‘É impossível consolidar a democracia sem a democratização da informação’ alerta o ex-ministro Franklin Martins
A influência da radiodifusão no que ele considera um golpe realizado recentemente no Brasil, as legislações de outros países e a necessidade de uma comunicação plural e sem o oligopólio econômico de poucos grupos são alguns dos temas a seguir.
Então ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social (Secom) do Brasil no mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, o jornalista Franklin Martins esteve à frente de todo o processo que resultou na Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada no dia 17 de dezembro de 2009, em Brasília (DF). Milhares de pessoas da sociedade civil, o empresariado do setor e diversos outros segmentos se envolveram no debate, que culminou na coleta de mais de 600 propostas que chegaram às mãos de um grupo interministerial responsável por desenvolver um marco regulatório sobre o tema a ser entregue ao próximo governo. A ex-presidenta Dilma Rousseff quando eleita acolheu o documento, mas o processo não foi para frente.
No último dia 19 de outubro o coletivo À Esquerda na Praça promoveu um debate público na Praça São Salvador, em Laranjeiras, na zona sul carioca, para abordar esse assunto que há anos continua polêmico. Dentre os participantes, estava Franklin Martins para relatar sua visão a partir do governo sobre quais foram as disputas em jogo. Na entrevista e relato a seguir, ele fala sobre os principais pontos em discussão e a importância da democratização dos meios de comunicação para a democracia no país. A influência da radiodifusão no que ele considera um golpe realizado recentemente no Brasil, as legislações de outros países e a necessidade de uma comunicação plural e sem o oligopólio econômico de poucos grupos são alguns dos temas a seguir.
Qual a disputa que está em questão quando se levanta esse tipo de debate e desencadeia esse tipo de processo?
Não vou especular o que fez com que a Dilma não levasse o processo à frente. Ela começou a dizer que o melhor controle era o controle remoto, o que era um erro. Regulação não é controle e ao dizer isso ela fortalecia exatamente o discurso dos setores de direita e das grandes corporações, que diziam que qualquer regulação era uma tentativa de controlar a mídia. Foi jogada fora a oportunidade, estava madura para abrir o debate independente se ia ganhar ou perder. Foi um equívoco monumental, e pagamos um preço muito grande por isso.
Por que você acha que pagamos um preço muito grande com isso?
Porque quem dirigiu o golpe foi a telecomunicação no Brasil, basicamente através da televisão e do rádio, que são concessões públicas que não têm nenhuma regulação. Eles usam como se fosse um partido, e em nenhum país sério grande e democrata se faria isso. Porque quando é uma concessão, como as TVs e rádios que têm frequência no espectro, você ganha uma licitação e tem regras a cumprir. No Brasil o grupo é como se fosse o dono do espectro, e faz o que quer. Na Confecom o debate político, a convergência de mídias, que também gerava uma insegurança e instabilidade em muitos grupos de radiodifusão, abriu um espaço de debate público aberto e transparente. Infelizmente o governo Lula fez aquilo andar, criou as condições e o governo seguinte, embora democrático e progressista, achou que não devia tocar.
Nesse processo coletivo foram colhidos muitos elementos que culminaram num documento, o que tinha ali de fundamental?
O fundamental não era uma medida ou outra, até porque é bom ter claro que tinha um debate positivo mas também era uma balbúrdia monumental. Muitas propostas aprovadas eram conflitantes entre si, mas o principal foi que a Confecom botou o tema na agenda do país. Teve uma coisa muito positiva, as organizações sociais, como o Intervozes e outras, falavam para eles mesmos usando sempre a expressão controle social da mídia e perceberam que aquilo era o que a direita queria. Então abandonaram essa expressão e sentiram que tinham condições de avançar e não só fazer discursos. Por isso os grandes grupos de comunicação e radiodifusão se retiraram na fase final da Conferência, não queriam mais debater tema nenhum falando que era uma tentativa de controle.
