‘Graffiti Contra a Enchente’ reúne 300 artistas em Taboão
Grafiteiros de todas as partes do mundo se juntam para mudar a paisagem de bairro assolado por enchentes há 40 anos.
Em 2014, na cidade de Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo, uma intensa chuva atingiu o bairro do Leme. O Rio Pirajussara, que corre ao lado, mesmo com um piscinão, subiu tanto que atingiu o teto das casas, destruindo tudo o que a população local conquistou a duras penas durante muitos anos. Carros, móveis e mesmo pessoas foram levadas pela força violenta da natureza.
Esse foi o estopim para o graffiteiro Agnado Mirage, que ao observar água saindo pela janela da casa do seu parceiro Gamão Raxakuka, falou: “mano, isso não pode continuar assim. Vamos fazer um graffiti contra essa enchente”. De cara, Gamão respondeu contrariado: “eu perdi tudo e você ta pensando em graffiti, mano?”, mas depois de alguns dias, refletindo sobre tudo o que aconteceu, ele repensou e disse: “vamos fazer isso”.
Foi desse episódio que nasceu o Graffiti Contra a Enchente, evento de hip hop que chegou à sua 4ª edição em 2018, reunindo mais de 300 grafiteiros de todas as partes do mundo para mudar a paisagem do bairro assolado pelas enchentes há mais de 40 anos.
Neste ano, os organizadores estimam que eles chegaram a cobrir mais de 3 km de muros do bairro com graffitis, mudando não só o visual da quebrada, mas dando auto estima para a população e chamando atenção do poder público para a falta de estrutura do local para lidar com as chuvas, principalmente durante o verão.
“Não é fácil produzir um evento como esse. Fazemos tudo sem qualquer recurso governamental. São cinco meses de preparação, andando com as próprias pernas. São os recursos obtidos pelo coletivo Raxakuka, através dos graffitis, venda de produtos e parcerias na região que fazem tudo acontecer”, contou Mirage.
A maior missão do projeto sempre foi trazer auto estima e envolver a população com arte, cultura e educação, elementos muito distantes daquele cenário de destruição das chuvas e das constantes enchentes.
“O mais importante desde o início foi ver as pessoas emocionadas com o que estamos fazendo. É você ver um sorriso no rosto da pessoa que acabou de perder tudo o que conquistou em anos”, lembra o graffiteiro.
Comunidade
A população local admira e se interessa pelo movimento e se sente abraçada pelos elementos do hip hop. A grande maioria mora há muitos anos no bairro e já passou dezenas de vezes por enchentes. Ver como esse cenário pode ser diferente, mesmo sem apoio governamental, é um choque que prova ser possível fazer qualquer coisa quando se junta.
Moradora há mais de 50 anos do Leme, Maria Luiza de Oliveira relembra as muitas vezes em que viu a água arrastar os seus pertences. “A última vez a água chegou até o meu pescoço, superou o teto da casa. Perdemos tudo o que tínhamos e a prefeitura deu apenas um colchão para a minha família”, conta.
A situação só não foi pior porque, como muitos moradores da periferia sabem, nos momentos difíceis a comunidade se reúne e se fortalece mutuamente, dividindo o pouco que tem com os vizinhos.
Essa situação se repete também nos momentos de celebração, como o Graffiti Contra a Enchente. “Toda a minha família participa do evento e prestigia os shows. No que eles precisam eu também dou uma força. Aqui todo mundo se conhece no bairro, então nessas horas todo mundo se vê e reencontra antigos colegas”, diz Maria.
Com sorriso fácil, simpatia, uma apertada camiseta da Portuguesa de Desportos e um bonezinho de lado, o eletricista Alexandre da Silva, vulgo Buli, é mais um morador antigo do Leme. Com 44 anos, desde os 8 mora no bairro, e sempre conviveu com a situação difícil, temendo perder tudo o que conquistou a qualquer momento.
Ele conta que, com o tempo a região foi ganhando reformas que eram promessas de evolução, porém o problema nunca acabou. Uma dessas mudanças foi o piscinão. Com capacidade para 5 mil metros cúbicos de água, foi inaugurado em 2010 pelo então governador José Serra (PSDB), a um custo de mais de 41 milhões de reais.
“Antes o rio passava aqui no meio da rua, bastava chover um pouco e subia a água nas casas todas. Depois que construíram o piscinão não mudou muito, porque ainda chove e alaga. Ele consegue resolver só 50%, ainda não dá conta”, reclama.
Buli ajuda na parte elétrica do palco, que recebeu shows de rap, rock, samba, entre outros, além do espetáculo de dança Gumboot Dance, oriundo da África do Sul e protagonizado por moradores da comunidade.
