Gabrielzinho do Irajá: talento da nova geração do samba no partido alto
Cantor, compositor e ator, Gabrielzinho do Irajá, aos 23 anos faz parte dos principais sambistas da nova geração. fala sobre as características dessa geração e as dificuldades que manifestações afrodescendentes efrentam para se apresentar no RJ
Fenômeno artístico, Gabrielzinho do Irajá desde os dois anos e meio de idade caminha lado a lado com a música. Após complicações no seu nascimento prematuro, perdeu a visão mas foi apurando a cada passo sua sensibilidade auditiva. Foi no Instituto Benjamin Constant, onde estudava, que a novelista Glória Perez o convidou no ano de 2005 para atuar em América, novela da TV Globo, ainda criança. Desde então sua carreira deslanchou e seu talento foi ganhando cada vez mais reconhecimento e respeito.
Cantor, compositor e ator, Gabriel Gitahy da Cunha, cria de Irajá, no subúrbio carioca, aos 23 anos faz parte dos principais sambistas da nova geração. Está entre os artistas que compõem no Samba Social Clube, que dá visibilidade aos novos talentos. Tem até o momento dois álbuns, mas não faltam projetos e novas composições na sua trajetória. Acabou de participar do novo CD do Zeca Pagodinho. Fez parcerias com grandes nomes do samba e participou de diversos shows e rodas com os artistas mais consagrados do cenário nacional.
Na entrevista a Ninja, ele fala sobre as características da nova geração do samba e as dificuldades que as manifestações afrodescendentes estão enfrentando para se apresentar no Rio de Janeiro. Com a presença de um governo evangélico que mistura religião e política, setores culturais não estão recebendo apoio ou qualquer atenção dos poderes públicos para a realização dos seus projetos. Além das críticas ao governo local, ele também se mostra preocupado com as declarações do presidente Jair Bolsonaro e seus filhos contra a democracia que, segundo ele, é o pilar básico de toda sociedade.
Como você percebe essa renovação geracional do samba como parte do processo?
É um processo natural, a bola tem que rolar. O samba começou com o Donga, Sinhô, João da Baiana, Pixinguinha, os caras fizeram a parte deles, foram perseguidos e espancados pela polícia na época que o samba era vadiagem. Depois vem uma turma mais para cá, o Candeia, João Nogueira, Clara Nunes e assim sucessivamente. A galera do Cacique nos anos 80, Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Jovelina. Depois Dudu Nobre com a geração deles e agora é a nossa vez, daqui a dez ou quinze anos serão outros, segue o baile. Tem um moleque, o Enzo Belmonte, que já é de outra geração, tem dezoito anos e canta samba que nem gente grande. Então é um processo natural, hoje em dia está mais difícil porque a mídia está colocando muita coisa que não condiz com a nossa verdadeira cultura. Mas o samba é ouvido nas comunidades, nos bares, os pais passam aos seus filhos e assim a gente vai fazendo. Cada vez tem mais gente e novos sambistas, isso não morre e vai continuar se perpetuando eternamente.
E o ritmo, melodia, a qualidade musical, você acha que mudou muito nesse processo? É possível caracterizar esse momento atual?
Sempre muda, o samba começou maxixado, depois vem o laiá laiá (deu exemplo cantando os dois estilos), vem o cacique com repique, banjo, tantã, criando as características dos anos 80, dai vem o pagode que apesar de tudo é um tipo de samba, e agora estamos cantando muito amor ou então sobre a verdade da comunidade. Tema de superação ou amor, então essa é uma das características que mais vejo hoje em dia. Na batucada a garotada está cada vez estudando mais, hoje em dia tem muita viradinha com os instrumentos. O músico tem sobressaído, antes eles eram mais acompanhantes, isso cria uma dinâmica muito legal, o artista interage com a banda. Você está cantando aí o violão dá uma baixaria, vem o repique e faz uma virada, o tantã faz outra, o pandeiro, etc. Essa é uma característica forte da geração de agora.
