Grupo Corre – dirigido e protagonizado por crias do Passinho Foda (RJ). Foto: Divulgação

Por Jô Gomes*

O Funk é uma manifestação cultural predominantemente praticada, desenvolvida e aprimorada por jovens, negros/as, favelados/as e que, por esse motivo, sofre com a discriminação e marginalização de sua cultura. Esta cultura possui uma trajetória de luta e resistência às opressões, surgindo em ambientes e públicos historicamente marginalizados para fornecer opções de lazer, entretenimento, geração de emprego e renda, bem como resgate e preservação das tradições orais e empoderamento para a juventude negra, pobre e periférica. Não existe arte separada do contexto em que foi criada, e o Funk não apenas reflete, mas sobretudo critica a sociedade em que foi criada: racista, machista, homofóbica, elitista. É uma cultura que ressignifica seus fazeres diariamente e ocupa cada vez mais espaços, principalmente no imaginário da juventude negra, que se vê representada na música, na moda e no comportamento. Hoje, dia 12 de julho, celebramos o Dia Nacional do Funk, e precisamos aprender o máximo possível sobre essas questões para compreender o contexto cultural de seu surgimento.

A data foi escolhida por ter sido o dia em que, em 1970, aconteceu o Baile da Pesada, no Canecão, casa de shows da Zona Sul do Rio de Janeiro, considerado um marco histórico para a Cultura Funk no Brasil. O Funk brasileiro é uma mistura de diversos estilos musicais, que utiliza como base, inclusive, o mesmo toque do Maculelê (Congo de Ouro). Já o Passinho Foda é uma das danças da cultura Funk, que surgiu no começo dos anos 2000 nos bailes no Jacarezinho, favela da Zona Norte do Rio de Janeiro. É uma dança que se inspira em passos de outros estilos, como Hip Hop, Frevo, Capoeira, Samba, Vogue e até mesmo o balé clássico. Quando digo “uma das danças” é porque o Passinho Foda foi um dos primeiros a surgir, mas já existem outros Passinhos pelo Brasil, tais como: o Brega Funk, em Pernambuco; o Malado, em Minas Gerais; Magrão, Romano, Maloka e Megão, em São Paulo.

Cada território produziu um Funk e cada Funk produziu sua forma de dançar. Estudar dança é muito mais do que estudar apenas o movimento. O Funk é diverso, representa seu território, seus protagonistas, o que eles e elas têm a dizer. E tem ocupado cada vez mais espaços. Ao longo do mês de julho, o festival Passinhos do Brasil está trazendo todos esses Passinhos para o SESC Consolação, no centro de São Paulo, com uma programação que envolve oficinas, bate-papo e batalha. No Rio de Janeiro, é possível obter o registro profissional da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) como Dançarino de Passinho Foda – luta que os próprios dançarinos fizeram junto ao Sindicato dos Profissionais da Dança do Rio de Janeiro. O processo para conquistar esse registro inclui uma prova prática e uma teórica, para a qual, inclusive, foi produzida uma apostila com a história do Passinho.

A luta dos profissionais das danças do Funk é para que não haja apagamento ou invizibilização de suas práticas. A profissionalização da cultura protege o Funk de questões como apropriação cultural e exploração indevida. Protege, mas não impede. Muitos são os casos de publicidades e espetáculos que utilizam a cultura sem trazer seus representantes para os holofotes. Há uma legislação sobre o Funk que tenta resguardar a cultura em suas múltiplas manifestações:

  • Lei nº 5543/2009, define o Funk Carioca como movimento cultural e musical de caráter popular;
  • Lei nº390/2017, declara a dança do Passinho Patrimônio Cultural Imaterial do povo carioca;
  • Lei nº 10.289/2024, declara a dança do Passinho Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Rio de Janeiro;
  • Lei nº 16.310/16, estabelece o Dia Estadual do Funk de São Paulo ou Dia da lembrança de MC Daleste (celebrada no dia 7 de Julho, a data relembra o assassinato de MC Daleste, que ocorreu durante um de seus shows, enquanto estava no palco, e que, até hoje, 11 anos depois, ainda não foi solucionado. E nós sabemos por quê).

Nem mesmo as leis que declaram o Passinho Patrimônio Cultural Imaterial da cidade e do estado do Rio de Janeiro conseguem transformar a realidade de dançarinos e dançarinas que lutam diariamente para se sustentar. Aliás, nem mesmo ser dançarino reconhecido impede os jovens pretos e favelados de constrangimentos racistas, como o caso de um dançarino de Passinho Foda que passou por CINCO revistas policiais em um dia, ou de uma referência feminina que teve seu cabelo crespo revirado depois da pergunta “você não esconde droga aí não né?”.

