Genocídio indígena e desmatamento
Único plano de Bolsonaro é desmatar e deixar matar na Amazônia.
“É um genocídio institucionalizado”. Sonia Guajajara está certa, e não há exagero no que ela declarou no Jornal Nacional na quarta-feira 15 de julho, com mais fundamento ainda do que as falas de Gilmar Mendes que provocaram militares: estamos vivendo um genocídio dos povos indígenas. O genocídio está institucionalizado. Já saiu na TV Globo e deu até no Jornal Nacional.
Coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sônia Guajajara mostrou, tal como a APIB havia fundamentado em Ação de descumprimento de Preceito Fundamental que apresentou no STF, junto com diversos partidos de esquerda, que há recursos para apoiar ações emergências para salvar vidas, mas, por questões políticas, deliberadamente não estão sendo. Enquanto o Ministério da Saúde está ocupado por militares que “se associaram ao genocídio”, nas falas de Mendes, a Funai e a Secretaria Especial de Saúde Indígena recebem enxurradas de denúncias. Entre elas, de promover o despejo de cloroquina nas aldeias — uma acusação recorrente de lideranças indígenas que fez com que o secretario da Sesai ameaçasse os indígenas que seguissem denunciando (ao invés de prometer investigação das acusações).
O genocídio indígena caminha ao lado do desmatamento e dos incêndios que destroem a Amazônia — mas também o Pantanal e o Cerrado com a expansão da soja e da pecuária. Se a morte de indígenas está sendo monitorada por boletim organizado pela APIB junto do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, onde no dia 15 de julho identificaram 517 óbitos, 15180 indígenas contaminados e 132 povos atingidos, a devastação das árvores está sendo denunciada por satélites. Imagens que sobrevivem mesmo às intervenções políticas e militares no INPE.
Após a pressão de investidores internacionais, que atingiram diretamente grandes empresários nacionais, o governo teve que dar uma “resposta” sobre um plano de controle do desmatamento. Em entrevista coletiva após a videoconferência na sexta-feira 10 com 38 empresários que cobraram um plano de controle do desmatamento, grupo que reúne grandes companhias em atividades no país, o vice-presidente general Mourão, Coordenador do Conselho Nacional da Amazônia Legal, foi particularmente sincero: não há plano algum de diminuir o desmatamento.
O país que mais matou ambientalistas no mundo inteiro na última década, que viu explodir o número de conflitos desde a chegada de Bolsonaro no poder junto com a explosão dos índices de desmatamento, que está sendo interpelado no Tribunal Penal Internacional por genocídio, foi questionado por grandes investidores internacionais que administram cerca de 4 trilhões de dólares e também por grandes empresas que atuam no país pela devastação ecológica. E os investidores e os empresários foram tratados pela forma Bolsonaro de governar: com cinismo, mentiras explícitas e gritantes, indisfarçadas, e mensagens dirigidas à sua base de apoio, que é o que importa para o governo.
O diálogo entre o governo Bolsonaro e investidores internacionais e grandes empresários brasileiros revela uma tensão política disfarçada por palavras mais ou menos educadas. Há uma disputa aberta entre empresários bolsonaristas, que querem aproveitar o momento para passar a boiada com Salles, e empresários que pensam numa forma mais sustentável e democrática de fazer seus negócios e sabem que desmatamento e genocídio podem ser prejudiciais à saúde, sobretudo decorrente da pressão internacional.
Sem rir na sua fala, o general disse acreditar que o Brasil irá adotar um sistema de common law nos crimes ambientais em que os bandidos terão consciência da ilicitude, “até a turma que desmata se dê conta que não dá mais para fazer isso”. É para esperar que se deem conta que não dá para devastar mais do que o índice “aceitável” de desmatamento — ou seja, expressou ainda a tolerância explícita da devastação.
Há, portanto, uma vontade manifesta do governo em deixar desmatar. E não há, no momento, nenhum plano de combate ao desmatamento. Como já se sabia: está liberado o desmatamento no que depender das ações do governo — assim como está liberado o garimpo, “no que depender” do governo, como repete Bolsonaro em vídeos com apoiadores, a grilagem, o corte ilegal de madeira nativa, etc.