O mais importante da Confecom foi ela ter sido realizada pelo governo e ter dado origem a um ante projeto e ter ensejado depois, em novembro de 2010, a realização de um seminário internacional no Brasil sobre convergência de mídia vindo gente de todas as agências reguladoras dos maiores países do mundo. Recolhemos essa experiência extraordinária, só que em 2011 morreu.
Teve um ato nessa semana na ABI em apoio a CartaCapital, que anda mal das pernas, e isso é um termômetro da situação de toda a mídia contra hegemônica. Como você vê essa questão da sustentabilidade desses projetos? Muitos dos projetos menores se sustentavam com as verbas públicas da publicidade do governo.
Eu discordo que tinha muito dinheiro do governo, a CartaCapital era sustentada pelos seus leitores e anunciantes. O problema é que vivemos uma crise e os anúncios diminuíram também, o que acontece é que com esse movimento no Brasil as empresas foram para a direita. E o governo atual do Temer não vai fazer nada mesmo, vai botar a publicidade nos órgãos de direita. É um governo escrachado como conservador de direita, faz a política pequena de forma ostensiva. Não é um problema da CartaCapital, e sim do país que tem que acabar com esse governo.
Qual a sua avaliação do momento político do país?
Estamos vivendo um momento muito difícil e espero que o povo brasileiro dê uma resposta. O Brasil é grande demais para caber no cercadinho que eles montaram, eles têm ilusão de que num país de 200 milhões de habitantes com uma riqueza histórica como essa, uma economia complexa, vai caber num lugar onde existem 50 empresários e grupos que mandam e fazem o que querem e o povo assiste. Uma hora vai explodir, seja numa eleição ou na rua.
Segue a edição do discurso realizado durante o evento
Regulação da Comunicação no Brasil e no mundo
O golpe deixou claro que a existência de um oligopólio na área de comunicação social é absolutamente incompatível com a democracia, o estado de direito e com a vigência da constituição. Ou o país democratiza a comunicação social, ou segue sendo tutelado, amordaçado, manipulado e censurado pelos barões da mídia. Não há democracia com oligopólio ou monopólio da mídia: isso vale para Alemanha de Hitler, a União Soviética de Stálin, o Brasil do Estado Novo, da ditadura e o de hoje. É incompatível com a pluralidade, com os direitos humanos, os avanços sociais, porque concentra poder num setor da sociedade sem contrapesos. E é nas mãos de quem já detém o poder, ele desequilibra a disputa política e estabelece a censura privada sobre o espaço público.
É parte da essência da imprensa essa contradição de ser um espaço público mediado por interesses privados. Uma praça pública onde se encontram informações, se estabelece o debate e se informa a população, mas quem faz isso tem interesses privados: partidários, econômicos, acionistas, das empresas, etc. A imprensa é melhor quando o caráter público dela prevalece sobre a pressão privada. No final da luta contra a ditadura a imprensa melhorou no Brasil, porque prevaleceu uma força que vinha da sociedade e limitava o controle privado sobre a informação. No entanto, em todos os países do mundo há algum tipo de regulação sobre as comunicações eletrônicas. Não sou favorável à regulação da mídia, na imprensa escrita o dono funda e banca o jornal dele e fala o que quiser. Diferente é a comunicação eletrônica, a radiodifusão, porque isso é uma concessão do Estado. O espaço eletromagnético, onde estão as frequências da rádio ou TV, é finito, público, limitado e em regime de concessão pelo poder público. Se o poder decide conceder esse espaço para você e não para outro, existem obrigações a cumprir porque está fazendo algo em nome do Estado. Essas concessões públicas têm regulação: água, esgoto, luz, transporte público, aéreo, etc. A sociedade tem que ter condições de fazer com que sejam cumpridas uma série de regras, mas no Brasil isso não vale porque não temos nenhum tipo de regulação na radiodifusão.