O que motiva tuas composições e quais são seus métodos de criação da canção?
O método é inconstante, tem aquele dia que você está em casa e uma palavra dá uma música, e tem aquele dia que você marca com seu amigo para fazer um samba e sai dois ou três, ou um pela metade e tem que voltar no outro dia. O samba vem na hora que Deus manda, nós compositores somos só instrumentos. Como disse, hoje é muito comum ver superação e amor, faço muito isso mas vou também muito pelo lado do humor. Fiz um samba com o Marquinho PQD que é uma crítica a todo tipo de preconceito chamado Queda de Braço. Fazemos samba também falando dos orixás, já fiz sobre a história do Cacique de Ramos, então serve para falar sobre qualquer tema.
Quando você fala sobre a voz das comunidades não tem como não pensar nas questões políticas que envolvem a cidade. Nunca vi você falando sobre política em entrevistas, o que você pensa a respeito?
Sou muito ligado a política, ouço muito, procuro saber sobre tudo. A galera acha que é tudo safado e não quer saber, mas se a gente não tiver prestando atenção eles fazem o que querem. O povo tem que estar ligado sim na política, porque é ela quem rege o nosso país. Infelizmente são eles que comandam, então se não tivermos antenados é pior. Com a gente ligado já acontece essas coisas, imagina se não tivermos interesse. Então eu me ligo bastante, mas no momento que estamos no Brasil com uma inclinação muito maior para o lado direito prefiro me abster de falar porque é complicado.
Os sambistas com quem tenho conversado ultimamente têm se mostrado muito preocupados, realizado críticas aos governos. Você tem alguma preocupação com a desigualdade social, racismo, essas coisas?
Tenho, disso eu quero falar, não é questão de partido, até porque o meu é o partido alto. Em relação ao preconceito eu também estou apto a sofrê-lo pela minha deficiência, então temos que lutar contra ele. Hoje em dia até diminuiu o preconceito com pessoas com deficiência, a gente vê mais o racial e o de gênero. Todo racista tinha que ser vaiado no metrô, no ônibus, porque é o tipo de coisa que não ficou nem no século XX, a escravidão foi abolida em 1888. Não cabe mais diferença gente, não entendo o motivo das empresas não botarem os negros no comando, o motivo de um negro ter que ralar muito mais que o branco para se provar. Isso é uma cultura que não entra na minha cabeça, todo mundo é igual. Temos os mesmos direitos, o negro vai para a mesma faculdade que o branco, moreno, mulato, etc. Tem que haver igualdade racial e social, sim. Quanto à questão do gênero, cada um faz o que quiser da sua vida. Não estamos aqui para julgar ninguém. Tem gente que fala que é falta de respeito na rua, que algumas pessoas se expõem muito, mas isso tanto pros héteros, gays, lésbicas, não importa. Temos que respeitar uns aos outros como todos somos que o mundo será muito melhor. E essa coisa de quem mora na favela é bandido, não existe isso gente. A maioria do pessoal que mora na favela é de bem, está lá porque não tem para onde ir ou gosta de morar ali. Mas isso não faz com que aquela pessoa seja um criminoso ou bandido, então temos que respeitar. Todos temos direitos e somos seres humanos, repressão jamais.
Você tem assessoria, como é a parte da sua produção?
A minha avó é minha acompanhante, porque mesmo que eu seja desenvolto tem uma dificuldade. As pessoas não sabem lidar direito, tem gente que dá o dinheiro do cachê faltando, infelizmente já passei por isso várias vezes. Às vezes saio com os amigos e a galera esquece, não sabe como lidar com a situação, de repente está todo mundo lá longe e eu fiquei. Então com a minha avó tenho uma independência, mas quem resolve as coisas de show e de trabalho sou eu mesmo. Tem uma pessoa que cuida das minhas redes sociais porque não tenho muito tempo para ficar acompanhando, mas ele me passa tudo e eu o instruo como tem que agir.
