“Fazer samba é uma resistência e está totalmente ligado à política”, afirma Júlio Macabu da nova geração
Tocam em diversas casas tradicionais de samba cariocas e estão em permanente contato com o atual movimento.
Por Eduardo Sá
A Família Macabu é mais uma contribuição e fortalecimento artístico à nova geração do samba. Atualmente dois dos três irmãos, o Júlio e o Paulo Cézar (PC), estão seguindo a carreira neste segmento musical. A agenda da dupla está sempre cheia, inclusive com turnês em outros estados do país. Tocam em diversas casas tradicionais de samba cariocas e estão em permanente contato com o atual movimento.
Conversamos com Júlio Macabu, de 28 anos, durante a gravação (15/05) do novo CD do músico Marcelo Amaro, no Beco do Rato, Lapa. Na entrevista ele fala sobre questões que envolvem a geração atual do samba, o mercado fonográfico, a dificuldade de envolver mais os jovens e, principalmente, a importância de levar música de qualidade ao subúrbio. Segundo ele, o samba tem a possibilidade de conscientizar as pessoas e tem o compromisso político de resistência cultural.
Como você se conectou com a música?
Influência direta dos meus pais. Meu pai era periférico, iniciou a infância em São Gonçalo e depois cresceu na Cidade Alta, onde cresci. O lazer na comunidade naquele tempo eram os grandes bailes charmes e o samba. Ele desenvolveu um gosto por banjo e ali conheceu minha mãe, sempre foram muito farristas e boêmios, e isso nos influenciou diretamente. Minha mãe já era mais eclética, escutava Marvin Gaye, Djavan, Cartola, Lupicínio e tudo que você imaginar. Mantemos o hábito de almoçar juntos aos domingos com música, e meu pai frequentava em São Cristóvão um clube onde fazia samba. Quando eu tinha 16 anos me levou ao Cacique de Ramos, fui me enturmando, o Nego Alvaro fazia parte nessa época. Ali entendi as diferenças entre as vertentes do samba.
De onde surgiu o nome família Macabu?
Somos três no total: eu, o Pablo e o Paulo Cézar mais novo. Chegamos a tocar juntos no Cacique, e tive uma passagem pela Tia Doca. A gente ia ao Beco do Rato, na roda do João Martins, devoramos o primeiro CD dele. E por sempre estarmos na rua juntos, inclusive com meus pais, nos chamavam Família Macabu. Quando queríamos gravar um CD pensamos no nome de um trio, mas não tinha sentido pois já éramos conhecidos pelo nosso sobrenome. Agora meu irmão do meio seguiu para o gospel, mas ele continua tendo um papel fundamental porque compõe muito. É um cara muito sensato e sensível, e como a gente mora junto estamos sempre fazendo um som e compondo.
Quando você sentiu que tinha virado um profissional da música e quais os desafios?
Aos 20 anos quando ingressei no Cigam, na escola do Ian Guest, que é um curso técnico, compreendi as ramificações que a música poderia proporcionar para além de estar tocando. Foi tardio, porque meu pai é um grande incentivador ainda mas não sabia. É um militar aposentado suburbano e tem suas convicções, que pertencem a outra era. Não é culpa dele, foi criado assim. Os prós e contras de se viver da música são bem claros no nosso país, ainda mais agora nesse governo. Não tenho muitas perspectivas, principalmente se fizer arte com verdade e aquilo que pensa. Coisas que mexem com o coração, o pensamento, o sentimento, causam inquietude, inconformismo. Fazemos pela batalha, amor e por uma convicção de que isso é passageiro. Me decepciona que existam pessoas, inclusive já de idade, que não percebem que chegou o momento de ceder a vez. Ainda querem impor um tipo de sociedade patriarcal que não cabe mais: no comportamento, dialeto, nas opções de escolhas de vida. Ignorantemente querem oprimir uma nova realidade e reimplantar uma que viveram jovens e não combina mais. Ainda assim tenho esperança, porque vamos sempre militar, não nos calaremos, estaremos fazendo som e postando nas mídias sociais. O samba está aí e é um protesto contra essa massa normalizadora.
Existem várias correntes no samba ou você acredita que todos são de protesto?
Todas são, mas é claro que existe o ego humano, o artista vai defender aquilo que acha, lhe convém ou natural de onde ele vem. Mas se tem batuque de preto velho, é resistência. Quando algum gênero sem ser de origem elitista foi financiado, anunciado e propagado de bons olhos no Brasil? Desconheço, e com o samba não foi diferente. Há pouco tempo ele se tornou comercial, isso não significa que não seja resistência.
Qual data você acha que marca esse período, após o pagode e o Fundo de Quintal?