Em todos os grandes países democráticos no mundo existe. Na Europa, por exemplo, na regulação dos meios eletrônicos eles chegam a dizer que no conteúdo você tem de ouvir os dos lados. É necessário ter equilíbrio, existe um ente regulador que avalia. É assim por que a radiodifusão nasceu pública e era necessário controlar para que os governos não manipulassem a informação. Nos EUA, onde a radiodifusão nasceu privada, também tem regulação mas com um caráter diferente: ela é econômica. É proibida a propriedade cruzada, ou seja, um mesmo grupo num Estado não pode ter mais do que uma plataforma: ele tem rádio, televisão ou jornal. No Brasil, tem se de tudo, mas lá quem produz não distribui e vice versa. No Brasil, a Tv Globo produz e distribui tudo. Todos os países têm regulação e não existe nada de atentado à liberdade de imprensa, que é o discurso fundamental dos grandes veículos. Regulação é estabelecer normas a ser seguidas e ter agências, instituições, que regulem isso. É assim na França, Inglaterra, Alemanha, Itália, Espanha, Portugal, Argentina, etc.
Esse discurso é feito no Brasil para que eles sejam os senhores da opinião pública e possam dizer, manipular e censurar o que querem. Possam impedir que a informação circule, porque isso dá poder político e econômico para eles. Quando surge a televisão no Brasil nos anos 50, o Getúlio pensou em fazer a TV Nacional mas Chateaubriand virou pra ele e disse: faz isso para você ver. Getúlio ponderou e resolveu não fazer. Mas já tivemos um grau de pluralidade muito maior na radiodifusão no Brasil, seja nas rádios ou mesmo na televisão, do que hoje em dia. Durante a ditadura foi tudo consolidado com um discuso só. Quebrou um pouco no período de redemocratização, depois com os avanços políticos e sociais que se seguiram e hoje em dia no processo de organização do golpe eles fecharam de novo a torneira.
Comunicação no Governo PT
Por que não enfrentar esse problema? Começou com os governos progressistas que chegaram em 2002, na primeira fase havia uma ilusão de que não precisaria mexer em nada e os grupos de comunicação ajoelhariam diante do governo. Isso foi até o mensalão, porque eles achavam que o Lula ia tropeçar nas próprias pernas e eles voltariam por gravidade. Mas quando entenderam que não iam mais, foram com tudo para cima. Quando tem o segundo mandato e o Lula me convida para ser ministro da Secom, eu disse: não vai dar certo porque eu tenho uma visão de comunicação diferente. Comunicação é disputa política o tempo todo, hoje em dia nós perdemos de 5 a 0 todo dia porque a bola é deles, o juiz é deles, a torcida é deles. Se disputar tem dia que pode ser menos, pode até empatar ou ganhar. Ele não só concordou com tudo, como fez no segundo mandato. Naquele momento você tem uma disputa permanente com a grande mídia, e passa a se relacionar não só com ela mas também com a pequena, a regional, a popular, rádio de interior, blogueiros, etc. Você não precisa da mediação da grande mídia para chegar ao resto da população, e tem de tratar a mídia como algo extremamente heterogêneo, complexo, fazendo a disputa política ser o centro de tudo. Essa é a fase onde se avança na criação da EBC, onde se convoca a Confecom, onde as organizações sociais amadureceram.
A Confecom foi muito importante porque o tema entrou na agenda política. Foi preparado um ante-projeto da comunicação eletrônica para ser entregue à Dilma. Aí vem a terceira fase, quando ela disse que não queria fazer regulação e o melhor controle da mídia é o controle remoto. Foi uma coisa ruim não só por que não entrava no assunto quando havia elementos, amadurecimento para se poder debater, mas também a própria grande mídia estava tendo que lidar com alguns problemas complicados com a convergência de mídia, a transformação da TV num aparelho de computador ou celular. Ela começava a enfrentar concorrência de um setor economicamente muito mais forte, a telefonia fatura treze vezes mais que a radiodifusão no Brasil. Havia elementos das forças produtivas empurrando para a necessidade de uma discussão, não quer dizer que ia sair coisas maravilhosas mas dava para o governo federal ter comandado um debate público aberto e transparente e colocado a discussão na agenda definitivamente.
