E se quisermos comer milho não transgênico? Por uma alimentação soberana
Uma ida ao supermercado das grandes cidades hoje no Brasil pode ilustrar bem o quanto o país vem perdendo em soberania alimentar. Se procurarmos por alimentos derivados de milho, por exemplo, na maior parte das vezes só encontraremos produtos rotulados como transgênicos. Mas, e se quisermos comer milho não transgênico?
Por Eliana Conde Barroso Leite
Uma ida ao supermercado das grandes cidades hoje no Brasil pode ilustrar bem o quanto o país vem perdendo em soberania alimentar. Se procurarmos por alimentos derivados de milho, por exemplo, na maior parte das vezes só encontraremos produtos rotulados como transgênicos. Mas, e se quisermos comer milho não transgênico, qual é o nosso direito de escolha?
Para o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), um povo só é livre quando é soberano, e esta soberania passa pela alimentação. Trata-se do direito de um povo em definir suas próprias estratégias de distribuição e consumo de alimentos, que garantam o direito à alimentação a toda a população, com base na pequena e média produção sustentável, respeitando-se a cultura e os modos camponeses de produção e comercialização.
O caso do milho é bastante emblemático. O milho (Zea mays L.) teve origem no México ou na América Central, e vem sendo cultivado há pelo menos oito mil anos. Foi domesticado e diversificou-se geneticamente entre os povos ameríndios da América do Sul. No Brasil, foi cultivado por índios das etnias Guarani e Kaigang, além dos milhos amazônicos. É talvez a espécie vegetal de maior variabilidade genética entre todos os cultivos. Existem cerca de 300 raças de milho, e dentro destas raças, milhares de variedades. Porém, a despeito desta ampla variabilidade genética, no Brasil, os plantios atualmente são predominantemente formados por sementes transgênicas, controladas por poucas e gigantescas corporações. Além da grande uniformização genética e simplificação perigosa dos sistemas agrícolas, o risco de contaminação dos nossos bancos de sementes nativas por transgenes é muito alto.
Os plantios transgênicos foram autorizados no Brasil há 17 anos, gerando muita rejeição nos consumidores. A técnica de transgenia, que consiste em compartilhar material genético de espécies totalmente distintas, como bactérias e plantas, surgiu pela descoberta de que certas bactérias introduzidas na soja a tornavam resistente ao herbicida glifosato, o que permitia a utilização deste produto na cultura mesmo depois que esta já estivesse vegetando, fato que não ocorria antes. Isto ampliou consideravelmente o mercado do herbicida glifosato em termos globais e horrorizou os consumidores, para quem os alimentos transgênicos não passavam de Frankenfood que só interessavam às grandes corporações de agrotóxicos. Para os movimentos de defesa dos consumidores, ambientalista, e de defesa dos pequenos agricultores, não se trata de ciência, no sentido de legar um benefício à humanidade, e sim, de tecnologia com objetivos puramente comerciais, com graves consequências sociais, ambientais e riscos pouco conhecidos à saúde humana, e que ainda por cima ampliou o consumo de agrotóxicos e a contaminação dos alimentos.
A pressão das grandes corporações sementeiras, que são as mesmas que vendem os agrotóxicos, foi intensa e hoje, os grãos transgênicos predominam nas lavouras brasileiras de soja e milho e algodão, em grande parte destinadas à exportação sem nenhum valor agregado. De acordo com o International Service for Acquisition of Agri-biotech Applications (ISAAA), em 2019, o Brasil cultivou cerca de 51 milhões de hectares de soja, milho, algodão com sementes transgênicas e com uma espantosa taxa de adoção em torno de 93%.
O Brasil colhe hoje grandiosas 100 milhões de toneladas de milho anuais. Entretanto, cerca de metade desta produção é destinada ao consumo animal e 36% é exportada. O consumo humano é extremamente baixo: apenas 2% da produção, segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Milho (Abimilho). Este baixo consumo se deve a várias razões: culturais, o processo de urbanização que padronizou hábitos alimentares e a política de subsídio ao consumo de trigo nas décadas de 60 e 70, esta última fruto também de pressão da indústria do trigo.
Se as grandes corporações dominam o mercado de sementes em escala global, o mesmo se dá com as grandes redes do varejo, resultando na crescente concentração do sistema agroalimentar mundial e brasileiro. Desta forma, o direito de escolha do consumidor esbarra no poder de controle de poucas empresas da cadeia agroalimentar. O resultado é que 17 anos após o Brasil liberar os plantios geneticamente modificados é muito difícil encontrar derivados de milho não transgênicos na rede varejista, incluindo aí as rações para pequenos animais.
O milho não é refinado no processo de industrialização, e a presença da casca enriquece com fibras os seus derivados, possuindo, além de proteínas, carboidratos e vitaminas, pigmentos carotenóides relacionados à prevenção de doenças degenerativas. Possui ainda fitoquímicos antioxidantes associados à redução de lesões pré-cancerosas. É extremamente versátil, e está presente em pães, farinhas, biscoitos, massas, amido, óleo, vinagre, glicose, dextrina, cuscuz, polenta, mingau, bolos, canjica e pipoca, entre outros produtos. Por sua riqueza nutricional, grande adaptação e disseminação por todo o território nacional, além de uma produção anual fabulosa, seu consumo deveria ser bem mais estimulado.
Apesar da participação expressiva na agricultura patronal, há uma dualidade muito importante do ponto de vista social e da agrobiodiversidade na cultura do milho, que é o modo familiar de produção, disseminado por todo o território nacional, menos tecnificado, porém, estratégico para a sobrevivência destas comunidades agrícolas. E é justamente nesta produção que se encontram as sementes crioulas, cuja carga genética de adaptação ao meio ambiente é muito grande, em geral resistindo melhor à seca, pragas e doenças. Estas sementes são muitas vezes centenárias, e seu manejo representa um saber transmitido através de gerações, além de serem de livre multiplicação. No Nordeste, a exemplo do que ocorreu em outras partes do mundo, nos anos 70 surgiram as experiências de Bancos de Sementes Comunitárias, com apoio da Igreja Católica junto às comunidades eclesiais de base (CEBs). Hoje, esta tecnologia social constitui verdadeira resistência na proteção do nosso patrimônio genético nas múltiplas regiões do país.
No México, por ser região de origem do cereal, o plantio de milho transgênico é proibido, visando salvaguardar a integridade genética do milho nativo. De acordo com o boletim “Sementes Crioulas”, da entidade AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, o senado mexicano recentemente aprovou lei federal que declara o milho nativo como patrimônio alimentar nacional. A lei ressalta que o patrimônio alimentar é regido pelo direito de todas as pessoas de consumir milho livre de transgênicos.
No Brasil, infelizmente ainda se luta muito pela manutenção das regras de rotulagem, frequentemente atacadas, e pela definição de regras de distanciamento dos milhos transgênicos para os não transgênicos mais rigorosas e diferenciadas de acordo com a realidade de cada região, pois segundo a AS-PTA uma única norma bastante discutível serve para todo o país.
A rede de comercialização direta entre agricultores familiares, agroecológicos, orgânicos e consumidores se fortalece a cada dia no país, estreitando as relações campo-cidade e ajudando a resistência no campo. Iniciativas de abastecimento popular, como o Mercado Popular de Alimentos e a Aliança Camponesa e Operária por Soberania Alimentar, do Movimento dos Pequenos Agricultores é um dos inúmeros exemplos a serem divulgados. Ao escolher nosso alimento, estamos definindo o futuro alimentar do país.