“Há um embate claro no Brasil em relação ao processo cultural”, diz Ricardo Cravo Albin
Para ele, os avanços tecnológicos são assustadores e, independente do governo conservador atual, a arte sempre estará comprometida às causas sociais.
Há décadas o musicólogo Ricardo Cravo Albin, de 78 anos, luta em defesa da cultura popular brasileira. É considerado por muitos o maior pesquisador da MPB. Sua carreira ganhou destaque principalmente quando assumiu a presidência do Museu da Imagem e do Som (MIS) na década de 1960, no Rio de Janeiro, onde instituiu uma política de preservação da memória por meio de gravações audiovisuais com os pioneiros do samba carioca e outros músicos brasileiros.
Autor de diversos livros, pesquisador, produtor de programas de rádio e televisão, é fundador e presidente do Instituto Cravo Albin, na Urca, zona do sul do Rio, onde ocorreu a entrevista. O local é repleto de relíquias da música nacional, seja com objetos, como um violão do sambista Cartola e uma sanfona de Luiz Gonzaga, ou com imagens de época, fora o vasto acervo sobre MPB. Na conversa, o estudioso fala sobre a importância do samba na identidade cultural brasileira. Para ele, os avanços tecnológicos são assustadores e, independente do governo conservador atual, a arte sempre estará comprometida às causas sociais.
Você pode contextualizar hoje a importância do samba, levando em consideração que já foi um ícone nacional em termos de cultura?
Quem não consegue imaginar que a definição mais clara do temperamento brasileiro seja o samba jamais entenderá o Brasil. Como disse Gilberto Freyre, ninguém pode entender o Brasil sem um dado fundamental: a miscigenação. A possibilidade concreta que existiu no Brasil que o redime, o constrói e o torna original no contexto das nações da intercomunicação racial que aconteceu quase com exclusividade dentro do nosso país, que é quase um continente. A Argentina é um país absolutamente insosso, como muitos outros, inclusive os EUA, que não absorveu como nós a interacionalidade. Portanto, é fundamental que o gênero mais qualificado fruto dessa miscigenação que é o samba seja considerado o gênero do temperamento nacional.
Você tem um trabalho consolidado em defesa da memória da cultura popular, por que ela é tão importante?
Primeiro por um costume e hábito decorrente de uma visão antecipatória e antecipada em minha idade para aquilo que é fundamental: a preservação do passado e de fontes. Me dediquei desde a adolescência no colégio Pedro II a preservar discos. Naquela ocasião, os meus preferidos eram os da maior cantora da época, que foi a ngela Maria, e acaba de cumprir 90 anos morta. Esse tipo de amor inicial para colecionar os discos me trouxe a maior definição daquilo que me fez cumprir toda uma vida. Isso se acentuou de uma maneira absolutamente inegável, conquistadora e definida, quando assumi a presidência do Museu da Imagem e do Som (MIS), do Rio de Janeiro. Na época não era nada nem ninguém conhecia, e a partir de 1965 entendi com as gravações dos pioneiros do samba, que tive o privilégio de titular, que a memória realmente viva é a que preservava a miscigenação. Razão dos pioneiros do samba terem aberto todas as alas daquilo que o MIS fez no Brasil de preservação da memória audiovisual dos seus pioneiros mais ilustres, definidores em relação à cultura e ao comportamento brasileiro.
Tem alguns pesquisadores, inclusive sambistas, que analisam como um marco a chegada da indústria cultural com as mídias de massa. Como você enxerga essa relação da evolução tecnológica frente a cultura popular?
Evidentemente participo de uma geração determinada e fixa, na qual participei na condição de certa liderança cultural, afinal assumi o MIS, inventei os depoimentos e juntei esse processo impondo ao Brasil a necessidade da memória audiovisual, pois não foi a Fundação Getúlio Vargas que fez como alguns dizem.
“Como participante de uma geração em que de fato trabalhei e criei, acho que os tempos contemporâneos são muito assustadores para minha intimidação de desconhecimento.
A minha absorção desses novos veículos é muito penosa, me sinto como um analfabeto em relação a esse tipo de possibilidade de entendimento. Isso faz com que tenha muita angústia em relação aquilo que não sei como atingir, me julgo impotente.
É um relato pessoal em relação às ferramentas, mas como você vê o impacto na cultura?
O impacto é total, tão grande que como pessoa sempre participativa das coisas fico fazendo esse preâmbulo de angústia, desconhecimento e analfabetismo. É uma avalanche de muitas informações e impossibilidade de compreensão. Não sou eterno, tenho uma idade já avançada, que pode limitar de uma maneira muito dramática essa minha busca de entender esses novos tempos que estão chegando e me são assustadores.
Como você enxerga o samba hoje em termos de qualidade musical?
Uma amiga muito querida quando eu fundei o MIS criou um conselho de MPB, que foi composto por Jacob do Bandolim, Sérgio Porto, Lúcio Rangel, Edson Carneiro, etc. A Eneida de Moraes, cronista paraense, que fez marca na história do samba e do Salgueiro, dizia uma coisa que eu absorvi a vida inteira: o tempo anda para frente, as pessoas que perderem o bonde do tempo estão simplesmente impossibilitadas de seguir para frente. Estou realçando esse meu exemplo pessoal porque é existente e penoso.
