetividade e criatividade.

Os indígenas têm pensamento fundamental sobre a recuperação de rios e florestas. É insumo valioso para repensar as metrópoles, criando melhores condições e qualidade de vida. Áreas verdes, rios limpos, centros culturais são fundamentais para recuperar as cidades. O tema deixou de ser utopia para ser “exigência” de inúmeras manifestações.

Nas palavras cheias de sabedoria que escutei de um pajé: é preciso tentar “pacificar o branco”, reduzindo sua violência, e usando a melhor ferramenta que é a cultura.

Desativar a herança extrativista do período colonial que trata a terra como estoque a ser saqueado. Uma virada espiritual, cultural e política, um tratado que inclui a natureza como sujeito. A diplomacia indígena atua assim para evitar o eminente holocausto climático, “a queda do céu”. Um discurso e postura de enorme significado político para os dias atuais.

Dos escombros correntes, deverá cedo ou tarde renascer no Brasil a República.

Até lá, o tempo urge e precisa logo cair a ficha: Precisaremos dos índios mais que eles de nós.