Estamos ou não à beira do fim do mundo?
Muitas são as fotos pelas redes sociais com comentários assustados diante do escurecer do dia. E muitos destes comentários são de pessoas falando de “sinal dos tempos” e “fim do mundo”.
19 de agosto. 15h. São Paulo. Mas parecia 22h. Em questão de minutos a cidade de São Paulo anoiteceu em sua tarde. Todos esperavam a chegada de uma frente fria, mas não contavam com o encontro com um corredor de fumaça tão denso capaz de provocar tamanho escurecimento. Esta nuvem de fumaça era proveniente das queimadas da Amazônia, de regiões envolvendo Bolívia e Paraguai e que passaram pelo estado do Paraná, alcançando até Minas Gerais, segundo metereologistas.
As queimadas acontecem, geralmente, neste período. Mas a densidade ao ponto de formar um “corredor de fumaça” acontece a partir da intensidade das queimadas. O número do foco de queimadas no Brasil tem aumentado violentamente. Para terem ideia, até 18 de agosto, em uma comparação com o mesmo período de 2018, o aumento foi de 70%, segundo a medição do Programa Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). É o maior índice desde 2013! O bioma mais afetado é o da Amazônia e, em números absolutos, o estado líder nos focos de queimadas é o Mato Grosso: dos 66, 9 mil focos de queimada, o estado está com 13.109 mil focos. Além disso, temos visto a intensificação de invasões de terras indígenas, sustentadas por uma posição amplamente noticiada do chefe maior do Estado brasileiro de que é preciso liberar o garimpo em territórios de preservação.
Mas focando no ocorrido desta semana, algumas coisas me chamaram a atenção. Muitas são as fotos pelas redes sociais com comentários assustados diante do escurecer do dia. E muitos destes comentários são de pessoas falando de “sinal dos tempos” e “fim do mundo”.
No dia 19 mesmo, eu tive um diálogo com uma motorista de aplicativo, enquanto voltava para casa. Ela me dizia que o dia virar noite era um sinal bíblico, que prenunciava o fim dos tempos. Minha resposta para ela foi de que até poderia ser uma leitura, caso considerássemos os bolsonaristas como um sinal apocalíptico. Achei que o comentário traria graça à nossa conversa, mas o efeito foi de silêncio. Mas, na verdade, aquele comentário me colocou em reflexão. Estamos ou não estamos diante da possibilidade real do fim do mundo? Por que não estamos indignados, como ficamos com o incêndio em Notre Dame, na França, com as queimadas brasileiras que fizeram com que uma floresta estivesse sobre nossas cabeças?
Talvez, o acontecido não tenha obtido tamanha movimentação porque já estejamos presos em uma teocracia social, que tem em sua filosofia a ideia de um resgate messiânico, anunciado por uma série de desgraças no processo. Ou seja, estamos presos diante de uma narrativa neutralizadora e, portanto, paralisadora, já que só basta esperar a volta do ungido salvador. Com isso, as pessoas sequer se enxergam ativas no processo. E, no fim, Jesus deve ter pouco ou nada a ver com tudo isso.
E, além disso, minha preocupação aumentou ao me deparar com o discurso entre nós de que não se tratava do fim do mundo, com se explicações científicas bastassem na guerra narrativa que enfrentamos diariamente. Um total desconhecimento, me parece, da complexidade e multiplicidade de filosofias entre os evangélicos. Muitos, por exemplo, não acreditam na ação humana como possibilitadora real da solução dos problemas, se não o próprio retorno de Cristo. E mesmo na explicação científica estariam os sinais: políticos incapazes, a depredação do meio ambiente como evidência da perdição do homem que, sem Deus, tem seu lado destrutivo realçado e aprofundado. Nem todas as correntes evangélicas e protestantes, aliás a maioria, leem a Bíblia ao pé da letra – isso já se sabe ser algo que beira ao fundamentalismo religioso – compreendendo metáforas e analisando que, portanto, o final dos tempos não se tratará apenas de bolas de fogo lançadas do céu, mas de um aceleramento profundo da capacidade destrutiva do homem em relação ao seu ambiente. Ou seja, o homem é o que provoca, altera e aprofunda a sua própria destruição. Com isso, Deus voltaria para arrumar a casa e botar tudo em rédeas novamente.