“É muito bom ver isso acontecendo aqui, fica bonito demais. Eu gosto de morar aqui e ver gente de todo mundo fazendo arte é muito bom”, elogia o eletricista, que é dono de um ferro velho. O seu empreendimento também mudou de cara esse ano, recebeu desenhos na porta de entrada e nas paredes internas.
Durante a entrevista, ele teimou de chamar um amigo para contar da sua experiência de vida no bairro. Enquanto não conseguiu encontrar o parceiro de trabalho, não sossegou. Conversou com a esposa, os filhos, mas não achava. Deu uma volta, esperou um pouco e então, alguém gritou: “o Tiago chegou”. Buli correu para chamá-lo.
“Conversa com ele aqui, fala como a gente trabalhou junto e se fortaleceu lá no ferro velho”, pediu o eletricista. Tiago, com um óculos prata espelhado e uma camisa do Barcelona estava em casa. Ouvindo a música black dos falantes dançava feito malandro sambista. Chegou com o sorriso aberto.
“Hoje eu estou vendo isso aqui muito bonito, cheio de gente. É uma sensação que eu não consigo descrever, fico até sem palavras”, respondeu Tiago, que tem 34 anos de idade e mora a vida toda no bairro do Leme.
Casado e pai de 3 filhos, duas meninas e um menino, Tiago não tem profissão, trabalha naquilo que conseguir dinheiro para prover o sustento e não tem medo de investir: onde enxerga uma oportunidade de negócio e uma fonte de dinheiro, se joga para garantir a comida em casa.
Cobrador, servente, catador, vendedor, cortador de mármore, entre outros, a lista de profissões é longa e a cada ano cresce. “Se saí de um trabalho, não posso ficar parado, então logo corro para fazer outra coisa”, explica. “Quando entrei aqui no ferro velho, o Buli me ajudou muito para manter as coisas”.
O parceiro até se emociona ao contar das dificuldades desse período, porém com o esforço conjunto e a camaradagem, conseguiram se levantar. Hoje Buli trabalha sozinho no ferro velho e Tiago toca seu novo empreendimento, uma barraquinha de churrasquinho, em que também vende tortas, bolos, água, cervejas e bebidas quentes.
Enxergar essas relações e como elas constroem uma comunidade, dia a dia, ano após ano, são uma pequena amostra de como mesmo sob circunstâncias tão difíceis as pessoas conseguem encontrar força para evoluir e, ao mesmo tempo, resistirem às constantes enchentes.
Isso revela as potências das pessoas periféricas, inseridas em um cenário de descaso e violência de estado, e como elas são capazes de construir redes e empreendimentos tanto econômicos, quanto culturais e sociais nesses espaços.
Arte e hip hop conectando mundos
Artistas de todos os lugares do Brasil e do mundo deram a sua contribuição para o Graffiti Contra a Enchente, trazendo uma pluralidade de traços, desenhos e pensamentos para a grande galeria de arte a céu aberto do Leme.
São pessoas que, assim como a população local, tem problemas sociais em suas comunidades e através desse projeto se conectam a redes e têm experiências em que se inspiraram para trabalhar em seus territórios.
É o caso do Coletivo Manifestintação, do Jardim Nakamura, no Jardim ngela, extremo sul de São Paulo. Desde a primeira edição do Graffiti Contra a Enchente eles somam com os seus desenhos, e neste ano fizeram um painel de mais ou menos 20 metros, divididos em seis desenhos, um de cada integrante do coletivo: Quinho, Mundo Loko, Royal PHR, Curió e Espeto.
“Um rolê como esse agrega valor e cultura para a comunidade, conscientiza sobre a importância do meio ambiente em uma área vulnerável”, comenta Quinho. “Aqui desenvolvemos todas as linguagens do hip hop e envolvemos a quebrada. É um trabalho de formiguinha, que está crescendo ano a ano”, completou Ari, vulgo Mundo Loko.
Da outra ponta do país, a gaúcha Ana Scarcelli, de Porto Alegre (RS), também pintou no evento e se diz emocionada em trabalhar em algo tão grande para a comunidade, que além de dar auto estima, valoriza a natureza.
“A reação de todos é maravilhosa e o resultado nos vemos enquanto estamos trabalhando. Como quando, mesmo com todas as dificuldades de ser artista, uma criança de apenas 7 anos te aborda e fala que quando crescer quer fazer o que você faz”, relata Ana.
Convidada pessoalmente por Mirage durante um trabalho realizado junto em sua cidade, ela reforça a responsabilidade que é fazer parte de um evento com a representatividade e potência do Graffiti Contra a Enchente.
