Direto ao ponto: um papo sobre racismo ambiental, com Luciano Machado
Os desastres ambientais matam o nosso povo preto em alta escala. Infelizmente, é um projeto perfeito: quando você tem um deslizamento de terra, numa área bastante densa, demograficamente, são centenas de pessoas que morrem. Então, nós morremos em grande escala.
As tragédias climáticas parecem ter entrado para o calendário anual de catástrofes que assolam o Brasil. Ano após ano, milhares de famílias sofrem com as consequências dos desabamentos de terra e enchentes. E a população negra é, outra vez, a parcela mais afetada. Para entendermos os motivos da perpetuação deste ciclo de desastres, na coluna de hoje, converso com Luciano Machado – engenheiro civil, especialista em geotecnia –, uma das principais referências no país quando o assunto é resolução de problemas estruturais de solo em áreas de risco.
André Menezes – Por que, ano após ano, o Brasil segue perdendo tantas vidas devido às chuvas?
Luciano Machado – Infelizmente, este é um problema muito antigo no Brasil, secular até. Em 18 de setembro de 1850, Dom Pedro II instituiu a Lei de Terras no Brasil. O que elas definiam? Definiam que as terras seriam dos grandes latifundiários e poucas pessoas teriam grandes lotes de terras, e isso aconteceu antes mesmo da abolição. Na abolição, em 13 de maio de 1888, essa Lei de Terras já estava vigente há 38 anos. Então, não tinha opção. Por causa dessa lei, os quilombos começaram a surgir e também as favelas. As pessoas começaram a ir para terras que não tinham donos e é o que acontece até hoje.
Morar em áreas de risco é quando uma pessoa vai para um lugar onde não se deve morar! Por isso que todo ano acontecem essas tragédias. O fato de acontecer os acidentes climáticos e as pessoas morrerem ao longo de séculos, fez com que as pessoas que assistem essas tragédias na televisão e em outras mídias, se acostumam com isso. Como se fosse algo que já fizesse parte da agenda, do calendário anual brasileiro. Não nos escandalizamos tanto mais.
Nós nos comovemos, sim, nos mobilizamos, mandamos dinheiro, mandamos água, mandamos roupa, mas parece que é algo que já faz parte da vida do povo brasileiro. Só que este ciclo precisa ser quebrado! Precisamos olhar para essas vidas como algo precioso, que não dá para estimar o valor. E, principalmente, apontar os culpados, pois assim como aconteceu na mineração, quando se acha o culpado, o problema ganha mais atenção para ser resolvido. Depois dos últimos acontecimentos na mineração, medidas foram tomadas, obras foram feitas, barragens foram descondicionadas. Nós precisamos sair deste lugar em que essas tragédias são consideradas naturais. Não são.
André Menezes – Quais procedimentos os governos Municipais podem aplicar para minimizar essas tragédias?
Luciano Machado – Algumas medidas, sem dúvida, precisam urgentemente ser tomadas. Eu espero – isso é um sonho pessoal –, que daqui há 10-12 anos, por volta de 2035, ninguém mais morra por conta de desastres climáticos no Brasil.
Hoje, através do projeto-piloto De Olho na Encosta, estamos fazendo um monitoramento de área de risco em uma comunidade de Campos do Jordão. A Defesa Civil do município escolheu uma área, e dentro desta área fizemos um plano de monitoramento com aquisição remota. Como funciona? Eu não preciso ir presencialmente à Campos do Jordão, para poder ver o que está acontecendo. Os equipamentos são instalados e eu recebo, no celular ou no computador, as informações sobre a movimentação do solo. A partir dessas informações, posso tomar medidas para que essas pessoas sejam retiradas e as casas sejam desocupadas ou que seja feita alguma obra, caso ainda dê tempo.
Mas para poder mitigar o problema de maneira mais ampla, o primeiro passo é ter um plano municipal de redução de riscos. O que eu quero dizer com isso? Ter técnicos que possam visitar todas as áreas de risco de um determinado município e áreas delimitadas. Na grande maioria dos casos, já se sabe onde ocorrem os riscos geológicos, geotécnicos e desastres climáticos. A partir disso, já é possível determinar o grau de risco que essas áreas oferecem, se é pequeno (R1) ou se é o mais grave (R4). Mas, ao invés de somente classificar, é preciso apresentar as soluções. Por exemplo: em situações onde não tem mais o que fazer, é preciso evacuar os moradores e ponto. Em outros casos, pode-se fazer drenagens, estruturas de escadas para futuras desocupações e evacuações, contenções de encostas, entre outras medidas. É preciso entender que o solo tem um comportamento, e se estivermos acompanhando a sua movimentação, podemos evitar grandes desastres.
