Direto ao ponto: um papo sobre representatividade, com Manoel Soares
Todo desenho que nós temos da análise da conquista possui também a estética da pessoa de pele clara. Quando um menino quer fazer uma faculdade internacional, ele não pensa numa universidade na África do Sul, ele não quer ir para o Quênia, onde tem o Vale do Silício Queniano. Ele quer ir para o vale do Silício Europeu.
Importante voz no ativismo antirracista contemporâneo, Manoel Soares é apresentador, escritor, jornalista e co-fundador da Central Única de Favelas (CUFA). Antes de iniciar a faculdade de comunicação, trabalhou na construção civil e como vendedor no centro da cidade de São Paulo. Começou sua carreira jornalística na RBS TV, afiliada da Globo, no Rio Grande do Sul. Integrou a equipe do Jornal do Almoço entre 2002 e 2017. Ainda na emissora, fez parte do time do programa Profissão Repórter de 2009 a 2016. Posteriormente, em 2017, foi repórter do Encontro com Fátima Bernardes e do Se Joga, em 2019. No ano de 2019, também, passou a integrar o elenco de apresentadores do É de Casa, nas manhãs de sábado, permanecendo na atração até 2022, quando assumiu o Encontro, ao lado de Patrícia Poeta – seu atual cargo na emissora. É casado com Dinorá Rodrigues e pai de seis filhos.
Confira a íntegra da entrevista realizada com o apresentador especialmente para esta coluna:
Como a educação mudou a sua vida?
No Brasil, existe uma lógica de que a educação é voltada para você ter um bom emprego, um bom salário e ser alguém na vida. Mas a educação não é para te fazer um ser humano mais livre ou melhor, não é para você ser o melhor pai, melhor filho, é para você ser o melhor cidadão. Eu tenho lembranças boas e ruins do meu processo educativo, mas eu entendo que, nunca antes na história do Brasil, nós tivemos uma população preta e periférica no lugar de poder, tanto acadêmico, quanto social e financeiro, com uma transversalidade de comunicação como nós temos. O que precisamos agora é desenvolver e implementar um modelo educacional que promova a transversalidade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, a fim de proporcionar igualdade de oportunidades para todos os alunos. Hoje, ainda há uma desigualdade entre aqueles que estudam em escolas de elite em São Paulo e aqueles que frequentam escolas públicas em áreas como o Capão Redondo, Paraisópolis e Heliópolis. Essa disparidade é absurda, porque depois as pessoas pegam as exceções, pegam os Andrés da vida, e tentam usá-los como modelo de possibilidade de acesso. Quando eu penso em educação, eu não fico somente dentro da agenda romântica da educação, mas que possamos tê-la como ferramenta libertadora de mentes e corpos, até porque o nosso anseio é de poder construir narrativas também de poder. Nós não queremos ficar apenas construindo narrativas de tristeza e de miséria.
Qual a importância da comunidade negra se descolar da idealização do preto único?
Infelizmente, essa é uma visão que não é somente do negro brasileiro. Todo negro diasporado, que vive numa situação de exclusão, entra em uma situação de disputa onde ele precisa de uma luta individualizada, até porque ele defende o seu clã. Quando, por exemplo, eu entro na TV Globo, o meu salário precisa ser suficiente para sustentar todas as mazelas dos meus familiares, porque eu não posso ver meu irmão sem gás, meu primo preso, não posso ver minha tia com problema de coração e não pegar parte do meu pagamento para alimentar essas pessoas. Contudo, quando isso acontece, fica mais pesado para mim, e aí é essa hora que eu abro mão daquele intercâmbio internacional que eu estava querendo fazer, porque ou eu ajudava a minha tia a fazer uma cirurgia particular – porque ela não tem plano de saúde – ou eu ia pro intercâmbio na Europa. Ou seja, quando nós trabalhamos a lógica de ascensão de negro único, nós estamos indo na mesma direção de um processo que foi ocasionado pela exclusão.
E como nós rompemos com a agenda do abandono?