“Hoje estamos aqui dando foco na natureza e na cultura indígena na nossa pintura. Queremos levar essa mensagem para a população”, explica a grafiteira.
Drogas e política nas periferias
A roda de debate de lançamento do livro ‘Na Fissura’, do jornalista Britânico Johann Hari, que aconteceu no Graffiti Contra a Enchente, e foi promovido pela Agência Solano Trindade, trouxe elementos fortes para a discussão dessas questões e como a marginalização de territórios em nome da Guerra às Drogas contribui para esse processo.
Além do autor, a conversa ainda contou com a participação de Thiago Vinicius, da Agência Solano Trindade, Carmen Lopes, Assistente Social e Redutora de Danos, e Raull Santiago, do coletivo Papo Reto e Movimentos.
“A única forma que o estado chega aqui é através da Polícia Militar. Eles nos veem como um perigo, um risco para a sociedade. E o que a gente vê hoje são pessoas fazendo o que o estado não faz”, pontuou Thiago. “Esse muro da escola é um exemplo. Nunca foi pintado pelo estado e hoje está recebendo obras de arte da própria população”.
O agente cultural vê as ações como um revide da população contra o descaso do estado, no entanto com armas bem diferentes. “A nossa resposta vem através de ideias e conexões”. Mesmo assim, as vitórias são conquistadas pouco a pouco e nem sempre é possível dissuadir a juventude de entrar para o varejo das drogas, por exemplo.
“A gente procura falar a linguagem do jovem, que é o dinheiro. O jovem anseia ser incluído na sociedade do consumo, ele quer ter o tênis que está na TV. Se ele não tem nada, a oportunidade dele ter qualquer coisa vai ser através do tráfico. Ele está consciente do que está fazendo, não está sendo enganado”, explica Thiago.
Raull Santiago, que é morador do Complexo do Alemão, enxerga uma situação semelhante nos morros cariocas e que exemplos como o dele e de Thiago, de terem resistido à entrarem nesse mercado, tanto os fortalece individualmente, quanto fortalece o coletivo, ao indicarem outras possibilidades de acessarem o consumo.
“Você vê muitos jovens curtindo um evento como esse, aprendendo o que é cultura e arte, sorrindo, tendo um lazer. Fomos ensinados a vida toda que isso não é para a gente, que não é para gente da favela”, reflete Raull. “Agora, ao mesmo tempo que entendem o que é a violência, eles sabem o que é arte e cultura. Com isso, estamos plantando sementes para o futuro”.
Apesar disso, o estado está muito distante de criar mecanismos para fomentar esse trabalho. Ao contrário, o apego ao partidarismo faz com que muitas políticas implantadas por uma gestão sejam descontinuadas pela posterior, principalmente se forem de partidos diferentes. Com isso, as mudanças são pontuais e pouco efetivas.
É o que aponta Carmen Lopes em relação às políticas de drogas no Brasil. Para ela, “o Brasil não está preparado para políticas públicas” em função do personalismo dos governantes. Quando se trata de drogas, o moralismo da opinião pública aprofunda esse problema.
Quando se trata de crack, por exemplo, droga associada à miséria e pobreza, são poucas as medidas de longo prazo adotadas pelo poder público. E quando há, duram pouco, pois tem pouca aceitação do eleitorado conservador.
“O crack hoje esta em um patamar de vilão na sociedade, mas quem ocupa esse papel de fato é o álcool”, revela Carmen. “O crack é usado por pobres, e se estamos está crescendo o número de pobres, vai haver um aumento natural no consumo. Se tivéssemos mais ricos, o aumento seria da cocaína”.
A experiência violenta que as pessoas da periferia tem com as drogas, em função da atuação da Polícia Militar nos territórios, faz com que todos tenham uma percepção de medo e vergonha do consumo. Com isso, não há experimentação de drogas sem a sombra da criminalização.
A criminalização, no entanto, não é sobre as drogas, mas sobre territórios e populações. Essa marginalização gera falta de informação e cria problemas como o uso abusivo e de risco de substâncias químicas, a desestruturação familiar e o preconceito da própria comunidade.
“Quando um usuário de crack está lá no centro, você já sabe que ele foi expulso da quebrada”, conta Thiago. “Aqui você até pode ver alguém fumando um baseado na rua, mas usando crack não. Se for pego, os próprios moradores são capazes de bater nele. Isso não é aceito aqui”.
“A violência tem relação direta com a droga e atinge a todos na comunidade, independente de ser ou não usuário. Isso marca o significado das drogas na nossa vida e rotina”, salienta Raull. “As pessoas não conseguem enxergar possibilidades positivas no consumo de drogas”.