André Menezes – Qual o papel dos governos Estaduais no enfrentamento desta questão?
Luciano Machado – Os governantes de cada município são responsáveis pela zeladoria das cidades. Então, são os dirigentes de cada município que vão dizer: que tipos de obras precisam ser feitas; se a população precisa sair dali ou não. Já o Governo do Estado é responsável pela habitação, pelo apoio aos municípios para tirar essas pessoas dessas áreas e zelar pela vida delas. O Governo Federal, por sua vez, providencia essas verbas.
Dessa forma, as três esferas (Municipal, Estadual e Federal) têm responsabilidade na solução deste problema. Para que as pessoas não morram mais, principalmente, pessoas pobres e pretas – porque sempre são os grupos mais afetados. E eu fico ainda mais triste, quando vejo crianças perdendo suas vidas. Nos últimos anos vimos muitas notícias de bebês, que estavam no berço, quando a tragédia aconteceu.
André Menezes – Por que a população preta é sempre a mais atingida, quando estes desastres acontecem?
Luciano Machado – É uma questão muito delicada. Podemos pegar o caso mais recente que aconteceu na Barra do Sahy, em São Sebastião, litoral norte de São Paulo. O que tínhamos lá: de um lado da rodovia, na direção do morro, moravam pessoas pretas e pobres; enquanto do outro lado, mais próximas da praia, moravam as pessoas brancas e mais abastadas. A chuva foi tão grande, que afetou todos, mas principalmente quem morava no morro. As pessoas brancas e ricas, conseguiram sair de helicóptero. Só morreram pessoas que estavam perto do morro.
Apesar da chuva naquela região ter sido democrática, de ter acontecido um grande volume de água, 682 milímetros de chuva, que caiu num curto período de tempo, só morreram pessoas pretas, mesmo todos sendo afetados. Não dá para tratarmos isso como coincidência.
Por mais que as pessoas brancas tenham sido afetadas – que suas piscinas particulares tenham se enchido de lama –, seus transtornos foram materiais. Já as pessoas pretas morreram! Perderam seu bem maior: a vida. E a partir deste episódio, é possível ver, que, até nos dias atuais, nós carregamos este problema do racismo estrutural.
André Menezes – Como resolver a questão do racismo ambiental no Brasil?
Luciano Machado – Se não tivermos uma política pública específica para erradicar as mortes, que acontecem em áreas de risco, não será possível solucionar este problema. Estou dizendo que precisamos ter uma política pública que mapeie, que trate o problema de forma séria, e que tire as pessoas dessas regiões, quando elas precisarem ser tiradas. Uma política pública, em que as pessoas tenham imóveis populares, pois isso está na Constituição Brasileira – as pessoas têm direito de moradia.
Acredito também, que essas políticas públicas precisam estar alinhadas com a geotecnia. Para que se possa fazer obras estruturantes onde é possível e construir casas, para que as pessoas tenham condições de moradia digna. É simples? Não, mas precisa ser feito. E nós temos leis que apontam um caminho neste sentido, como a atualização do marco legal de saneamento básico, que diz que, até 2033, 90% das pessoas terão coleta de esgoto e 99% terão água potável. Porém, no ritmo que estamos indo, acho muito difícil atingirmos essas metas.
André Menezes – Espaço aberto: qual recado você gostaria de deixar sobre o tema?
Luciano Machado – Os desastres ambientais matam o nosso povo preto em alta escala. Infelizmente, é um projeto perfeito: quando você tem um deslizamento de terra, numa área bastante densa, demograficamente – quando tem bastante famílias habitando ali –, são centenas de pessoas que morrem. Então, nós morremos em grande escala.
A partir do momento em que as chuvas param, é como se não tivesse acontecido e o problema parasse de existir. Nós precisamos insistir neste tema, principalmente, quando não está chovendo, porque é no período de estiagem que conseguimos fazer as obras de estrutura.
E este é um problema de todos os brasileiros! Precisamos pensar nas pessoas que moram nestas áreas de risco também, pois elas sofrem todos os anos, quando as chuvas voltam. Se não tiver uma mobilização de toda a sociedade para lutar contra isso, vamos continuar só mandando pix, mandando água, mandando roupas. É importante, sim, fazer isso, quando as tragédias acontecem, ser solidário, mas isso não resolve o problema. Isso apenas traz algum tipo de conforto, mas ano que vem vai acontecer de novo.