Doria, tenha dó
O Prefeito de São Paulo ultrapassou os limites ao dizer, enquanto representante do Estado, que uma obra deve ser retirada de um espaço público.
Duas coisas muito sérias aconteceram.
O Prefeito João Doria se posicionou contra uma exposição realizada no MAM de São Paulo. Afirmou que uma obra de arte deveria ser retirada do museu por discordar do seu conteúdo. E Ernst Ludwig Kirchner se matou.
O Prefeito disse isso hoje. Kirchner não se matou hoje, suicidou-se em 1938. Mas juro que ambas as histórias são uma mesma história.
Kirchner era um artista impressionista alemão. Fundador de um grupo de pintores expresionistas chamado Die Brücke. O grupo, fundado em Dresden em 1905, reunia artistas interessados no primitivismo e em experimentar maneiras de retratar com cores intensas a época intensa que viviam. Em 1906, Kirchner publicou um manifesto que afirmava: “todos que reproduzem, de maneira direta e sem ilusões, o que sentem e o faz criar é um de nós.”
Die Brücke foi um grupo seminal para a evolução da arte moderna, essa que hoje ocupa com destaque os museus de todo o mundo. Seus primeiros encontros foram no estúdio de Kirchner. Um espaço vibrante ocupado sempre por pessoas preenchidas pela necessidade urgente de inventar.
Em 1911, Kirchner mudou-se para Berlim. Em 1914, alistou-se para defender a Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Mas a guerra foi demais para este voluntário do exército alemão. Em 1915, ele foi admitido num sanatório, o médico de seu batalhão disse que ele precisava recuperar o equilíbrio mental e espiritual. Um diagnóstico apropriado: Kirchner ficou pouco tempo hospitalizado e no ano seguinte voltou à ativa. Vendeu obras por valores importantes. À época, o pintor prosperava. Mas as imagens do conflito não o abandonaram e os anos seguintes foram marcados por internações seguidas de momentos de atividade e prosperidade. Num desses momentos, em 1931, Kirchner foi nomeado para a respeitadíssima Academia de Artes da Prússia.
Quando os Nazistas ascenderam ao poder, Kirchner foi um dos muitos artistas tachados de “artistas degenerados”.
“Arte degenerada” era o termo adotado pelo regime nazista para designar boa parte da arte moderna, em especial o expressionismo alemão.
Os que recebiam tal rótulo eram alvo de sanções: proibidos de expor e vender suas criações ou lecionar sobre elas. Galerias foram fechadas, quadros apreendidos. Restrições similares foram aplicadas à demais expressões artísticas, como o jazz ou os livros de Kafka.
Num dos momentos mais simbólicos da luta nazista contra a suposta “arte degenerada”, inúmeras obras de Picasso, Dalí, Miró e Paul Klee foram destruídas numa fogueira na noite de julho de 1942 nos jardins da Galeria Nacional de Jeu de Paume, na Paris ocupada. Quadros que hoje a elite brasileira gasta milhares de reais para visitar em museus pelo mundo. O Prefeito João Doria, inclusive, certamente deve admirar tais artistas. Certamente já viu seus trabalhos de inquestionável relevância.
Kirchner não viveu para ver essa noite de horror. Para ver as obras de seus pares queimarem. Ele insistiu como pode.Organizou, nos anos de 1937 e 38, inúmeras exposições reunindo trabalhos proibidos e sofrendo a crescente repressão do Estado e daqueles que o apoiavam a cada tentativa de persistir na defesa da liberdade artística e de expressão.
Mas há limites para a resiliência. E Kirchner o encontrou em 15 de junho de 1938, quando desceu as escadas de sua casa em Frauenkirch e, ao chegar na rua, atirou na própria têmpora.
Hoje o trabalho de Kirchner pode ser visto em muitos museus pelo mundo. Em 2008, o Museu de Arte Moderna de Nova York, o MOMA, organizou a mais completa retrospectiva de seu trabalho. Talvez o Prefeito João Doria tenha passado por Nova York nestes dias. Espero que tenha visitado o MOMA à ocasião.
Qual a relevância dessa história? Porque lembrar disso? Porque o Prefeito João Doria tomou uma decisão vital: fazer coro com o movimento social que tem de modo agressivo se oposto à liberdade artística. E há uma nuance que precisa ser lembrada.
Quando a sociedade civil se opõe a um tipo de expressão artística, estamos falando de um tipo de fenômeno. Quando o Estado se opõe a um tipo de expressão artística, estamos falando de outro. Um fenômeno que a história já viu como termina: com fogueiras que consomem obras icônicas. Sobram apenas as brasas. Das obras, mas também da democracia.
O Prefeito tem razão: há limites. Mas quem os ultrapassou não foram os artistas ou o museu. E sim o Prefeito de São Paulo, ao dizer, enquanto representante do Estado, que uma obra deve ser retirada de um espaço público. Enquanto autoridade, espera-se uma atitude mais republicana. Que nos lembre mais de grandes estadistas e menos de grandes ditadores.
De repente, me senti como Kirchner em 1938.
Ainda bem que sou a favor do Estatuto do Desarmamento, neste momento ameaçado em nosso Congresso Nacional, e não tenho uma arma à mão.