Por Juliana Gomes, de @comidasaudavelpratodos e @jornaldoveneno

Minha palavra vale um tiro/Eu tenho muita munição.
(Capítulo 4, versículo 3. Racionais MCs)

Uruçuí tem 25 mil habitantes, um terço de seus moradores em áreas rurais e muitas contradições. Ostenta a segunda maior renda do Piauí e um aeroporto, mas também apresenta uma das grandes taxas de analfabetismo (13,3%) do estado e os ganhos dos trabalhadores não costumam passar de R$1.900 por mês.

Na contramão do país, onde as cidades mais ricas costumam concentrar grandes indústrias, o pequeno rincão nordestino segue outra tendência nacional que ajuda a explicar seus paradoxos: a recente expansão da agricultura exportadora.

As águas do Rio Parnaíba estavam acostumadas a irrigar as roças de feijão, abóbora e macaxeira pra forrar o estômago de quem segue na lida. Mas agora enchem de vida as grandes extensões de uma leguminosa sem vínculos com a cultura alimentar brasileira e de um cereal muito presente nas festas de São João, mas cujas sementes são manipuladas do outro lado do Atlântico.

As condições pro plantio de soja e milho transgênicos são tão favoráveis que a holandesa Bunge instalou uma sede na cidade. Multinacional que já distribuía commodities agrícolas nos tempos da escravidão, a consagrada possui uma dívida de R$17 milhões com o governo piauiense.

Também não faltam indivíduos dispostos a passar o trator em cima das legislações ambientais pra engordar a conta bancária. É o caso do fazendeiro sulista Eleotério Bachi, indiciado por invadir e desmatar uma área de preservação permanente no município. O cidadão de bem ainda tem no currículo outro processo por danos ambientais no estado do Paraná.

À medida que a princesinha do agro piauiense derruba árvores pra produzir ração que vai alimentar os bichos dos gringos, ela também vem chamando atenção de outro setor, o da saúde. No Hospital Regional de Uruçuí, a equipe de obstetras tem notado um aumento no número de gestantes entre 20 e 30 anos que chega com sangramentos ou com ultrassom indicando que seu feto não apresenta batimentos cardíacos.

O tema instigou o sanitarista Inácio Pereira Lima. Pra sua pesquisa de mestrado em Saúde da Mulher pela Universidade Federal do Piauí, o moço coletou amostras de leite materno de quem pariu entre 2016 a 2017 em hospitais de Teresina, a capital, e dos municípios de Uruçuí (maior área agrícola do estado) e Oeiras (menor área agrícola).

Resultados do estudo: 1 em cada 4 das lactantes já sofreu um aborto espontâneo, 83% tinham resíduos de glifosato no leite e 14% de seus bebês nasceram com baixo peso, o dobro da média nacional. Mas esse grupo de mulheres não atuava diretamente nas fazendas. Elas faziam a limpeza, tinham parceiros que trabalhavam nas plantações, viviam a poucos quilômetros das roças de soja ou apenas consumiam alimentos contaminados.

Apenas R$38,70 e disponível pra qualquer um.

Esse não é o primeiro nem o último estudo a encontrar resíduos de agrotóxicos no leite materno ou associar a questão a abortos espontâneos. Outro estado de forte tradição agrícola também tem colhido dados tenebrosos nesse sentido. No livro Desastres Sócio-Sanitário-Ambientais do Agronegócio e Resistências Agroecológicas no Brasil, publicado em 2022, há um estudo da Universidade Federal do Mato Grosso sobre o tema.

Como no Piauí, a pesquisa chegou a maiores taxas de abortos espontâneos nos municípios que colhem mais grãos. Foram 2.700 casos em mulheres que manejavam agrotóxicos no trabalho ou vivam próximo a lavouras entre 2016 e 2018.

Os pesquisadores observaram que os números podem ser muito mais altos, já que nem todos são notificados pelos equipamentos de saúde. Afinal, num país que cogita a ideia de criminalizar uma criança por fazer um aborto decorrente de um estupro, todas as nuances que permeiam o tema viram tabu, geram constrangimento, medo de retaliação.

A mesma tendência tem aparecido nas bandas do estorvo do Sérgio Moro, que também se destaca na produção de soja e, consequentemente, na aplicação de glifosato. Um estudo da Universidade Estadual do Oeste do Paraná apontou que pessoas que já sofreram intoxicação por agrotóxicos podem ter 5 vezes mais chances de sofrer um aborto espontâneo ou ter um filho com má formação congênita.

Apenas referente a resíduos de veneno no leite materno, são diversos os estudos publicados há aaaaanos no Brasil. O mais chocante pra mim foi a dissertação de um médico pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Rodrigo Fernando Marandola coletou 100 amostras de um banco de leite da cidade de Tupã, em São Paulo, e encontrou resíduos de glifosato em todas.

