Do outro lado da estrada, uma visão contracolonizadora do modelo rodoviarista
É urgente defendermos a soberania popular sobre o setor energético brasileiro.
por Áurea Carolina e Rafa Barros
A paralisação dos caminhoneiros e a greve dos petroleiros escancarou, para além do desmonte e da venda do setor energético brasileiro e da inoperância do governo ilegítimo, o fracasso do modelo rodoviarista e sua consequente dependência do petróleo. A opção por esse modelo vem desde o governo JK, foi ampliada durante a ditadura militar e exacerbada com a privatização – e também o desmonte – da malha ferroviária nos anos FHC, como nos mostra o excelente artigo publicado pela socióloga Fernanda Regaldo na Revista Piseagrama. É uma opção que nos leva a gastar mais, poluir muito e morrer aos milhares. Uma opção não somente predatória, mas colonizadora, tanto por aumentar a dependência econômica do Brasil no contexto internacional quanto por devastar territórios e modos de vida dos povos e comunidades tradicionais.
O não reconhecimento das diversas formas de vida, aliás, é uma condição da colonização. O projeto colonizador não é de convivência, encontro ou partilha – como alguns discursos hegemônicos tentam romantizar desde a invasão portuguesa. Ele pressupõe que existem grupos que, por terem mais poder econômico e, portanto, mais “poder de fogo”, também seriam superiores em termos culturais, simbólicos, étnico-raciais e religiosos, e que têm o direito – divino – de subjugar, massacrar e aniquilar.
O mestre quilombola Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo, nos diz em Colonização, Quilombos: modos e significações: “(…) as pessoas afro-pindorâmicas foram e continuam sendo taxadas como inferiores, religiosamente tidas como sem almas, intelectualmente tida como menos capazes, esteticamente tidas como feias, sexualmente tidas como objetos de prazer, socialmente tidas como sem costumes e culturalmente tidas como selvagens”.
Na década de 1970, o governo militar estabelecia como prioridade a abertura de estradas no norte do país e a propaganda oficial vendia à população a ideia de um Brasil em desenvolvimento, orgulhoso de seu crescimento e da integração com suas áreas mais remotas. O que o ufanismo escondia era o genocídio de cerca de 8 mil indígenas, exterminados sobretudo nas frentes de construção de estradas. O número foi revelado em 2013 pela Comissão Nacional da Verdade, sabendo que a precariedade dos registros é ainda um obstáculo para a averiguação do tamanho real dessa matança.
A Transamazônica, a Perimetral Norte e as BRs 174 e 163 deixaram pelos caminhos abertos um rastro de destruição não apenas de vidas, mas de modos de vida, de existências inteiras. A Comissão apontou, por exemplo, o extermínio quase total do povo Jiahui e dos índios Yawarip, um sub-grupo Yanomani, de boa parte dos Tenharim e dos Wairimi-Atroari. Muitos sobreviventes passaram a trabalhar nas obras em regime de escravidão.
A opção rodoviarista-colonialista não se encerrou com o fim da ditadura militar. Em 2017, a comunidade quilombola Abacatal, do Pará, entrou com ação na Organização Internacional do Trabalho para tentar impedir a construção da rodovia ironicamente chamada Liberdade, que impedirá o acesso a seu território tradicional. No mesmo ano, o Conselho Indigenista Missionário denunciou a ameaça que a construção da estrada Puerto Esperanza – Iñapari, na fronteira do Brasil (Acre) com o Peru (Madre de Dios), traz a povos indígenas amazônicos.
A dicotomia entre natureza e produção, presente e futuro, sagrado e profano, vida e morte, indivíduo e comunidade são fruto da cosmovisão ocidental eurocêntrica, construída a partir da temporalidade linear. Para os povos e comunidades indígenas e quilombolas, o tempo é circular – ou espiralar – e, na roda infinita da vida, o que foi ainda é, e o que é será. Ou seja, passado, presente e futuro não se dividem, e o território ancestral é sagrado, inviolável, é o chão dos mortos, da comunidade e dos descendentes. É para a comunidade que se vive, se trabalha, se cria: “eu sou porque nós somos”. Do outro lado da estrada, portanto, na cosmovisão afro-pindorâmica, para ficarmos com a expressão de Nego Bispo, o individualismo dá lugar ao bem comum, a destruição à convivência com a natureza, a busca pelo lucro à busca pela autossuficiência.
É urgente defendermos a soberania popular sobre o setor energético brasileiro. O tamanho da crise, no entanto, deve nos convidar a uma reflexão mais profunda sobre o modelo de transporte adotado no país e de sociedade que estamos construindo. O que assistimos diante do caos causado pela paralisação dos caminhoneiros, do crime inacreditável e até hoje sem responsabilidade imputada da Samarco/Vale em Mariana, dos conflitos no campo, do genocídio dos povos indígenas e da população negra, é o colapso de um modo de vida que privilegia alguns poucos em detrimento das maiorias sociais e que se tornou insustentável e incompatível com a felicidade e a sobrevivência. Temos muito a aprender com os povos e comunidades tradicionais. Saberes que as rodovias – a mineração, o agronegócio, a especulação imobiliária, a urbanização predatória… – insistem em ameaçar e destruir.