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Faz pouco que eu comecei a cruzar este ponte. E uma estranha sensação me diz que cheguei do outro lado. O que não significa ter encerrado um percurso. Muito pelo contrário. É só o início.

A cada parágrafo que leio de Angela Davis, as forças de suas palavras me mostram como é sem volta. A cada passagem pelo material do filme #PrimaveraDasMulheres, em que trabalho no momento, percebo o quanto esta mudança se cristalizou. A cada percepção de pequenos machismo, a cada susto diante da força das grandes estruturas ideológicas, me torno mais e mais feminista.

Como eu vim parar aqui? Eu sempre quis parar aqui, eu sei. Mas este tornar-me não é simples. Dói. Não pelo pequeno entulho que já fui capaz de desconstruir e deixar pra trás. Mas pela consciência, cada vez mais aguda, do tamanho da injustiça, do enorme trabalho, de uma vida que não pode mais ser sem luta. Antes tudo era bem mais fácil. O mundo com este com outro filtro é um mundo pior – e mais potente, e mais dançante, com mais sentido de aventura e a sensação do vento batendo no rosto. Diante dessa dor – e dessa força -, que não é singular, mas plural, não lutar é me permitir um luxo que nenhuma feminista brasileira pode se permitir. Por isso é sem volta. Sabemos: é preciso seguir. Sendo pra muitos uma pessoa mais chata. Sabendo que vários sentem falta da Antonia de antes. A estes, eu digo: o que ficou perdido no caminho me faz mais ágil, permite voos maiores.

Essa consciência da opressão, enche meu peito de amor. É isso que irradia das frases “somos todas Jandira”, “somos todas Su” (esta, se não houve, deveria haver). Se permitir estar no lugar da vítima, não é necessariamente se vitimizar, e sim, encarar seu lugar na resistência. Ocupar o espaço da insubordinação. Se desvitimizar, pra se empoderar.

Uma coisa que me deprime: mulheres poderosas desempoderadas. Mulheres que têm ao seu dispor todas as ferramentas para incidir na luta por outras mulheres, mas não agem. Permanecem em suas situações de conforto – que há muito pra mim se tornou desconfortável. O empoderamento é de outra ordem: é construído, conquistado, adquirido. Tem suor e prazer. Muito trabalho e nenhum desperdício.

Na montagem do filme #PrimaveraDasMulheres, todos os dias assisto a filósofa Márcia Tiburi falar que sua questão com o feminismo é o poder. A minha também. Feminismo é uma disputa de poder e por poder – essa sempre foi, entre as inúmeras definições possíveis, a que mais gosto de usar.

A tarefa que me propus: levar o feminismo pra onde ele não está. Ocupar o mainstream. Zombo de mim mesma e da ingenuidade do meu projeto. Quando me propus, não tinha nenhuma noção concreta das forças em que precisaria mexer. Mas tenho mexido sim, obrigada. Um toque de irresponsabilidade pode ser fundamental. Sem delírio não há franca alegria guerreira.

O Pablo Capilé passou a dizer que a revolução será bailada. Amo essa frase. E ontem, assistindo à pré-estréia do filme da Camila Pitanga sobre seu pai Pitanga, vi isso na tela. O corpo maravilhoso daquele homem é pura alegria, capoeira, política e luta. Sem perder a ginga, e o afeto.

O afeto como política. Entre mulheres. Não para os homens. Eu sei que é difícil deixar o outro em uma posição de desconforto. Sobretudo se este outro for homem. A gente logo quer dar colo. Falar com jeitinho. Não confrontar. Mas o empoderamento ensina também a ficarmos no desconforto. A permanecermos no desconforto. A colocarmos sim, porque não?, o outro no desconforto. José Mayer ficou quatro dias na posição desconfortável de assediador. Pediu desculpas. É válido. Desde que o desconforto permaneça. Desde que as desculpas não facilitem o trabalho dele e dos outros caras. Não existe homem feminista – talvez somente o Pedro Abramovay. Mas existem sim homens em devir feminista, homens em desconstrução, homens sensíveis à esta luta que devem, e podem, ser aliados – desde que não barateiem seu trabalho, não facilitem pra si mesmos esta tarefa enorme.