Aqui no seu Instituto tem certo destaque algumas fotos do músico João do Vale. Como você avalia a relação da política com a arte? Ela se faz necessária, é importante?
Qualquer manifestação popular tem, querendo ou não, alguma correlação maior ou menor, talvez até transcendental sem possibilidade de identificação com rigor, com a vida que é política. Existe dentro da história da música e do samba, que começa como crônicas de época. O primeiro samba do Donga, que frequentava esta casa, o Pelo Telefone, é cantado com insistência pela pessoa que mais homenageei nesta casa. Sua viúva, Vó Maria, que participou de toda aquela época, a enterrei no cemitério do Caju aos 103 anos de idade há muito tempo, e ela sempre dizia esse tipo de verdade: o samba registra a vida, e no caso do sambista popular no começo registrou a sua época. O Pelo Telefone é uma crônica de época descritiva com minúcias, inclusive apontando dados políticos e de entendimento censório muito significativos. Lutei contra a censura durante 15 anos e me rendeu um livro sobre como o cutelo viu e caiu sobre a cultura do povo, chamado Driblando a Censura, e comprovei que proibir a alma popular é uma tolice. Ela vai de qualquer maneira para frente, como a vida, a ética.
Aquilo que é considerado hoje imoral, impuro ou pornográfico, anti-social, vai para frente. As coisas mudam para muitos de uma maneira assustadora, era inimaginável ouvir certas coisas de hoje há 380 anos. A dança da garrafa, as mulheres dançando com uma gestualística de sexo explícito, era inteiramente impossível. As coisas mudam e não adianta proibi-las, porque vencem a censura e a proibição.
Há um desconforto por parte da classe artística e muitos intelectuais em relação a conjuntura atual, qual a sua opinião sobre isso?
Me referia a censura de costumes, de comportamentos pessoais, mas em relação a política sempre existiu. Não de uma maneira absolutamente declarada, como quando veio a música de protesto claramente social assumida. Nesses anos 50 e depois, quando começaram os festivais protestando publicamente, já não com sambistas de origem mas com sambistas classe média universitários. A partir dos Centros de Cultura Popular da UNE tinha toda uma definição política de protesto com atuação socialista, comunista ou de esquerda em geral. Esses anos foram muito politizados de forma clara não imposta, mas absorvida pela MPB. Deu inclusive um fenômeno que foi a participação de Geraldo Vandré no clássico Para não dizer que não falei de flores, que eu estava de júri, e vi toda uma visão de participação política de um público enorme basicamente universitário contra a ditadura da época, contra uma política de direita. Investiram injustamente contra Vandré, com Tom Jobim e Chico Buarque com a canção A Sabiá. Houve esse tipo de divisão, um caso muito cruel porque investia sobre dois grandes autores que, apesar de terem ganhado o festival com uma canção romântica, era uma canção de exílio só que disfarçada, enquanto Vandré era explícito um revolucionário de esquerda.
Mas e a conjuntura atual?
Protesta através do rap contra os costumes sociais, a vida do dia a dia, liberando toda uma sexualidade e sensualidade totalmente inexistente há 300 ou mil anos antes.
E também uma liberação social pessoal também liberando a parte política.
Desde Cazuza e outros da época do rock tem canções assim, eles insistiram e ganharam em relação ao protesto político muito contundente. Isso ainda existe hoje muito através dos rappers, seja com qualidade artística ou não. É música de qualidade? Sim e não, tudo depende de uma visão geral de um futuro que pode talvez tomar algum partido em relação a estética ou ética política num futuro. É muito difícil analisar qualquer coisa hoje.
Muitos artistas têm se manifestado contra o governo Bolsonaro, principalmente sobre os cortes das verbas para a cultura.
Eles têm toda razão, afinal o que aconteceu no Brasil é a surpreendente assunção da direita explícita que evidentemente joga todo o seu jogo, inclusive incide sobre uma cultura que sempre é mais à esquerda.
Há um embate claro no Brasil em relação ao processo cultural, é um governo de direita contra uma cultura que é sistematicamente mais comprometida às causas sociais.
Você está por dentro do samba de hoje?
Só estou por dentro do samba tradicional, acredito que os velhos sambistas ainda são muito visitados. Gosto em primeiro lugar de Martinho da Vila, meu compadre cuja filha caçula, Alegria, foi batizada por mim. Gosto muito também do Noca da Portela, Monarco, Paulinho da Viola e, sobretudo, do filho de um querido amigo meu que foi um dos maiores sambistas do país, que é o Diogo Nogueira. Uma cantora excepcional é a Roberta Sá, que está fora das antigas, como a Alcione que é um portento como Beth Carvalho, Elza Soares, Clara Nunes, que são insuperáveis. Continuam a causar uma devoção muito forte no espírito das pessoas.