Ecos da Cracolândia
Eu vi então empreendermos uma guerra contra nosso próprio povo, gerida e negociada por quem produziu e distribuiu o que pretende “combater”.
eu vi os homens perderem a visão do dia para a noite
destroçados pela rotina que lhes retirou a liberdade de pensar,
irmãos e irmãs se matando por pequenos pedaços de prazer
em uma vida tão desgraçada, que a morte soa como a melhor parte.
eu vi o sangue de uma geração escorrer pelas escadarias do carandiru,
e seus lábios se queimarem nos cachimbos de alumínio que evaporam crack.
eu vi na ponta do fuzil a sua vida se resumir à caneta de alguém que você jamais viu
e as balas voarem das palavras de quem tem a sua mesma origem
mas aplaude a sua morte.
eu vi o extermínio do meu povo sendo aceito pelo meu povo
e eu me pergunto quem pode nos colocar uns contra os outros?
eu vi o gatilho sendo apertado por muitas mãos
e o sangue fazer arder no peito o desejo de justiça,
sem perceber, que o sangue também é meu
e sou eu quem morre todos os dias.
sou eu quem mata todos os dias.
eu vi as multidões se sentirem tão solitárias a ponto de se suicidarem tão lentamente
que decidiram se mutilar um dia de cada vez,
a fim de que possam viver a partir do sofrimento de outrem.
eu vi os ditos loucos transformados em inimigos número um do estado
e terem seus braços amarrados, suas pernas e troncos chicoteados,
suas casas destruídas, seus pertences levados e sua dignidade roubada.
eu vi drogas surgirem na madrugada de uma noite qualquer dos anos 90
nas esquinas e vielas, nos dedos queimados, nas latas de refrigerante
levando até mesmo os mais fortes de caráter a sucumbir em tua fumaça
eu vi então empreendermos uma guerra contra nosso próprio povo
gerida e negociada por quem produziu e distribuiu o que pretende “combater”
eu vi os exércitos entrarem nas cidades e controlarem nossos corpos
em nome de algo que eu nunca entendi o quê,
mas que também nunca tentaram me explicar
porque não precisam falar e você também não precisa entender,
“abaixe a cabeça e aceite: é assim que deve ser”.
eu vi desde Os Panteras eles matarem e encarcerarem
sob a mesma desculpa que parece nunca cessar, que sempre se renova,
sempre suficiente para convencer
eu vi homens fardados guardando homens de gravatas e blazers bem cotados
sorrindo felizes e admirados, gravando ao vivo em seus celulares o recado:
“meu povo, tudo está sendo bem administrado! vejam como mato os seus logo aqui ao lado!
esses outros vão para um manicômio, onde serão muito bem tratados! esse é o meu trabalho!”