Como está o mercado, o sambista ganha bem pelo seu trabalho?
Sempre consegui viver da música desde pequeno, mas mesmo para os cantores é difícil porque tem mês com mais evento e outros menos. E os caras ficam pagando cachêzinho de R$ 100 aos músicos, só da gasolina já quase gasta isso, se tiver que pegar um uber às vezes até gasta mais. Então tem muito músico que trabalha fora e toca como hobby para sobreviver, se não é muito complicado. Entendo que está ruim para todo mundo, mas é importante valorizar a rapaziada que fica ali batucando, tocando, etc.
A cultura está muito prejudicada atualmente, quem tem dinheiro para investir coloca o seu trabalho na mídia. É aquilo que a galera fala sobre o sertanejo, mas não podemos criticá-los: é um movimento que tem o meu máximo respeito, porque os caras têm uma união sensacional. Eles montam cooperativas, prezam pelo movimento deles no geral, um ajuda o outro. No samba não, é muito dividido na panelinha, por isso que ele não está mais a frente. Aí o sambista quer reclamar que o camarim da Ivete Sangalo é melhor que o do Fundo de Quintal, mas é uma coisa diferente. Ela se valoriza, no samba está faltando um pouco isso, a valorização. Não estou na vida de cada um para saber, mas tem um monte de gente que vai cantar por qualquer preço e acaba queimando a galera que quer fazer um trabalho um pouquinho melhor.
Essa questão da mídia, como você acha que ela dá atenção ao samba?
A mídia não dá valor também porque o sambista é desatento, não faz um trabalho de assessoria. O cara do sertanejo grava um clipe bota na internet e manda pra Globo, enquanto o sambista muitas vezes se contenta em estar ali tocando num bar. Eles se preocupam de mandar o trabalho deles para todo o Brasil, então não é culpa só da mídia mas também do próprio samba. Falta ocupar os espaços, o sambista ser unido e ter essa visão. Tem que criar um movimento como era no Cacique de Ramos, a Beth Carvalho puxava todo mundo e hoje todos são sucesso. Atualmente não temos mais isso.
A sua avó comentou que você lê muito e que parte da sua curiosidade foi dedicada a estudos sobre a ditadura militar no Brasil. Você acha que ela influiu no samba e na cultura como um todo?
Por um lado sim, porque era ruim para quem lutava contra ela, a galera da esquerda que não queria. Estavam certos, não podemos viver num país reprimido. O Brasil é um país livre e os militares faziam uma repressão, se você estivesse depois das 22h na rua era vadiagem, por exemplo. Todo mundo ao falar de ditadura lembra das torturas, mas eu lembro também do arroxo salarial para haver aquele milagre econômico que o Médici tanto falou. A seleção de futebol não podia escalar seus jogadores, só podia botar quem eles quisessem, como o João Saldanha que não foi. Queriam mandar em tudo, o que na minha opinião era uma coisa exorbitante. Não cabe uma ditadura militar no Brasil, sendo que o povo que estava não sentia porque estava fora daquela guerra entre os militaristas e os socialistas (médicos, professores, intelectuais, artistas, etc).
O samba nunca foi muito da política, você pode ver que na época do Estado Novo o máximo que tem é a música Heróis da liberdade, do Silas de Oliveira. Temos o Aluísio Machado que fala alguma coisa, Martinho da Vila, mas fora isso o sambista nunca foi muito de brigar contra a ditadura. O Bezerra da Silva falava muito da favela, mas como o samba não se envolvia muito a ditadura não prejudicou. Ela prejudicou sim e muito a cultura no teatro, impedindo os artistas de exporem suas peças, algumas músicas censuradas, novela sair do ar, como Roque Santeiro, filmes. Isso é muito ruim porque priva o povo da cultura. Em parte por outro lado foi bom, porque temos músicas maravilhosas: Meu caro amigo, Vai passar, Para não dizer que não falei de flores, Alegria alegria e por ai vai, que são sucessos até hoje. A censura era tão burra, desprovida de cultura, que censurava porque sim e não por que entendia. Às vezes passavam algumas coisas contra eles e eles nem se ligavam, como o Chico Buarque passou muita coisa como Julinho da Adelaide a mesma letra. Então a ditadura não tinha sentido nenhum, só queria mandar e eram truculentos. É uma coisa que nunca mais pode acontecer, a gente está correndo um perigo muito grande com o Bolsonaro e os filhos dele com essas declarações. O Carlos Bolsonaro disse que com democracia o país não vai mudar, mas é ela a chave de tudo.