A criminalização do Funk é um projeto de Estado. Historicamente, as culturas pretas e periféricas são marginalizadas e criminalizadas no Brasil. Foi assim com o Samba e a Capoeira, ambas consideradas crime até a década de 1930. Em menor proporção, o Rap também teve problemas com a Justiça no País. Em novembro de 1997, os integrantes da banda Planet Hemp foram presos em Brasília por “apologia às drogas”. No ano 2000, a polícia do Rio “investigou” o clipe Soldado do Morro, do rapper MV Bill, antes mesmo dele ser lançado. Segundo a polícia, o vídeo fazia “apologia ao crime”. O DJ e produtor de Funk Rennan da Penha foi preso por oito meses por supostamente ser “olheiro do tráfico” quando apenas informou sua comunidade por meio de um aplicativo de mensagens sobre uma operação policial. Internacionalmente outras manifestações culturais também foram criminalizadas, tais como: Dancehall (Jamaica), Hip Hop (Estados Unidos), Voguing (Estados Unidos), Mapouka (Costa do Marfim).

O que todas essas culturas têm em comum são seus protagonistas/criadores: pessoas pretas periféricas. A cultura preta e favelada no geral foi criminalizada e discriminada através dos tempos, até que pessoas brancas começaram a usá-las comercialmente. E agora pessoas pretas tem que quase implorar por espaço dentro de algo que nós mesmos criamos.

Daí a importância de uma legislação que proteja essa cultura, que conte sua história e promova seus reais protagonistas em nível nacional. Esse é o objetivo do Projeto de Lei (PL) 2229/2021, que sugere a criação do Dia Nacional do Funk em 12 de julho. Essa é a data do Baile da Pesada, realizado em 1970 no Rio de Janeiro, considerado um marco do movimento no Brasil. Isso porque foi um baile que tocava não apenas o funk popularizado por James Brown, mas também outras manifestações da Black Music e músicas nacionais. Foi o primeiro baile funk brasileiro que não possuía o nome “baile funk” e mostrou que o nosso som era diferente. Um marco para cultura negra no Rio de Janeiro, que viria mudar o cenário musical e cultural do País. O PL 2229/2021 já foi aprovado pela Câmara e pelo Senado e pode ser sancionado a qualquer momento.

Hoje o Funk está presente em grandes festivais, representando o Brasil no exterior, entre os maiores canais e vídeos mais assistidos do YouTube em todo o mundo, em cursos no Centro de Referência da Dança de São Paulo (CRD-SP) e até mesmo integrando um festival inteiro no SESC Consolação. Na capital paulista, há inclusive uma Coordenadoria de Políticas Públicas do Funk, única no País, que visa “contar com a presença do funk nas ações da Prefeitura, dando oportunidades para artistas do segmento e impulsionando essa manifestação das periferias”.

O Passinho é uma dança que mistura referências de diversas outras danças, tradicionais e urbanas, do continente e da diáspora. Realmente é desafiador para quem está tendo um primeiro contato. Mas, ao mesmo tempo, é uma delícia poder levar seu corpo à máxima potência de coordenação motora, condicionamento físico e memorização muscular. A personal Glauciana Ribeiro, especializada em corpos de pessoas que dançam, disse certa vez que o nível de explosão muscular demandada é o mesmo do atletismo olímpico. Imagine assim: Usain Bolt treina o ano inteiro pra correr 7 segundos. Mas ele corre 7 segundos e para. Dançando Passinho, a gente corre no pique do Usain Bolt por MINUTOS. Às vezes, horas.

É uma dança altamente especializada, que exige do corpo, da memória, mas principalmente da vivência na cultura. O Passinho tem por volta de 20 anos. Muitos de seus relíquias (precursores) estão vivos, dançando, lutando ativamente pela cultura que ajudaram a criar. E eu agradeço pela honra de poder conhecer tantos deles. Mais do que isso, de poder treinar com eles, curtir baile, sentar pra tomar um açaí, ouvir e participar de suas histórias. E o melhor: repassar suas histórias, que se fundem com a história do próprio Passinho. Reunir a velha e a nova escola do Funk mostra que estamos dando continuidade a um legado poderoso, de cultura preta, e que as próximas gerações colherão esses frutos das sementes que estamos plantando.

Tenho muito respeito e amor por essa cultura, que tenho a responsabilidade de representar. O Funk tem chegado a espaços que antes nos negavam. E agora não tem mais volta. Pra frente que se anda. Nossos passos vêm de longe, e nosso Passinho também.

*Jô Gomes é dançarina, coreógrafa, professora e pesquisadora de Danças Negras, tradicionais e urbanas. É mestra em Dança pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde pesquisou Matriarcado e Oralidade nas Danças Negras. É integrante dos Imperadores da Dança, primeiro bonde de Passinho do Rio de Janeiro. É imperatriz da House of Zion, house mainstream dos Estados Unidos, e da Pioneer House of Hands Up, primeira house da cultura ballroom do Brasil. Ministrou o módulo de Passinho no curso de formação em Danças Urbanas no Centro de Referência da Dança de São Paulo (CRD-SP). Atualmente ministra a oficina Passinho no Museu, no Museu das Favelas.