T-O-D-A-S.

Só mais uma vez: todas.

A maior parte das lactantes vivia em área urbana e não praticava nenhum tipo de manejo agrícola, ou seja, a contaminação se deu por ingestão de água ou alimentos envenenados mesmo.

Esse tal de glifosato é carro-chefe e galinha de ovos de ouro da estadunidense Monsanto, agora pertencente à alemã Bayer. De nome comercial Roundup, estamos falando de um dos negócios mais geniais e úteis desde o pós segunda guerra mundial.

Trata-se de um herbicida, quer dizer, um veneno que mata mato. Os fazendeiros despejam a dádiva nas lavouras pela mesma razão que prefeituras usam em praças e Silvas, como nós, aplicam nas suas calçadas: pra evitar que plantas indesejadas cresçam ali.

Então não precisa capinar. Não precisa pagar jardineiro. Não precisa contratar ninguém. Não precisa ler o que a terra tá dizendo. É possível controlar exatamente o que vai nascer naquele pedaço tacando um remedinho. Não é chique? O puro suco do desenvolvimento e do progresso? Afinal, óbvio que o homo sapiens é superior a todas as outras espécies e merece dar as cartas, né?

Da mesma forma que a Coca defende seu refrigerante e a Danone, os seus ultraprocessadinhos de estimação, dona Bayer/Monsanto alega que o produto é seguro, que basta seguir as recomendações das embalagens. Pra isso a empresa vem usando todo o seu arsenal econômico e geopolítico pra pressionar cientistas, governos e agências reguladoras a seu favor.

Venha pra essa família agrotóxica você também.

O mundo quase veio abaixo depois que a Organização Mundial da Saúde classificou o veneno mais vendido como potencialmente cancerígeno em 2015. Desde então, a pilha de processos responsabilizando a empresa por danos à saúde disparou, chegando a 125 mil só nos Estados Unidos.

Assim como diversos outros venenos, o glifosato interfere no nosso sistema endócrino e tá ligado a casos de abortos espontâneos, má formatação fetal e infertilidade por ser mutagênico e teratogênico. Traduzindo: é um produto químico capaz de causar danos ao DNA, alterar o óvulo e o espermatozoide.

Vários países fazem de tudo pra frear essa desgraçada e não conseguem por pressão do agrobusiness. Isso porque abandonar o glifosato requer uma grande transformação na maneira como lidamos com a terra desde os anos 60. Não dá pra parar de despejar do dia pra noite. A gente precisaria substituir a função do herbicida por máquinas e pessoas. Diversificar as espécies plantadas. Democratizar o acesso à terra. Resumindo, sacudir o feudo conservador que governa o planeta há séculos.

Portugal conseguiu proibir o uso de substâncias à base de glifosato apenas em espaços públicos. Bélgica e Holanda não vendem mais pra uso particular. Luxemburgo e Colômbia proibiram e voltaram atrás, enquanto México, Alemanha e França colocaram metas pra abolir a aplicação, mas sempre acabam adiando essa data. No momento, apenas dois países conseguiram fechar o cerco total: Sri Lanka e Vietnã.

Não achei o contexto da foto, mas adorei a inclusão do “go vegan” no protesto hahaha.

Em solo brasileiro, a treta vem de anos. A partir de 2008 a mobilização em cima da Anvisa pra reavaliar a liberação do produto químico ganhou força. Em 2018, o Ministério Público Federal emitiu um parecer cobrando o banimento do veneno por conta de seus riscos eminentes à saúde. A Justiça acatou, o glifosato chegou a ser proibido, mas poucas semanas depois uma decisão em segunda instância acabou com a nossa redenção.

No meio de tiro, porrada e bomba disparados por agrodeputados e organizações sojeiras, a agência reguladora publicou o resultado da sua reavaliação em 2019: concluiu que o produto continua seguro e não causa câncer. Adivinha quem tava morando no Palácio do Planalto na época e indicou o presidente da Anvisa? Deus, pátria, família. E agora: liberdade.

Não parou por aí, não. O órgão ligado ao Ministério da Saúde reduziu a classificação de toxicidade de 93 produtos que contêm glifosato na composição. Desde então, nenhum deles é considerado “extremamente tóxico” pela Anvisa.

Já em 2022, a entidade publicou novas regras sobre o uso da substância após outra reavaliação, que dessa vez contou com consulta pública. O bonito continua circulando, mas agora com restrições, especialmente com o objetivo de evitar a dispersão pra fora das áreas aplicadas.