Aqui no Rio o Crivella cortou os recursos do carnaval, sua avó disse que você fez um discurso no Parque de Madureira criticando. Por que a indignação?
Estamos atravessando um momento muito ruim, porque temos um prefeito que não gosta da nossa cidade. Ele cometeu um grande erro de não separar a sua religião da cultura do Rio, tem que entender que sua religião é da igreja para dentro. Não pode obrigar a todos os cariocas ser evangélicos, da Universal ou pagar o dízimo que eles tanto querem. Deus não cobra dízimo, multiplicou o pão, a carne e o peixe para matar a fome do povo sem cobrar, então como um Bispo Macedo vai querer cobrar e dizer que quem não pagar não terá a graça? Quem dá a graça é Deus. O prefeito está completamente errado e cometendo um crime contra a cidade do Rio de Janeiro. E não é só a cultura, na saúde ele tirou as Clínicas da Família para cortar recursos e esse dinheiro foi para aonde? Lugar nenhum, as escolas estão caindo aos pedaços, os médicos estão sem receber e as pessoas estão morrendo nos hospitais.
Em relação à cultura, tudo que é de origem afro descendente ele tenta embarreirar: carnaval, o dia da Iemanjá, que é uma tradição, etc. No ano passado a gente fez o Trem do samba e não tinha água para os sambistas, não tinha banheiro químico e guarda municipal porque o prefeito não mandou. Poderia muito bem dizer que não ia ajudar e liberar o projeto, mas ele embargou para não fazermos. Fizemos e colocamos um milhão de pessoas em Madureira e gritei mesmo lá, o Rio de Janeiro não merece um prefeito como este. Se Deus quiser ele vai passar e a gente vai se esquecer que este cara existiu.
Você tem alguma militância na questão da acessibilidade, faz algum trabalho?
A acessibilidade ainda tem muito o que evoluir, você vê o Teatro Rival e um cadeirante não tem direito a ir ao show. A maioria dos grandes teatros são de escada, então fica velado para essas pessoas ou aquelas que têm alguma dificuldade de locomoção. O cego tem que tomar muito cuidado ao andar na rua sozinho, porque as calçadas são esburacadas, os semáforos não são adaptados, então você tem que ficar pedindo ajuda às pessoas. Além do sinal em frente ao Instituto Benjamin Constant não existe nenhum outro que eu saiba adaptado no Rio de Janeiro. Não temos áudio descrição no cinema, então um deficiente visual é obrigado a ir com alguém. Pelo menos melhorou o preconceito com o deficiente. Ainda existe muita ignorância, no sentido literal da palavra: as pessoas não sabem como lidar. Então temos que melhorar isso no país para que todas as pessoas possam usufruir igualmente dos direitos.
Mas você faz algum trabalho social?
Sou devoto de São Cosme e Damião, faço uma festa para as crianças em Irajá, neste ano completa dezessete anos. A gente coloca na rua mil e quinhentos pães, 25kg de salsicha e distribuímos o dia inteiro doce, frutas, refrigerantes, cachorro quente, sorteamos bicicleta, cesta básica para as comunidades em volta do Irajá: Acari, Amarelinho, Jorge Turco, etc. A galera ganha brinquedo, patinete, velotrol, patins, skate, a gente vai sorteando tudo. O que sobra da festa doamos para instituições do câncer, uma casa que atende crianças com microcefalia, para ajudar e levar alegria a estas crianças.