A partir da década de 70. Pagode é uma reunião né, e quando a elite começou a se entreter se tornou financeiro mas não significa que deixou de ser resistência. Ficou interessante a uma parte da elite ditar o que era ou não samba de acordo com as suas convicções, mas a instrução não chegou para todos no Rio. É muito fácil você ponderar se o cara faz um samba falando das coisas africanas ou libertárias não estando no subúrbio, aonde a informação não chega. O cara não sabe que é um lutador e está vencendo todo dia por nascer ali, onde as chances são diferentes e as coisas não acontecem. Então procuro entender a visão de todos e passar a importância de se manter a música brasileira. Entender os posicionamentos e levar cultura ao subúrbio.
Por que essa preocupação?
Para que tenhamos mais pessoas conscientes. Quando artistas entendem a sua importância, pois estão mais em evidência, não só na música, seja qual for o meio, é muito significativo e importante: mudam vidas e opiniões. Mas a visão do pop e do dinheiro entrou muito forte no subúrbio. A indústria fonográfica é muito cruel e oportunista. O suburbano em sua maioria, o proletário, não tem coisas básicas que todos deveriam ter. Conseguir qualquer coisa no hospital é difícil pra caralho, o alimento e os transportes são caros, você trabalha longe do centro, perde seu tempo indo e voltando do trabalho, etc. Então eles se aproveitam vendendo coisas primárias, porque esse cara tem uma roupa boa, um plano de saúde, se alimenta bem e não instrui as pessoas. Aí vem as músicas que talvez a gente não curta muito, entram esses empresários vendo muitos talentos e nascem esses frutos.
Não é fácil criar um hit em qualquer tipo de música, inclusive nas boas, e eles fazem mas não tratam do artista. Reconhecem o trabalho do cara, enxertaram rapidamente e depois largam e vão no outro. Pegam boa parte do dinheiro e não instruem o cara. Acho horrível meus amigos dizendo que eu faço muito som no subúrbio e tenho que ir pra zona sul porque meu som é de lá. Não, cara! Isso pelo cuidado, a qualidade, tem teclado, é som. Toda ramificação do samba sempre teve instrumentos, e essa cultura pode ser acessível ao subúrbio. Quero passar isso, tenho esse papel, vontade e missão. Mostrar pra galera que está fazendo uma música pensada e que não fale de algo fugaz e momentâneo, mas você pode chegar lá e dar um conforto a sua família.
E quais os desafios da realização dessa missão? Tenho escutado muito por aí sobre uma mudança no mercado, das novas ferramentas e formas de produção…
Não é tão simples dar uma fórmula para as coisas começarem a funcionar. O mundo mudou muito e o sambista tem que ver isso como uma arte e ser artista. É também espetáculo e folclore, mas no bar já é possível fazer um som irado. É também vida, comportamento, fazer vídeos, se preocupar com a produção. Estamos começando com algumas iniciativas, mas até agora não tivemos nenhum incentivo. A produção está começando a entender, estamos vivendo ainda um começo, graças a essa geração: João Martins, Renato Milagres, Marcele Mota, etc. As meninas vindo pro samba é muito importante para essa nova visão, esse zelo com tudo e não só ser malandro carioca. Aquela figura que bebe, zoa, não é muito compromissada, essas são as coisas do movimento. Quanto à produção de gravadora, isso a gente não conversou, a galera precisa chegar mais junto. Parece que estão entendendo como folclore ainda e não é.
Mas tem alguns artistas que já têm um mercado bem concreto, não?
Quero dizer que em relação a outros nichos não chegamos a um quarto em alcance. Não dá para comparar com o sertanejo, por exemplo. Há um temor também do samba chegar nesse patamar e perder a essência. Eu acho que necessariamente não. O rap está atingindo hoje proporções fodas, por exemplo…
O Nego Alvaro citou que a juventude está toda conectada ao celular no rap, no sentido de que em algum lugar a comunicação do samba não está sendo eficaz.
Óbvio! O João Martins é um cara que dialoga com o jovem, o Renato, pela visceralidade da melodia da música Nossa Escola, por exemplo. Contrariando dizeres de que não se deve falar mais assim ou assado, mas no geral alguns compositores fazem ioiô iaiá. Quem chama mulher assim hoje? O papo mudou, basicamente é um discurso que não dá mais. É o diálogo, tem uma galera com o visual moderno e novo, começando a fazer vídeo, usando as tecnologias. Grupo É Preta fez um CD foda, tanto que a música Pra matar preconceito, do Raul DiCaprio e Manu da Cuíca, é um papo muito atual e com palavra de jovem. Temos que falar da nossa ancestralidade, mas também entender o dialeto dos jovens até porque ainda somos.