Como miséria pouca é bobagem nesse país, ainda sofremos uma derrota estratosférica no ano passado. Na verdade, “derrota” é o Oscar que a rainha Fernanda Montenegro perdeu pra Gwyneth Paltrow, né. Tô falando de outra coisa. Talvez rasteira, voadora e tapa nas fuças caiba mais aqui, sei lá.

O fato é que depois de 20 anos tramitando na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 6299/2002 foi aprovado também pelo Senado com mudanças, em seguida recebeu a sanção do esposo da Janja com alguns vetos, derrubados no início desse ano pelo congresso. É o nosso inesquecível e sempre supracitado PL DO VENENO.

Se a farra já rolava com a Anvisa e o Ministério do Meio Ambiente compondo a tríade responsável pelo registro dos agrotóxicos, imagine após o projeto. A função de registrar, reavaliar e fiscalizar ficou restrita apenas ao Ministério da Agricultura. Restou aos outros órgãos um papel de “consulta” e “aconselhamento”. É como se os novos produtos que chegam ao mercado ou a reavaliação dos antigos fossem autorizados automaticamente, né. Um escárnio.

Só é estranho que justamente os integrantes da Câmara dos Deputados que se autointitulam “pró-vida”, os guardiões dos fetos, os defensores da família e da liberdade, os bastiões da fé, se mobilizam em favor do glifosato e seus parças.

Nas últimas duas semanas, me joguei na empreitada insalubre de pesquisar a atuação no congresso e as redes sociais de 32 deputados que assinam a autoria do PL 1904. Aquele que altera o Código Penal e equipara as penas para abortos realizados após 22 semanas às previstas para homicídio simples.

O documento também determina que em casos de viabilidade fetal, mesmo resultantes de estupro, o aborto não será permitido. Em linhas gerais, a barbárie ganhou a alcunha de PL DO ESTUPRO porque abre um precedente inacreditável: a punição pra uma mulher abusada que fizer um aborto seria maior que a do próprio estuprador.

A deputada paraense Renilce Nicodemos, do MDB, pediu pra sair fora da listinha de coautores do projeto quando a coisa estourou e o nome “PL do Estupro” caiu na boca do povo. Então, são 31 alecrins dourados que assinam a proposta de mudança na legislação.

Foto: Emmanuel Denaui

Do total de deputados, a maioria chegou a Brasília surfando na onda do bolsonarismo e integra o Partido Liberal, o PL. São representantes da “nova política”, falam alto, muitos frequentam clubes de tiro e alimentam seu exército de milhares de seguidores diariamente com os mesmíssimos conteúdos pautados no ódio e pânico moral: corrupção, aborto, pedofilia, porte de drogas e LGBTfobia.

Entre uma publicação segurando um fuzil e outra de fetos mal formados, há sempre alguma palavra em defesa de pessoas com deficiência, como a comunidade surda e autista, pra ficar menos feio.

A turma é composta por 25 integrantes da Frente Parlamentar Agropecuária, o nome oficial da bancada ruralista. Bancada esta que trabalha contra a demarcação de terras indígenas e quilombolas, e que tenta a todo custo aprovar o Pacote da Destruição. Esse combo de projetos tóxicos que circula no congresso inclui, inclusive, uma proposta que concede anistia a desmatadores. Eita, como defendem a vida!!!! São eles:

·         Abilio Brunini (PL-MT)

·         Bia Kicis (PL-DF)

·         Bibo Nunes (PL-RS)

·         Capitão Alden (PL-BA)

·         Carla Zambelli (PL-SP)

·         Coronel Fernanda (PL-MT)

·         Cristiane Lopes (UNIÃO-RO)

·         Dayany Bittencourt (UNIÃO-CE)

·         Delegado Paulo Bilynskyj (PL-SP)

·         Delegado Ramagem (PL-RJ)

·         Dr. Frederico (PRD-MG)

·         Dr. Luiz Ovando (PP-MS)

·         Eduardo Bolsonaro (PL-SP)

·         Evair Vieira de Melo (PP-ES)

·         Filipe Martins (PL-TO)

·         Fred Linhares (REPUBLICANOS-DF)

·         Greyce Elias (AVANTE-MG)

·         Julia Zanatta (PL-SC)

·         Junio Amaral (PL-MG)

·         Lêda Borges (PSDB-GO)

·         Mario Frias (PL-SP)

·         Nikolas Ferreira (PL-MG)

·         Pezenti (MDB-SC)

·         Simone Marquetto (MDB-SP)

·         Sóstenes Cavalcante (PL-RJ)

As bençãos que integram apenas a bancada evangélica também costumam legislar de acordo com os interesses dos gigantes do agro. Fui atrás de como cada um dos 31 coautores do PL do Estupro se posicionou no projeto que tirou da Anvisa a responsabilidade pela autorização de novos agrotóxicos. Dos 25 da bancada ruralista, óbvio, o SIM foi unânime.

