por Mauricio Stegemann Dieter

O nome do programa da prefeitura de São Paulo é “Alimento para Todos”.

A ideia é simples, propriamente simplória, isto é, adequada à limitação intelectual típica de um típico parlamentar do PV.

Restos de comida rejeitados pelo mercado são processados, compactados, liofilizados e distribuídos em diferentes formas para uma população desautorizada à crítica culinária: os que tem fome.

O público-alvo é óbvio. De plano, os cidadãos brasileiros que não tem outra residência além das ruas, praças e viadutos, constrangidos a comerem o que lhes for oferecido; futuramente, graças a uma hipotética combinação de privação e marketing, o governo pode chegar a conquistar a adesão da classe trabalhadora, com a vantagem de reduzir ainda mais o custo de sua reprodução.

O prefeito João Dória, ainda do PSDB, fingiu espanto diante das imediatas e mais do que previsíveis críticas: se o alimento é seguro para consumo e contém elementos essenciais para a nutrição humana, do que reclamam os esquerdistas?

Ele não está sozinho. A grande imprensa tratou superficialmente da matéria e foi mais do que apologética. Seus partidários foram além: somaram vozes a partir de um cínico e súbito compromisso social (“o importante é alimentar os que tem fome”, “pior seria desperdiçar” etc.) e agora chamam os detratores da proposta de ignorantes ideólogos, que desconhecem a tecnologia envolvida no processo (“isso é servido na estação espacial”, entre outros escapismos mais ou menos risíveis). A premissa é inegável: dizer “isso é bom”, aqui, significa “isso é bom para os outros” (“nós” queremos hortaliças orgânicas, pão de fermentação natural, “free-range chicken” etc.)

O ponto principal parece perdido para essa classe política e seus adeptos. A questão não é, propriamente, a garantia de que comer essa “farinata” ou alimentos dela derivados não traz risco para a saúde, que ela pode ser transformada em algo verdadeiramente gostoso ou, ainda, de que essa mistura realmente pode suprir boa parte das exigências calóricas e nutricionais de um homem com fome o suficiente para dispensar o pudor da pergunta “o que é isso que estou prestes a engolir?”. Não tenho dúvida, aliás, de que um turista brazuca e meio bobo na Flórida estaria mais do que disposto a mastigar com alegria jocosa essa gororoba no museu da NASA para sentir “o gosto de ser astronauta” – com direito a debiloide foto online e, na pior das hipóteses, um cocô com cheiro estranho horas mais tarde.

O que realmente parece fora de órbita para os entusiastas dessa lógica alimentar é que o ser humano não apenas come; ele faz refeições.

Não se trata da mera ingestão de matéria orgânica, mas de um ato social de profundo significado (cultural, antropológico, religioso, político etc.). O que você come, quando, quanto, em quanto tempo, na companhia de quem, com quais instrumentos etc. são perguntas cujas respostas definem nosso lugar no mundo e tempo na história – nada mais, nada menos, ajudam a explicar o sentido mais radical de nossa existência.

Nisso, aliás, está uma chave biológica da própria “natureza humana”, cujas raízes delimitam a fronteira do que é meramente bestial: na base de nossa evolução específica está a capacidade de cozinhar os alimentos, fundamental para o desenvolvimento de um insaciável cérebro, de exageradas proporções. Desse momento em diante, com todas as mediações envolvidas, a ingestão de alimentos é necessariamente ritual; quando isso se perde é porque formos, precisamente, reduzidos à condição animal (tal qual “O Bicho”, de Manuel Bandeira).

Alimentar-se é uma das atividades mais ricas de significado que conhecemos: e a partir dessa experiência que deveria ser pensada a ação pública, não de sua negação.

Pois é exatamente nesse ponto que a “política de alimentação” pela “lógica da gestão” (eficiente) falha miseravelmente, intenções à parte. Ela parte de um pressuposto rigorosamente desumano. Ignora, de todo, que do outro lado da comida está o “ser-que-come”, cujas demandas não se limitam ao cálculo das utilidades a serem digeridas. Ao contrário do Robocop, que não estabelece qualquer relação com a pasta proteica que lhe ministram, para o ser humano fora da carência absoluta todo mais é essencial – e não periférico ou dispensável.

A sociedade não é um zoológico e as pessoas não precisam ser alimentadas três vezes ao dia. Elas precisam é da realização plena do direito de fazer, ao menos, três refeições diárias, com toda a dignidade que isso requer.

Paro por aqui, na síntese de uma alma livre:

“Essa gestão do Dória é de embrulhar o estômago”.

 

PS: Pontuo aqui, ao final, algo que pensei pressuposto. Não se trata de ser contra ou a favor da reciclagem de alimentos etc., até porque o desperdício só é bom para o Capital (embora, convenhamos, é bastante tonta a ideia de que “reduzir o desperdício” vai realizar o socialismo em alguma medida, como pensam os liberais da esquerda-ambientalista mais ingênuos etc.). Também a bobagem de que eu poderia perfeitamente comer essa “farinata” transformada em outra coisa (biscoitos, pães etc.) sem me dar conta e até achar bom (o que é obviamente possível). Nem do fato de que há pessoas que pagam (e bastante) para comer isso em outros contextos etc. A grande, a solitária questão, é que não é assim que devemos pensar a alimentação humana: o ponto de partida deve ser a CULTURA humana, não suas necessidades biológicas. Afinal, isso não é uma missão de socorro em algum país em absoluta e terrível emergência alimentar; é um projeto de longo prazo para satisfação de uma necessidade básica dos nossos compatriotas que, por princípio, deveriam ser considerados iguais em suas necessidades concretas – logo, com pleno direito a refeição, diversão e arte. Mas chega: qualquer explicação além é sintoma de que o fim da história já se realizou entre os leitores potenciais.