Comunicação como direito básico
A sociedade não entendeu ainda que esse é um tema vital para a democracia no país. As pessoas entendem que têm direito à educação, saúde, segurança, mas não entendem que têm direito à informação plural. Isso não é parte do programa mínimo delas, porque lograram naturalizar o oligopólio. A naturalização é uma coisa decisiva na política, legitima a opressão. Uma mulher é submetida por um homem e a sociedade aceita se naturalizarem que ela na verdade é um pouco inferior e deve ser do lar. Assim como o discurso de que o negro e o índio são considerados inferiores, e no nordeste só tem pobre. No caso da comunicação eles acham que têm o direito porque é deles, mas o espaço eletromagnético não é deles. Legitimaram isso, mas também com a nossa ajuda. Quantos deputados estaduais, federais, senadores, vereadores, colocam no seu programa para valer a necessidade da democratização da mídia? É de contar nos dedos e nos partidos progressistas, porque esse é um tema que não dá voto e dá porrada. Não botam engajamento, pressão, a alma naquilo, então como a população vai ver isso como um direito? Já legitimou e naturalizou.
O golpe transformou a questão da mídia numa questão da agenda nacional. Não foi algo que a esquerdinha falou ou um ou outro deputado, nem organização social, sindicato, etc. A população viu durante meses eles comandando o golpe e escondendo os mal feitos do mesmo. Todos vêem a apresentação de uma situação de destruição de direitos e aniquilamento de conquistas como se fosse algo absolutamente correto. Muita gente, inclusive eu, está chocada de ter havido um golpe no Brasil e tantas conquistas estarem em risco, tantos atropelos e truculências sendo cometidas. Mas não acho que eles ganharam ou tenham estabilidade de ir à frente com isso. O Brasil é um país grande demais, 200 milhões de habitantes, uma economia complexa, uma história política rica, riquezas naturais monumentais, uma projeção internacional natural, para caber num sisteminha político onde ali 3 mil pessoas decidem tudo. O golpe venceu por causa dos nossos erros: não fizemos a democratização da mídia, a reforma política, nos paralisamos politicamente e não fizemos a disputa política com a intensidade que a luta política requer. Ganhamos uma eleição que, não sei por que cargas d’água, no dia seguinte o programa aplicado não foi o sancionado pelas urnas. Triunfaram por causa dos nossos erros, mas o golpe foi dado por causa dos nossos acertos. Mudou-se o Brasil, se mostrou que o país não precisa ser governado apenas por um terço da população. Que o pobre ao invés de ser um estorvo, um peso, um problema, é energia, mercado interno, riqueza para sustentar o país com o seu trabalho, consumo e capacidade. Nós desmontamos o discurso natural da dominação deles desde o fim da escravidão, o povo coube no Brasil e o país ficou mais forte, respeitado, leve, generoso, cresceu e enriqueceu.
A gente às vezes não se dá conta e acho que nem eles, o Brasil é hoje uma democracia de massas ainda que vivendo um golpe. Nas eleições de 1930 votaram para presidente 1.250 milhões de pessoas, o equivalente a 5% da população. Em 1945, nas primeiras eleições depois do Estado Novo, foram 5,8 milhões de brasileiros, aproximadamente 13% da população, dentre outras coisas porque as mulheres conquistaram direito de voto e os trabalhadores começaram a se registrar. Nas eleições de 1960 já eram 18%, aí teve a ditadura e ficamos muitos anos sem as eleições. O Collor se elege já com 44% dos eleitores, porque entrou o voto analfabeto, é um período de luta pela democracia fazendo as pessoas se alistar e também a urbanização e processo de crescimento econômico. A eleição do Lula já foi com 54% e a da Dilma com 56%, então não dá para pegar isso e colocar num quadradinho e dizer: o Temer, o Moreira Franco, João Roberto Marinho, Alckmin, etc, vão decidir o que acontece no Brasil. Eles provavelmente vão tentar, mas acho que o povo do nosso país é mais forte e tem mais experiência. Como eu não sei, mas passará por cima deles e quando isso acontecer a questão da regulação dos meios eletrônicos de comunicação tem que estar na agenda. É impossível consolidar a democracia com o oligopólio da mídia e sem a democratização da informação.