Por outro lado, além do jogo de cena bolsonarista, a pressão de investidores internacionais de fundos que administram 4 trilhões de dólares revelou que o desmatamento no Brasil não é coisa de pequenos e pobres que vão de forma isolada desmatar para ter uma terra para trabalhar, e sim parte do sistema internacional de expansão desenfreada do capital. Com a crise econômica a a financeirização da natureza, cresceu uma corrida do capital para terras, em um movimento global de grilagem de terras, assim como outros investimentos em recursos naturais. O que, por sua vez, pressiona a espoliação de comunidades que vivem em territórios objeto dessas novas conquistas e acumulações primitivas.
Já os sinais de apoio para as bases do bolsonarismo que operam nas frentes de ataque contra a floresta, povos indígenas e quilombos, as “fronteiras”, surgem justamente em meio ao genocídio dos povos indígenas e quilombolas. Há uma relação, como descrevo nesse artigo recém publicado na revista Ambiente & Sociedade, entre epidemias e guerras de conquista: “A conquista dos territórios indígenas e doenças epidêmicas sempre andaram lado a lado ao longo da história do Brasil. A atual pandemia do novo coronavirus que está devastando comunidades indígenas segue essa violenta estratégia de conquista. Meu argumento é que o racismo estrutural que conduziu a mais de 200 mortes de pessoas indígenas nos primeiros meses da pandemia deve ser visto não como resultado de atos irresponsáveis de omissão, mas como atos de genocídio”.
Aquele um terço de seu eleitorado que pratica esses crimes de invasão de terras e desmatamento, certamente, saiu desse embate entre o governo e investidores e empresários seguro de que o governo está mais preocupado em garantir o seu apoio do que em planejar uma alternativa econômica. Isso não é por acaso, mas uma forma de governar que caracteriza o governo Bolsonaro: tentar influir na legislação e na aplicação da lei para beneficiar quem o apoia diretamente, e não de tentar governar para todos. Mourão teve a capacidade de falar fingindo preocupação para os estrangeiros e para os grandes ricos do Brasil, e fazer esse discurso planejado sem ofender a fiel base de apoio bolsonarista nas fronteiras da Amazônia.
Talvez os fundos e os empresários tenham percebido a mentira, e a economia nacional irá sentir o impacto, já daqui uns meses. Também há o risco de que o interesse maior desses grandes capitalistas seja no lucro, e que queiram apenas aparecer na opinião pública como se estivessem preocupados com o destino da Amazônia. Prefiro acreditar que não. Mas é assim que pensa a parte dos empresários bolsonaristas. É, por exemplo, o que espera Rubens Ometto, em entrevista que deu para a Folha. Para ele, como para o governo, é apenas uma questão de “melhorar a imagem”.
Ometto preferiu uma saída utilizando mesmo argumentos de seus antepassados que enriqueceram na ditadura militar, o da conspiração internacional. Daí sua preocupação com uma disputa contra agricultores internacionais fazerem uso das denúncias para “melar acordos” que beneficiariam o extrativismo dos recursos naturais no Brasil. É um discurso que se encaixa na forma de governar do bolsonarismo: a ministra Damares declarou na reunião de 22 de abril que indígenas estariam se auto infectando de propósito para prejudicar Bolsonaro. Já é praxe desviar um questionamento objetivo para uma fantasia paranoica.