De resto, Ely Santos (Republicanos-SP), Pastor Eurico (PL-PE), Cezinha de Madureira (PSD-SP) e Eli Borges (PL-TO) também votaram pra flexibilizar a aprovação de venenos. Os outros não atuavam na Câmara na época da votação, então não sabemos como se posicionariam. Mas é de se desconfiar, né.

Maconha não, pessoal. Perigosíssimo. Mas pra agrotóxico no leite materno eu digo SIIIIM!

Confesso que um dos perfis dessa laia me causou certo fascínio. Passei hooooras estudando os conteúdos do Instagram da Coronel Fernanda, do PL do Mato Grosso. Da listinha dos 31 que querem criminalizar as vítimas de estupro, a parlamentar é quem mais se divide de forma equilibrada entre as pautas do agro e a questão do aborto.

Imagem: Reprodução Instagram/Coronel Fernanda

Ao contrário de outras deputadas cristãs, a cor que predomina entre suas postagens não é o rosa, tampouco são as fotos de filhos e familiares. Ela também não gosta da palavra “empoderamento”.

Em seu primeiro mandato em Brasília, a parlamentar escolheu passar uma imagem mais dura e séria. Suas publicações focam nas cores verde e amarelo, mas o preto é quem predomina.

Os povos indígenas e os assentados da reforma agrária tomam bastante da sua atenção nas redes sociais. Mas ao contrário dos sem terra, a posição da deputada varia em relação aos povos tradicionais. Ao mesmo tempo em que insiste na defesa do marco temporal e expõe casos de indígenas que entraram em conflitos com fazendeiros de forma negativa, Coronel Fernanda demonstra preocupação com o povo yanomami e sempre usa a #LulaGenocida.

Também achei instigante que outros defensores do PL do Veneno e coautores do PL do Estupro não fazem referência ao tema do aborto nas suas redes. É o caso, por exemplo, da deputada Lêda Borges, do PSDB de Goiás, e de Abilio Brunini, do PL do Mato Grosso. Ambos escolherem uma linha menos afrontosa que seus colegas, mas não deixaram de contribuir de alguma forma para que mulheres sofram abortos decorrentes da exposição a agrotóxicos.

Em suma, o senhor presidente da Câmara dos Deputados escolheu esse projeto a dedo, de caso pensado. Arthur Lira sabia que precisaria recuar diante da comoção nacional, mas insistiu em colocar a proposta pra ser votada em regime de urgência no dia 12 de junho , num trâmite que durou 23 segundos, porque a iniciativa lhe renderia frutos.

Teremos eleições pra presidência da Câmara nos próximos meses e pra prefeitos e vereadores em outubro. Seu Lira, então, se inspirou nas tramoias dos episódios de House of Cards. Ressuscitou um projeto polêmico que forçaria o governo a se posicionar contra, enquanto fazia um agrado à bancada da Bíblia, da Bala e do Boi, que é a maioria no congresso. Desse jeito, o consagrado reúne mais aliados pra eleger seu sucessor e queima os possíveis opositores.

A mesma estratégia é usada pelos parlamentares que precisam inflar os féis pra daqui a pouco indicar seus candidatos municipais. E essa gente só consegue votos aterrorizando as pessoas com notícias falsas e a ideia de uma eminente ditadura dos “maus costumes”.

A maneira como alguns grupos políticos e religiosos utilizam o conceito de “vida” é somente um armadilha ideológica. Às vezes cabe defender alguns fetos, mas quando a coisa esbarra nos interesses de quem bancou suas campanhas, não rola proteger as florestas, as vidas indígenas, pretas, periféricas, LGBTs, de crianças vítimas de violência e pessoas que colhem as consequências da contaminação exacerbada por agrotóxicos, especialmente mulheres.

Surpresa não é, né? Mas agora temos mais exemplos escancarados de como a corja conservadora que domina o congresso se utiliza da pauta do aborto de forma oportunista. Os princípios servem aos interesses.

Pronto! Nem dei oi porque tava com fogo no rabo da informação, uma angústia, um destempero. Só queria engatar e não parar mais. E também nem incluí nenhum quadro nessa edição porque não tem clima pra falar de mais nada.

Pra desmantelar as audácias da indústria de alimentos, a gente precisa continuar viva. E justamente por defender a vida de todas as pessoas, animais e biomas, o Jornal do Veneno endossa o grito feminista: educação sexual pra prevenir e aborto seguro pra não morrer.

Ainda bem que a gente tem a gente, né?

Texto publicado originalmente em 22/06/2024 no Jornal do Veneno