“Eu tenho muito orgulho da cena musical preta que temos hoje”, diz Fejuca
Vencedor de três Grammys Latinos, Fejuca é um dos artistas mais versáteis da música brasileira. Produtor musical, arranjador, cantor, compositor, são alguns dos substantivos que podem ser usados em referência a este artista que ganhou o mundo.
Vencedor de três Grammys Latinos, Júlio Fejuca, ou simplesmente Fejuca, é um dos artistas mais versáteis da música brasileira. Produtor musical, arranjador, cantor, compositor, são alguns dos substantivos que podem ser usados em referência a este talentoso músico de Serrana, interior de São Paulo, que ganhou o mundo.
Na coluna desta quinta-feira (27), Fejuca fala um pouco sobre a potente cena musical preta no Brasil, que está angariando Grammys por aí, e o orgulho em fazer parte de tudo isso. Ele ainda conta sobre o impacto que a família teve na construção do seu repertório musical, com referências de gêneros musicais diversos, como Samba, Soul, R&B, Reggae, Jazz, Pagode, Forró e Black Music.
Com vocês: Fejuca! Leiam com toda a calma possível.
Você é um artista extremamente versátil e apaixonado por samba. O que mais te inspirou a seguir a carreira de músico?
Fejuca – Eu sou de uma cidadezinha do interior de São Paulo, que fica ao lado de Ribeirão Preto: Serrana. Por coincidência, essa cidade se vacinou antes de todo mundo, na época mais crítica da pandemia. E a minha família é uma família muito musical, no sentido mais amplo da coisa. Assim, o único músico, antes de mim, foi meu avô paterno, que era um violeiro, tocava viola caipira. Ele, infelizmente, morreu muito novo. Mas a minha família é muito festeira: coisa de família preta, que todo final de semana promove uma festa, um encontro. Minha avó plantou isso na gente e eu tive a sorte de morar na casa dela depois que meu pai morreu – praticamente quando eu nasci. A minha avó logo falou com a minha mãe: “Conceição, não dá. Agora, vocês têm que vir pra cá morar comigo”. E eu sou cria disso: um menino criado pela mãe e pela avó. Sou filho único.
Eu nasci em 1984, comecei a tocar com 7 anos. No começo da década de 90, ali pelos anos de 1991, 1992, eu já era músico, e sempre absorvi muita música, de todos os gêneros. Então tinha aquela coisa toda dos anos 80, que minha mãe jovem ouvia, e eu ali, criança, peguei tudo. As coisas do samba: a minha avó era fã de Martinho, Benito Di Paula. E nas festas em casa tocava de tudo: tinha muitos álbuns, muitos discos. Eu lembro que não sabia ler, mas já naquela época ficava vendo os encartes, fotos de músicos, de estúdios, colocava os álbuns para tocar e ficava ouvindo.
Somado a tudo isso, no bar do meu tio Juninho, sempre rolava Roda de Samba. Os músicos, antes de sair para tocar, passavam lá para comer um tira gosto e faziam um sonzinho. E eu estava lá. Um dia, teve um amigo da nossa família, o Amarildo, que me deixou tocar um cavaquinho. Eu toquei um pouco e a minha vida mudou, exatamente ali. Esse amigo da família logo falou: “Este menino vai, hein? Este tem talento!”.
Você navega entre muitos estilos: o samba, com o grupo Sambô; o forró, com Mestrinho e Mariana Aydar; o hip hop, com Emicida e Rael; a MPB, com Liniker… Como você consegue ser tão eclético e transitar por todos esses estilos musicais?
Fejuca – Isso vem muito do ambiente em que fui criado. E é muito louco porque, antes de tocar Rap e conhecer Emicida, Rael, Racionais, eu já era fã deles. Porque o Samba e o Rap, na minha vida, vieram juntos. Aliás, o Rap veio antes: eu tinha grupinhos de Slams, de Break, e tal. E, se não me engano, por volta de 1993, me lembro de estar na casa da minha avó e ela colocou um álbum do Tim Maia: “Ela partiu, partiu, e nunca mais voltou…”. Quando começou uma batida diferente, eu falei: “Ah, agora vai começar a tocar Racionais!”. Quando não tocou, eu fiquei confuso. E era o Tim Maia cantando! E eu fiquei me perguntando: “Como assim aquela música era do Tim se estava com a batida dos Racionais?”. E aí comecei a entender a coisa do sample na música, e isso me abriu um portal.