Tradicional família de São Paulo, os Ometto montaram nos anos 1960 o latifúndio Agropecuária Suiá-Missu Ltda, no Mato Grosso, associados ao colonizador (também conhecido hoje em dia como “grileiro”) Ariosto da Riva. Acontece que nessa terra vivia um grande grupo do povo Xavante, grandes guerreiros indígenas conhecidos como os habitantes de Maraiwatsède (referência dos xavantes à Amazônia, como mata misteriosa, mata desconhecida). Após o golpe de 1964, Orlando Ometto, tio de Rubens, conseguiu apoio da FAB e da Igreja Católica para transferir de forma forçada, segundo o Relatório da Comissão Nacional da Verdade, 263 indígenas para uma missão católica localizada há mais de 400 quilômetros de distância. Assim que chegaram, os xavantes foram acometidos por uma epidemia de sarampo e ao menos 83 morreram nos primeiros dias. Na página 257 do Tomo II do Relatório consta: “A transferência dos 263 remanescentes de Marãiwatsédé foi realizada a pedido de Orlando Ometto (cf. Davis, 1978, p. 148), por meio de aviões da FAB, com permissão do SPI, segundo Autorização de 11 de julho de 1966, e com apoio de padres salesianos.”
O grito de empresários bolsonaristas do agronegócio e da mineração de apoio a Bolsonaro revelou que o capital internacional está diretamente ligado à economia de fronteira na Amazônia através das ações em bolsas. Não há toa, a APIB organizou uma grande jornada na Europa, chamada Sangue Indígena: Nenhuma Gota a Mais, com lideranças indígenas de todo o país, pedindo boicote a produtos brasileiro ligados ao agronegócio e mineração. Há apenas uma série de intermediários nesse caminho — uma cadeia de impacto que liga um supermercado em Estocolmo até uma fazenda em São Felix do Xingu, no Pará.
Estes mundos não são paralelos, mas estão diretamente interligados, e é por isso que a pressão de investidores internacional deu resultado tão direto. Se cortar os investimentos dos fundos em empresas como as controladas por empresários bolsonaristas, que não se importam se irão morrer cinco ou sete mil pessoas (aqui detalhes da experiência amazônica desse caso) na pandemia que já matou mais de 70 mil pessoas, sendo pelo menos 500 indígenas, o resultado no financiamento das atividades ilegais pode ser direto.
Ninguém come ouro, como já denunciaram os Yanomami. O alto preço do ouro no mercado financeiro é um dos fatores que empurram pobres garimpeiros para a floresta, que por sua vez são financiados por pequenas mineradoras ilegais em projetos de sociedade de crime para comprar as máquinas que hoje em dia se utiliza nos garimpos. Bolsonaro tem agido de todas as formas para receber os garimpeiros ilegais, demonstrar apoio, e reprimir agentes do Ibama que agem em operações de repressão a crimes ambientais. Ao mesmo tempo, garante apoio da Faria Lima para os principais investimentos na bolsa no Brasil: ouro, agronegócio, grande mineração. Nisso, além do desmate da floresta, vão junto rios contaminados e assoreados, e toda uma rede de vida.
Bolsonaro tem promovido o caos no campo, incentivado garimpeiros a invadir as terras indígenas Kayapo, Yanomami, Apiterewa, Munduruku, incentivado milícias rurais a se armarem ainda mais e ameaçar de morte defensores ambientais, garantido apoio a madeireiros ilegais, e é no caos que seu governo consegue garantir mais base de apoio e governar de modo mais eficaz.
Não há acordo possível e não haverá acordo justo diante da anti-política da ideologia fascista de guerra — Mourão disse, repito, não há plano algum de controle do desmatamento. E os militares associados a Bolsonaro e ao genocídio não aceitam nem retroceder, nem serem enquadrados. Por isso, é difícil acreditar que os fundos de investimento e empresários irão conseguir enquadrar Bolsonaro: Bolsonaro não irá se enquadrar. Como mostrou o filósofo Marcos Nobre, no recém lançado Ponto Final (ed. Todavia), é assim que ele governa, e é assim que vai tentar seguir governando, de forma cada vez mais autoritária e violenta. Ou estes investidores serão cumplices do genocídio e da destruição, e Bolsonaro irá utilizar a seu favor na construção de seu projeto autoritário, ou então irão ter que abrir mão de lucros para contribuir com as diferentes frentes em defesa da vida e da democracia que estão emergindo no país.
Sonia Guajajara falou para todo mundo ouvir: “para nós é sim um genocídio.”
E agora?