As narrativas mitológicas e religiosas de diversas sociedades já dão conta de que somos parte da Terra, e há analogias incorporadas nas filosofias cristãs sobre isso. A narrativa de que estamos diante do colapso e do fim do mundo não é um monopólio cristão. A questão é o que esse fim do mundo representa e como podemos evitá-lo ou não.
Em “Ideias para adiar o fim do mundo”, o professor Ailton Krenak alerta que, inclusive, já vivemos muitos “finais de mundo”, bastando entendermos a perspectiva de cada era. E ele faz uma provocação com este título, inclusive para que repensemos esta ideia de humanidade que criamos: “Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos”. Sim, malucas e paralisadas. Vamos sendo descolados de nossa realidade a tal ponto que o sintetizar de toda a selvageria que é parte de nós, e não algo apartado, que é a Terra, pode ser lido como parte de sinais, sem refletir que em sendo tudo arrasado, a reconstrução seria mais difícil. Mas se para deus nada é impossível, que queimem tudo e percebam o pecado em que vivem. E fazem esse tipo de relação sem pensar que estão também inseridos nesse processo destrutivo, absortos numa certeza de que serão salvos.
A pergunta às pessoas, a meu ver, deveria ser se deus nos fez para destruir nosso mundo, a nós mesmos ou para vivermos em harmonia e equilíbrio do existir nele. Ou seja, pode até ser que um salvador venha, mas lavar as mãos não pode ser uma opção, já que esta filosofia religiosa prega a vida. Precisa bagunçar tanto a casa? Quer dizer, as pessoas se mobilizam para o que consideram pecados, como a homossexualidade, o aborto, que acontecem na esfera das liberdades individuais, mas não para algo que envolverá o que consideram pecado em um ataque ao coletivo que somos. O questionamento deveria ser da coerência para que cada um trate com deus diretamente sobre o julgamento da esfera individual, já que o livre-arbítrio existe justamente para esta possibilidade de prestação de contas pessoal. Mas simplesmente cruzar os braços diante de uma floresta inteira sendo queimada, que provocará danos irreversíveis às vidas que estes dizem defender para a salvação eterna, é que me parece uma poderosa contradição que, hoje, repito, está perdida na esperança paralisadora de uma redenção vinda de um salvador externo.
A gente, acreditando ou não nessas filosofias, sendo evangélicos ou não, não pode negar que estamos sim diante do abismo ao qual o professor e ativista Ailton Krenak nos chamou atenção em seu último livro. A gente precisa é pensar nesse processo que marginaliza os agentes que ainda compreendem como a destruição disso tudo significa a nossa destruição. E, talvez, pra isso, como o próprio diz, a gente tenha que trabalhar essa dimensão do sonho, do universo mítico, que a gente tanto se distancia. Talvez não seja o caso de “eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos”. A gente poderia observar mais para exercer uma escuta verdadeira e profunda diante de tudo o que está acontecendo ao nosso redor, até pra gente construir um outro tipo de processo sobre o futuro. E eu não estou aqui negando a construção argumentativa pela razão. Mas, talvez, seja uma bobagem a gente seguir nesse diferenciamento e distanciamento maluco entre o racional e o mítico, quando a gente sabe que há variadas formas de conceber e sentir o mítico. A gente precisa buscar os encontros, o que não significa desrespeitar essa diversidade imensa de signos. Em vez de diminuir a leitura do outro sobre determinados fenômenos, a gente deveria buscar o que a gente faz pra se entender nesse balaio que é o jeito que cada um absorve e vê o mundo.
Do contrário, se confirma a leitura do fim. E só resta mesmo discutir quem pode mesmo nos salvar disso tudo.