Todo desenho que nós temos da análise da conquista possui também a estética da pessoa de pele clara. E não estou me referindo a cor da pele somente, mas um conjunto de práxis na vida. Porque, quando um menino quer fazer uma faculdade internacional, ele não pensa numa universidade na África do Sul, ele não pensa quando quer ir para uma área de tecnologia, ele não quer ir para o Quênia, onde tem o Vale do Silício Queniano. Ele quer ir para o vale do Silício Europeu, pois é lá que ele entende que é o polo de tecnologia que ele precisa estar perto. Por quê? Porque o mundo privilegia lá. Quando você chega no Vale do Silício quantos pretos tem lá comparados aos brancos? Eu acho que, para vencermos essa agenda do preto único, precisamos nos reconectar com o continente africano. E nos reconectar desde a música que ouvimos, a roupa que vestimos, a comida que nós comemos. Quando algum de nós tem o hábito de ao menos uma vez no mês comer em um restaurante africano? Então, nós queremos defender a ascensão e o fortalecimento do povo preto, mas no aniversário da nossa namorada e da nossa mãe, nós as levamos para jantar num restaurante italiano, num restaurante japonês. Nós fortalecemos o crescimento das outras etnias, que não tem problema, pois o mês tem trinta dias, mas você pode um dia ir ao africano. Infelizmente, isso não entra no nosso mindset, porque a exclusão que o povo preto vive é também praticada pela própria comunidade negra porque nós seguimos o desenho social que os brancos nos implantaram. Outro exemplo, quando queremos parecer responsáveis no trabalho, colocamos um terno italiano, com corte italiano, e sinceramente poucas pessoas conhecem os cortes lindos de ternos que tem na Nigéria, e eu volta e meia uso os ternos nigerianos para pessoas entenderem que é possível você ser bonito assim também, gente. Para com isso!
Você sente que as pautas raciais demoraram para evoluir? Em que momento estamos?
Na verdade, eu não sei se podemos chamar isso de demora. Você tem 35 anos hoje, e quando você nasceu, fazia 100 anos que pretos eram pessoas. Dessa forma, eu vejo como um pouquíssimo tempo de humanização para tanta exigência. Nós, pretos, precisamos ser mais gratos aos que vieram antes, como Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Milton Santos, Oliveira Silveira, porque eles conseguiram fazer em 100 anos, o que a China não conseguiu fazer em dois mil anos. Em 100 anos, eu saí de um vendedor de mercadoria do centro de São Paulo para um apresentador de televisão. E a pauta não avançou? Isso não é bondade do opressor, isso é a luta do nosso povo. Uma vitória linda!
Mas é óbvio, existe uma questão de letramento social que pretos e brancos vão ter que fazer. Primeiro, a pauta do racismo é uma coisa, a questão racial é outra. E hoje essas coisas são sinônimos na sociedade. A pauta racial é a influência da diáspora preta, é o black money, é o Vale do Silício que tem no Quênia, são todas essas belezas e multiplicidades que tange a pauta racial. A capacidade que uma criança tem de aprender seis línguas em um só corpo, é todo o manancial que o continente africano nos traz. A questão do racismo é o sistema que as pessoas brancas criaram para que toda essa beleza não seja vista e reconhecida.
Você acha que hoje em dia as pessoas estão mais receptivas em ver pessoas pretas comandando programas de TVs
Sinceramente, eu não sei se a receptividade das pessoas a minha presença na TV, é uma pauta para mim, porque eu não posso desenhar a minha vida na percepção de quem vai ficar ou não feliz em me ver. O Brasil não foi organizado para ficar feliz em ver uma pessoa como eu na televisão. Porém, existe no Brasil uma predisposição por alguns setores sociais a minimizar a presença da pele preta nos meios de comunicação. Contudo, existe um anseio público por parte da população que hoje tem acesso aos meios de comunicação em se ver naquele lugar. Então, a minha presença na televisão não tem a ver comigo, não é sobre o Manoel. É muito pouco sobre mim. É muito mais sobre o espelho do eu. Além disso, soma-se o fato de que o acesso do homem negros a estes espaços ainda é pouco mais menos naturalizado, e precisamos entender o porquê.
E para finalizar: como as referências podem impulsionar os sonhos?
Muitas pessoas acham que eu sou referência, mas eu ainda não tenho essa visão a meu respeito e não é falsa modéstia. Eu não me vejo neste lugar. Eu tenho como referência pessoas extremamente corajosas, porque você não se torna referência sem fazer renúncias. E para cada cem pessoas que uma referência conquista, pelo menos para um membro da família dele, ele deixou de dar atenção. Então, existe uma parte da história dos líderes e das referências negras no Brasil e no mundo, que um dia vai ser contada. Por exemplo, parte da família do Mandela o via com olhos muito tristes. Então imagina a quantidade de coisas importantes que Obama deixou de viver porque ele estava comandando uma das maiores nações do mundo. Eu vejo essas referências como pessoas que precisam do nosso extremo respeito, nossa compreensão, e que nós não apliquemos neles uma ditadura permanente do sucesso, pois cada um sabe onde o calo aperta.