É possível mudar: por uma política cultural sustentável para o interior baiano
É urgente pensar um novo ciclo de políticas culturais para a Bahia que fortaleça a continuidade dos projetos, reconheça a diversidade dos territórios e descentralize os recursos
A pergunta que atravessa artistas, produtores, coletivos e gestores da cultura no interior da Bahia é uma só: como garantir a continuidade de projetos culturais fora dos grandes centros, em um cenário em que o FazCultura não chega, as emendas parlamentares são distribuídas por critérios político-partidários e os editais públicos são extremamente concorridos e incertos?
A resposta, embora complexa, exige a combinação de mudanças estruturais nas políticas culturais do estado e da atuação organizada da sociedade civil.
Os desafios são muitos. O atual modelo de fomento tem se mostrado insustentável para quem atua na base da cadeia cultural. A extrema concorrência por editais, a instabilidade de calendários e a concentração de recursos em poucas iniciativas geram insegurança e esgotamento em artistas e produtores, especialmente fora da capital.
O exemplo recente do edital da PNAB Bahia voltado para o fomento a festivais e grupos já existentes é emblemático: tivemos 615 inscritos e apenas 29 selecionados. O que esses outros 586 grupos e festivais que não foram contemplados devem fazer para continuar existindo? Essa pergunta escancara a necessidade de uma política que vá além da lógica da concorrência extrema.
Diante disso, é urgente pensar um novo ciclo de políticas culturais para a Bahia que fortaleça a continuidade dos projetos, reconheça a diversidade dos territórios e descentralize os recursos. Três frentes principais podem ser destacadas:
1. No campo político: reconstruir a participação social e a gestão compartilhada
A retomada do programa “Municípios Culturais”, que incentivava a estruturação de políticas municipais de cultura, é essencial para fortalecer os territórios. Além disso, é urgente reativar os colegiados setoriais de cultura, espaços de escuta, formulação e monitoramento das políticas, fundamentais para garantir que as demandas do interior sejam ouvidas e transformadas em ações.
2. No campo do fomento: distribuir melhor, estruturar com equidade
O FazCultura, embora seja uma importante ferramenta de incentivo fiscal, tem alcance praticamente nulo no interior do estado. Sua reestruturação deve considerar linhas específicas para projetos de pequeno porte e de regiões fora do eixo Salvador/Região Metropolitana.
O Fundo de Cultura do Estado da Bahia (FCBA) também precisa ser reestruturado, com calendários mais regulares, seleções mais distribuídas e critérios mais justos que contemplem continuidade de ações. Projetos que têm histórico de realização consistente não podem disputar em igualdade com propostas iniciantes em todos os ciclos.
Outro ponto central é a distribuição das emendas parlamentares. A cultura não pode seguir refém dos acordos político-partidários: é preciso que o estado estabeleça diretrizes e parâmetros para a aplicação das emendas na cultura, com foco em continuidade e descentralização.
Além disso, é preciso repensar a política de cachês do São João, maior investimento anual do governo estadual em cultura. No ano passado, a Bahia gastou R$ 103.545.000,00 pagando apenas 20 artistas nas festas juninas, o que dá uma média de mais de 5 milhões para cada um. Com o mesmo recurso, seria possível bancar um ano inteiro de atividades para os mais de 500 festivais e grupos artísticos que não foram contemplados no edital da PNAB — com R$ 200 mil para cada um. É uma escolha política que revela as prioridades e os caminhos possíveis.
3. No campo simbólico e estratégico: valorizar o que resiste
Apesar das dificuldades, muitos festivais, artistas e espaços culturais seguem resistindo no interior baiano. São iniciativas que, mesmo com poucos recursos, têm gerado acesso, formação e fortalecimento de identidades locais. A continuidade dessas ações precisa ser entendida como estratégica para o estado.
A história mostra que é nos vazios institucionais que as redes culturais se reinventam. Mas também mostra que, sem políticas públicas consistentes, a maioria acaba sucumbindo. É hora de mudar esse ciclo. Não é possível seguir contando apenas com a força de vontade, com a insistência heróica ou com a sorte nos editais.
Nesse sentido, vale destacar o que nos ensina a apostila “Políticas Culturais: trajetória e desafios contemporâneos”, organizada por Laura Bezerra no âmbito da pós-graduação em Política e Gestão Cultural da UFRB. O material lembra que políticas culturais não podem ser confundidas com ações aleatórias ou esporádicas. Elas precisam ser sistemáticas, articuladas e sustentadas no tempo, contemplando toda a cadeia produtiva da cultura — da criação à fruição. Esse olhar sistêmico é o que pode garantir que a cultura do interior seja compreendida como parte estratégica do desenvolvimento do estado, e não como algo periférico.
Garantir a continuidade de projetos culturais no interior da Bahia passa, necessariamente, por uma escolha política: queremos uma cultura viva em todos os territórios ou um modelo concentrado, esporádico e excludente?
Essa escolha precisa ser feita agora.