Então, hoje, quando eu troco com Emicida, tem muito respeito um com o outro, principalmente quando falamos de Rap. Ele sabe que eu amo Rap, desde sempre. E eu estou falando dele, porque antes do Emicida, eu trabalhei com muitas pessoas que não davam o devido valor ao Rap. Alguns artistas, antigamente, meio que diziam ter vergonha de falar que tocavam Rap, as pessoas viam como menos. E eu vejo como mais. Eu vejo como qualquer outro gênero musical.
Essa coisa de transitar por vários estilos é muito natural para mim. Quando cheguei aqui, eu apenas reproduzia o que eu fazia no interior: eu era aquele músico que tocava chorinho de manhã, à tarde, na hora do almoço, ia tocar um violão pra galera almoçar; saia e ia tocar um samba; depois ia tocar algumas músicas, formando dupla sertaneja; aí, no outro dia, já estava dando aula particular de manhã; à tarde, já numa escola; e, depois, eu estava de terninho, tocando numa cerimônia de casamento. Então sempre fui muito múltiplo e era um processo muito natural.
Como é fazer parte de um grupo que toca música Pop Rock em ritmo de Samba, como o Sambô? Como o mundo do Samba encara isso?
Fejuca – É muito interessante falarmos do Sambô, porque o grupo começou lá no interior, em Ribeirão Preto. O Sambô foi uma banda que nasceu, não exatamente, para ser uma banda. O Ricardo Gama, que é o fundador, um amigo e um grande produtor, tinha uma produtora de áudio, e me chamou para fazer um Samba. Mas eu pensei: “Como eu vou fazer isso com tal pessoa? E aquela outra? Como isso vai dar um Samba?”. E cada um ali já tinha uma banda fora do grupo e tal. E numa dessas, tocando Samba mesmo, alguém, que estava na plateia, perguntou: “Ah, vocês não tocam Raul?”. E a gente falou:” Toca! Pô, Raul é um clássico! Claro que a gente toca!”. Aí nós tocamos uma música do Raul, só que no ritmo de samba porque, naquele momento, não tínhamos nenhuma guitarra, ou algo do tipo, que se aproximasse do Rock. Depois disso a galera foi pedindo uma atrás da outra, até mesmo Janis Joplin. Então foi isso: naquela Roda de Samba tinham pessoas que tocavam e cantavam muitas outras coisas e nós íamos brincando com isso. Depois desse dia nunca mais paramos.
Agora, como o mundo do Samba encara isso… Olha, vão existir extremistas dos dois lados. E o projeto nasceu para ser uma festa e é isso que importa. Eu não preciso provar nada a ninguém. Se a pessoa gosta e se identifica, ela vai escutar. E se não gosta, é só não escutar e vai ouvir outra coisa. Contudo, antes de falar, é preciso entender o que é o projeto.
E quais são suas influências musicais?
Fejuca – Eu sou da geração Pagode. Quando converso com o Salgadinho – que é um cara muito interessante para você entrevistar -, eu falo: “Salgado, não é que eu era seu fã. Eu era você!”. Eu ia para a escola de calça de napa, de bota, de óculos na testa. Empoderadíssimo! E muito cedo eu já fazia o solo dele. O Salgadinho, além de ser cantor, compositor e ídolo, é um cavaquinista da pesada. E ele veio como um ídolo pop star mesmo. Essa coisa de um músico, tocando solos… eu era fascinado! Sempre gostei muito de música, mas gosto mais da galera que toca. Não ligo muito pra fama, pro status… Gosto mesmo é da galera que toca. E ele foi uma grande referência, pois estava sempre nos programas de grande audiência como o Faustão, a Xuxa e a Banheira do Gugu, mas tocava demais.
Depois dele, veio todo mundo: Fundo de Quintal – e eu já tinha essa coisa de tocar no fundo do quintal de casa -, Beth Carvalho… Conhecendo a Beth, eu conheci um dos meus maiores ídolos: Raphael Rabello, do violão – um mago! Depois disso comecei a ouvir tudo dele. Mas sou fã de muita gente… Jimi Hendrix, por exemplo, eu o tenho como um deus. Além dele, tem Djavan, Gilberto Gil, Trio Mocotó, Ben Jor, Racionais… Enfim, sou fã dessa galera toda.
Qual conselho você daria aos músicos negros, que estão chegando agora na indústria fonográfica?
Fejuca – Eu acredito que é ser verdadeiro. Verdadeiro com as coisas que sentimos, verdadeiros com as nossas influências, verdadeiro com a nossa vida. Vão falar que estamos meio doidos, que não vamos fazer sucesso, que não vai dar certo, mas é preciso que mantenhamos a nossa opinião e ir até o fim.
