Guilherme Boulos: A Lava Jato esconde a sujeira debaixo da toga
O Judiciário está longe de ser o irmão limpinho entre os três poderes da República.
As delações da Odebrecht dizem muito sobre o funcionamento do sistema político brasileiro, ao exporem as relações de promiscuidade entre os grandes interesses econômicos e o Estado. É evidente que qualquer julgamento precisa de provas e a delação, por si só, não consiste numa. Mas a troca de financiamento eleitoral por apoio político, aprovação de leis e facilidades em contratos públicos não é exatamente uma surpresa. Apenas estão ali, ditas por um dos agentes do negócio.
Esta corrupção é sistêmica, marca de um regime político que faliu. Emilio Odebretch chega a dizer em um dos momentos do seu depoimento que “a imprensa toda sabia de que efetivamente o que acontecia era isso. Por que agora estão fazendo isso? Por que não fizeram isso há dez, vinte anos atrás?”. Ele poderia ter emendado para outra pergunta, igualmente relevante: será que o Judiciário brasileiro também nunca desconfiou dessa relação entre o poder político e o econômico, será que permaneceu imune a ela?
Pois é, a Lava Jato apontou suas artilharias para o Executivo e o Legislativo. E o Judiciário?
Recentemente, a ex-ministra do Supremo Tribunal de Justiça Eliana Calmon disse à imprensa que “é impossível levar a sério essa delação caso não mencione um magistrado sequer”. Fala com conhecimento de causa. Ela foi corregedora do CNJ e cunhou na época a expressão “bandidos de toga”.
Mas disse também concordar com a “estratégia” da Lava Jato de não tocar “agora” nos juízes para não enfraquecer as investigações. Aí, ao que tudo indica, o corporativismo falou mais alto. Não parece haver estratégia alguma da Lava Jato em relação ao Judiciário, mas sim preservação pura e simples.
O Judiciário está longe de ser o irmão limpinho entre os três poderes da República.
Inclusive no que se refere à proximidade excessiva com o poder econômico e aos “favores” de grandes empresas com evidente conflito de interesses.
Não é preciso ir tão longe.
Há poucos meses, em novembro do ano passado, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) promoveu um evento nacional para mais de 1200 juízes num resort cinco estrelas em Porto Seguro. O Arraial d’Ajuda Eco Resort tem diária de R$605 e oferece hospedagem luxuosa em frente ao mar. O evento foi encerrado com show de Ivete Sangalo. Sergio Moro estava lá.
Quem pagou a conta?
Ora, ora, qual não é a surpresa ao verificar que o encontro dos ilustres magistrados foi patrocinado pela Varacel Celulose, empresa com imenso passivo judicial e vários casos em tramitação na Justiça. Apenas no Tribunal de Justiça da Bahia, a Veracel é ré em 24 processos e alvo de 19 execuções fiscais. Em primeira instância, já sofreu condenações ambientais e trabalhistas, que seguramente espera reverter nas instâncias superiores. Muitos dos magistrados que poderão julgá-la estavam usufruindo do resort em Porto Seguro, com o financiamento da empresa.
Isso é apenas um caso dentre muitos. Os encontros de juízes são via de regra financiado por empresas, que quase sempre têm algum tipo de demanda judicial. Ora, se tal relação é inapropriada e mesmo criminosa tratando-se de figuras do Executivo e Legislativo, por que seria correta com o Judiciário?
Há casos ainda mais emblemáticos, como o Instituto de Gilmar Mendes, ministro do STF. Os famosos seminários do IDP em Portugal contaram com financiamento da Federação de Comércio do Rio de Janeiro, que tem demandas no Supremo. Em um dos casos em que a Fecomercio/RJ é parte interessada (como amicus curiae), Gilmar era o relator do processo. Apenas após matéria da revista Época, publicada neste mês, o ministro resolveu declarar-se impedido.
O mesmo IDP viu o repasse de recursos públicos via Fies aumentar inéditos 1.766% nos últimos dois anos. O mais curioso é que Gilmar, criador e sócio do Instituto, esbravejou na imprensa contra o aumento “descontrolado” dos gastos do Fies.
Nem entraremos aqui nos privilégios imorais que muitos juízes e promotores gozam no país, frequentemente à revelia da lei.
O juiz Sérgio Moro, por exemplo, teve uma média salarial de R$57.800 mensais no último ano, muito acima do teto legal do Judiciário de R$33.763. É a regra nos tribunais.
Mas detendo-se apenas nas relações suspeitas entre o Judiciário e o poder econômico há muito o que se investigar.
É muito difícil crer, como pretende Eliana Calmon, que a Lava Jato dê este passo.
O mais provável é que continue apresentando a “República dos Procuradores” e a vara de Curitiba como os salvadores da nação e joguem seus detritos para baixo do tapete, ou da toga.
Moralizar o país, muito bem, mas desde que não chegue neles.