A galera do rap mergulhou nisso com uma perspectiva de rebeldia, mas tem várias correntes dentro desse cenário também…
Mas eles entenderam, e às vezes são produções simples. Chega porque eles também passam verdades, e dentro do rap não tem força contrária. Se eu fizer um diálogo mais moderno dentro do samba, mas com um papo condizente à cultura e essa obrigação, algo do peito não necessariamente vendável, tem uma força de outra geração que é contrária e desvalida. Aí está o ego falado lá atrás. A gente tem que expandir e entender tudo, independente das ramificações, se não acaba se tornando uma força motriz contrária. Passa a impor o que entende, só que o samba é muito maior que isso. Não posso dizer onde o samba começa e termina ou se isso ou aquilo não é samba. Se o Zeca Pagodinho não conseguiu explicar não vou chegar nem perto. Falam de instrumentos, linguagens, melodia, etc, mas para todos esses exemplos tem contra argumentos. Monsueto usava gíria da época, por exemplo. Quarto escuro do Candeia tem teclado pesadão na cara, baixo e guitarra semi acústica. Então todo clamor com um pingo de brasilidade, que possa ser dito e tenha uma experiência verdadeira, é samba. Perdemos tempo de entender como fazer para chegar. O samba era para ser, junto às vertentes de forró e maracatu, a música de domínio. É uma grande família que briga, a guerra dentro do gênero, mas todo mundo se ama. Tem cara que quer fazer o samba raiz foda, mas outros uma parada nova boa pra caralho também, são só opções. Cada um que faça sua escolha com um respeito muito claro.
O samba tem a ver com política?
Só tem a ver com política. Tudo que vem de origem negra é demonizado nesse país e no mundo. Os sambistas foram perseguidos na ditadura, é visto como baderna ainda hoje. Um cara descompromissado, vagabundo, e isso já torna muito difícil qualquer diálogo profissional. Mas quando se entende que é uma resistência, independente de quem faz, se torna mais voraz e verdadeira a fala. Nasceu das favelas e com os negros, é uma parada metafísica, vem dessa magia. Tem origens até tribais, africanas, então não era compreendida porque fazia parte do rito e quem não se encaixava, ou seja, a elite, condenava ou perseguia. Assim o samba já tem seu elo com a política. Nós da esquerda damos muito valor ao que é de verdade, de cerne natural, apelo sentimental, que tenha essência, então não só no samba mas em todos os gêneros isso já coloca militância. Resistimos por não ser aceitos por um lado que sempre nos oprimiu e condena um modo de vida, que não entende por influência do cristianismo que tem como cerne no seu modo de vida o religioso branco.
Aprendemos que tudo dos americanos era maneiro. Ficou vergonhoso ser brasileiro, afro, uma natureza que não é essa, então por ser até motivo de deboche dessa elite, o samba mulato dessa algazarra, só de praticá-lo já está indo contra. Em algum momento vão te olhar com desprezo e deboche, nego acha que qualquer um pode pegar num pandeiro e tocar mas não é assim. Fazer samba é uma resistência e está totalmente ligado à política, mas fica difícil às vezes dizer e não se pergunta isso porque a gente não fala da gente. Não falamos da nossa cultura. E tem preto que não sabe o que é ser preto ainda, não sabe de onde veio, o que é e pra onde está indo ou quem é por ele. A sua importância e de lutar pela sua história. É uma cultura extremamente foda e cerne de outras, então tudo faz parte de um grande plano e por isso a gente ainda pergunta até hoje se o samba é atrelado a política: faz parte de um plano de não dar educação.
E o que você pensa sobre a política nacional atual?
O governo atual mata a cultura a cada dia. Até aqueles que não querem dizer mas também estão militando, que pensam que vai fazer diferença ficar imparcial, sempre serão resistência. O momento atual da cultura é trágico, o governo não fundamenta nada que vem de humanas e preza integração, diálogo, virtuosidade intelectual, poesia, arte de um modo geral. Gostaria que a arte fosse de acesso comum e todos pudessem fazer com qualidade, mas não é uma coisa natural, assim como nem todos jogam bem futebol ou são bons advogados, só que uma parte da sociedade nunca aceitou isso. Muitos artistas sempre tiveram notoriedade, grandes ideias, como um Da Vinci, que mudam as coisas, e a elite não entende e é operacional. Essa galera que usa a força como fonte de tudo quer oprimir os que usam o intelecto, a virtude, o sentimento, que é mais importante. Querem apagar essa possibilidade do pensamento e da arte, o questionamento sobre as coisas. Ser inteligente exige transparência, coerência, ética, coisas que são fundamentalmente básicas no convívio humano numa sociedade igualitária onde todos se sintam bem.
Conheça esse som: