Por Neon Cunha*

Um desafio recorrente é pautar que a transição não é um processo exclusivo de pessoas trans, é de toda uma sociedade. É assumir responsabilidade com o que estar por vir, pelo futuro melhor.

Com Esú aprendi que mesmo quando volto no passado faço um caminho olhando sempre para frente, não andamos de costas. Estar aqui hoje é defender não só o direito à memória, mas também o direito à educação e à cultura, tão atacadas, sucateadas, aparelhadas por gestores que pouco se importam ou entendem delas. Pessoas que mal sabem as potências constituídas, a exemplo das obras públicas. E, nesse sentido, o Museu da Diversidade, tem em sua localização como eixo  fundamental a ressignificação de uma região que onde nos anos 1980, as polícias Civil e Militares de São Paulo organizaram conjuntamente as operações como a Tarântula, Richetti, Rondão e Arrastão, que tinham como objetivo maior processar as travestis e homossexuais por ultraje ao pudor público e crime de contágio do HIV/AIDS. Os movimentos LGBTQPIA+ organizados conseguiram suspender as operações, não somente pela sua ilegalidade, como também pelo uso da violência para realizá-las.

Neste período, o então prefeito de São Paulo, Jânio Quadros (PFL), ordenou a limpeza pública e o uso de jatos d’água para afugentar travestis e mulheres trans das ruas paulistanas, alegando que era preciso “limpar a cidade dos anormais”. Lembrando que o estado de São Paulo estava sendo governado por Franco Montoro (PMDB/PSDB) que deu apoio às operações, quase tornando-as oficiais.

Interessante pensar que no mês de maio temos três datas muito distintas que interseccionalizam existências como a minha existência: 13 de maio, o dia do maior truque denominado abolição da escravatura, 17 de maio dia da despatologização da homossexualidade (as identidades trans ainda seguem com seu CIDs realocados). E, em especial, o 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, que surge do Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental, em Bauru (SP), realizado em 1987. A data marca as mobilizações em torno do fechamento de manicômios e a formalização de novas legislações, a implantação da rede de saúde mental e atenção psicossocial e da instauração de novas práticas em um importante movimento de Reforma Psiquiátrica Brasileira, uma referência internacional.

A arte tem sido o maior apoio na construção e na busca por uma saúde mental de qualidade, como já preconizava a psiquiatra Nise da Silveira e Dona Ivone Lara, que atuava como visitadora social em nome do hospital, muitas vezes percorrendo centenas de quilômetros em território fluminense ou até em outros estados do Brasil, atrás das famílias de pacientes internados com o objetivo de reunir os parentes com os assistidos. Dona Ivone também atuava em oficinas de música com internos e eventos nos quais promovia a aproximação de doentes com pais, mães, avós, irmãos etc.  

18 de maio também é Dia Internacional do Museu, e talvez seja o maior papel do constantemente perseguido Museu da Diversidade Sexual de São Paulo (localizado na estação República do Metrô), o de conectar, descentralizar, mobilizar olhares e vidas. Quando penso nos 1.500.000 passageiros diários da linha vermelha do Metrô, da população em situação de rua, em especial as LGBTQIAPNB+, imagino o quanto esse pequeno potente espaço nos aproxima do que é o maior papel da arte: promover o direito de sonhar, de abstrair momentos e desenvolver em nós o sensível.

Nesse sentido, é impossível não pensar que mais do que ser transferido para um casarão colonial –  o Palacete Franco de Mello, de 1905, um dos últimos casarões que resistem na Av. Paulista – o museu merece crescer e aparecer, levando em consideração sua origem e todo o resgate histórico que ele carrega. O poder público pode muito mais – aqui fala quem tem 42 anos de gestão pública. A menos de duzentos metros da estação da República, ficam o Largo do Arouche e a Av. Vieira de Carvalho, região onde surgiram os primeiros espaços de convivência LGBTQIAPNB+ em São Paulo, e não apenas essa memória exista ali, mas esse lugar ainda mantém esse caráter de sociabilidade para nossa comunidade principalmente vindas das periferias da cidade, é também o local onde acontece a Marcha do Orgulho Trans.

Mas na dúvida da importância desse espaço, que conseguiu ir além do museológico, tornou-se um espaço humanizador em meio a anulação dos sentimentos da vida cotidiana, a nossa própria existência em uma cidade muitas vezes tão cinza, talvez seja preciso recorrer ao pensamento do Sr. Bispo do Rosário, um dos símbolos máximos da arte brasileira e da luta antimanicomial:

Eu já fui transparente.

Às vezes, quando deixo de trabalhar, fico transparente de novo.
Mas normalmente sou cheio de cores.

Máximo respeito as LGTQIAPNB+ que foram, que estão aqui agora e as que virão.

E em nome da arte como Dona Conceição nos ensina:

Eles combinaram de nos matar
Nós combinamos de não morrer

E combinamos de celebrar

Quem é Neon Cunha

*Neon Cunha é uma mulher negra, ameríndia, transgênera – nesta ordem de importância. “Minha primeira formação é na faxina, com minha mãe”, diz Neon, que se tornou uma das vozes LGBTQIAPN+ mais importantes do país. Em 2016, Neon pediu à justiça brasileira o direito à morte assistida, caso não lhe fosse permitido o direito de mudar nome e gênero em seu registro, sem que fosse submetida aos processos abusivos que eram exigidos até então. Seu processo abriu caminho para que toda pessoa transgênera pudesse fazer o mesmo. Publicitária e diretora de arte, Neon é ativista independente, sendo a primeira pessoa transgênera a discursar na OEA – Organização dos Estados Americanos, braço da ONU nas Américas, à convite do Geledés – Instituto da Mulher Negra. Entrou para o serviço público ainda no início da adolescência, como estratégia de sobrevivência, ao mesmo tempo que presenciava as operações de extermínio contra suas semelhantes no centro de São Paulo, nos anos 1980. Seja na moda, onde colabora com a marca Isaac Silva e com o Instituto Casa de Criadores, ou em sua carreira política, tendo sido candidata à deputada estadual em 2022 e obtido 35 mil votos, sua trajetória é marcada pela busca da humanidade e das utopias como direitos e possibilidades a todas as pessoas. “Lugar de inspiração é pertencimento, e não é fronteira. Esse lugar, os sonhos são maiores que os medos, é o não limite de ser uma mulher negra”, disse Neon em depoimento ao Itaú Cultural, quando nomeada ao prêmio Milu Vilela, em 2022.