Quando comecei a produzir meu som, muitas das vezes, não era chamado pras coisas. E eu só queria poder ocupar alguns espaços e achava que nunca iria conseguir. Mas também tive sorte de conhecer uma galera muito bacana, desde o início, quando vim morar em São Paulo. Lembro que, no início, dividi apartamento com a queridíssima rainha Xênia França, que é como uma irmã para mim. E era natural estarmos na sala de casa, ela trazia uma música e eu complementava, mesmo não sendo produtor naquela época. Nós gravávamos e ela levava para o estúdio, para o pessoal reproduzir depois.
E aí comecei a sacar: o que eu faço, do fundo da minha alma, do jeito que eu acho, muita vezes dá certo! E continuei com essa ideia de juntar tudo o que eu sou. Eu sempre amei ser DJ, fazer um Beat. Sempre amei a cultura do Hip-hop… Mas também sempre tocando um instrumento. Eu seria uma pessoa muito triste se só tocasse violão, embora ame. Seria uma pessoa muito triste se só tocasse Samba ou Choro. E batendo de frente, não querendo ter rótulos, sendo eu, tudo acabou dando certo. E me sinto feliz com o que faço hoje.
Então, o conselho que dou é: precisamos acreditar no nosso axé! Não estamos aqui sozinhos. Nós temos bagagem: tudo que ouvimos, consumimos, tudo que aprendemos na nossa infância… Tudo isso é muito rico.
O que mais te orgulha na sua carreira até aqui?
Fejuca – Tenho muito orgulho do Sambô, claro! O Sambô me permitiu conhecer o Brasil todo e várias pessoas. Me deu base, estrutura financeira para que eu pudesse investir na minha carreira, ajudar minha mãe e ajudar em casa. Sou muito grato, tenho muito orgulho desse projeto. É muito difícil ser um artista preto no Brasil, expandir a sua arte, conseguir ganhar dinheiro com isso e ajudar a família com dignidade. Por isso gosto de citar o Sambô, logo de cara.
Tenho muito orgulho de poder trabalhar com todas as pessoas com quem trabalho atualmente. Acho meio doido olhar pro lado e ver que estou trabalhando com um ídolo. Por exemplo, a Liniker, eu olho e falo assim: “Pô, irmã, eu já era seu fã, sempre gostei”. Emicida, Xênia… Eu tenho muito orgulho da nossa cena. Passar e ver que vai ter show da Xênia – ela chegou lá, mas eu tô ali junto também. Lembro da gente na sala de casa, daquela artista maravilhosa que tanto me influencia.
Então, tenho muito orgulho da gente, desta cena atual. E ganhar o Grammy foi uma coisa maluca. Mas eu já estava envolvido antes, desde 2019, 2020, no álbum “Amarelo”, do Emicida, que também ganhou. Eu sou um dos músicos que tocou neste álbum, fiz alguns arranjos. Quando nós ganhamos o Grammy, eu falei: “Caraca, neguim, o álbum ganhou!”. E no mesmo ano que o “Amarelo” ganhou, o álbum da minha comadre, Mariana Aydar, também ganhou e eu toco neste álbum, que é o “Veia Nordestina”. Lembro da Mariana me mandando músicas no WhatsApp e eu colocando a harmonia e mandando para ela de volta, e ela indo pro estúdio.
Então, o Grammy já estava ali me procurando, mas na hora que Liniker deu esse salto… Desde que começamos a produzir o disco – eu, ela e o Gustavo Ruiz -, eu pensava às vezes: “Vamos produzir, que esse vai dar Grammy! Vamos lá, que vai dá!”. Quando veio a indicação, já foi uma vitória. Mas quando veio de fato, eu fiquei com muito orgulho disso. Eu lembro da Liniker, chegando com as músicas no caderninho e depois ver esse álbum indo para frente.
De modo geral, tenho orgulho da gente! Da cena: de ver as minhas irmãs pretas bombando, de ver músicos, musicistas pretos tocando e produzindo, dessa nova geração. De artistas como Melly, Bebé e tantxs outrxs!
Para finalizar: quais são seus objetivos agora? Quais sonhos ainda precisam ser realizados?
Fejuca – Eu quero concluir o curso que estou fazendo para ser maestro e escrever arranjos para orquestras. E um dia juntar uma galera bem pretona mesmo pra tocar comigo e eu estar regendo de terno, tênis e um boné de aba reta. Esse é meu sonho.