Por Vanessa Santos e Gustavo Guterman, publicado originalmente no blog Comida RJ-CE

Misture em uma panela um problema que você não criou, mas que o afeta todos os dias, com a impossibilidade de resolvê-lo sozinho. A comida está insossa e, para acertar o sal, você provavelmente terá que contar com quem, teoricamente, é responsável pelo problema. Teoricamente, porque, ao que parece, ele também está comendo uma comida sem sal há um bom tempo. Temos, de um lado, trabalhadores exaustos, sem folga e sem a tão falada dignidade promovida pelo dito popular. Do outro lado, a mesma situação: um trabalhador que, todo santo dia, se levanta lembrando que entrou nessa acreditando em outro dito popular: “Seja você mesmo o seu patrão!”

Chegamos a este ponto da história. O ponto em que todos precisarão se sentar e tentar encontrar uma saída. Muitos empresários têm comentado que a ideia de reduzir a escala de trabalho será desastrosa. Por outro lado, cresce o número de trabalhadores que, incapazes de suportar o cansaço, abrem mão de seus direitos trabalhistas em troca de rotinas menos sufocantes. Uma decisão que sacrifica o futuro em favor do presente, resultando em uma equação cada vez mais difícil de equilibrar. O mercado vive um fenômeno raro: há mais vagas de trabalho do que trabalhadores disponíveis. Infelizmente, não vemos ninguém fazendo as contas nem muitos dispostos a estudar profundamente o setor em busca de soluções. Seria oportuno que especialistas contábeis e financeiros finalmente olhassem para o setor com a atenção que ele merece. Afinal, ele é um gerador significativo de empregos, movimenta uma cadeia econômica gigantesca e, acima de tudo, provê uma necessidade vital para toda a sociedade.

REALIDADE

A rotina dos cozinheiros(as) em cozinhas profissionais é marcada por desafios físicos e emocionais que vão além do cansaço visível. Muitos enfrentam jornadas extenuantes, como a escala 6×1, que impõe seis dias de trabalho consecutivos com apenas um dia de descanso. Essa configuração tem consequências diretas sobre a saúde dos trabalhadores, afetando tanto a resistência física quanto a saúde mental. A falta de tempo para a família e para a construção de relacionamentos saudáveis, combinada com um ambiente de trabalho competitivo e muitas vezes hostil, contribui para o isolamento social e o esgotamento emocional. O tempo livre, quando existe, é dedicado ao descanso, deixando escassas as oportunidades de convivência familiar e lazer.

Com a recuperação econômica pós-pandemia, o Brasil registrou avanços significativos na geração de empregos, especialmente no setor de serviços. De acordo com o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), esse setor foi responsável por mais de 1 milhão de novas vagas nos últimos 12 meses, o que contribuiu para a taxa de desemprego de 6,4% — a menor desde 2012, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No entanto, apesar desse aumento de oportunidades, persistem problemas como a informalidade e a subutilização da força de trabalho.

MERCADO

O economista Marcelo Manzano, da Unicamp, observa que, embora o Brasil esteja vivendo um momento de crescimento na oferta de vagas, muitas dessas oportunidades são de baixa qualidade. O mercado de trabalho continua estruturalmente marcado pela informalidade e pela precarização das condições de trabalho, refletindo-se em salários baixos. A discussão sobre a carga horária e as condições de trabalho dos profissionais de cozinha tem ganhado cada vez mais espaço, destacando propostas como a redução da jornada para quatro dias por semana, defendida pela deputada Erika Hilton (Psol-SP) a partir do movimento Vida Além do Trabalho (VAT). Entretanto, essa proposta pode ser inviável no momento, devido ao impacto econômico que poderia representar para micro e pequenos empreendedores. Uma solução mais realista seria a transição da escala 6×1 para 5×2, o que aumentaria consideravelmente a qualidade de vida dos trabalhadores, proporcionando mais tempo de descanso e cuidados com a saúde e os relacionamentos pessoais.

É crucial, porém, que essa mudança venha acompanhada da manutenção do salário atual. Sem essa garantia, a redução da carga horária obrigaria muitos profissionais a buscar empregos extras para compensar a perda de renda, perpetuando o ciclo de exaustão. Por isso, é necessária uma discussão mais profunda entre trabalhadores, empresários e governo para encontrar soluções que equilibrem a melhoria das condições de trabalho e a sustentabilidade dos pequenos negócios, promovendo uma gastronomia mais justa e digna.

A busca por melhores condições de trabalho e pela manutenção dos salários se insere em um contexto mais amplo de esforços legislativos e movimentos pela formalização da profissão na gastronomia. Essa luta tem como objetivo não apenas melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores, mas também garantir o reconhecimento e a proteção de seus direitos.

HISTÓRICO

A luta pela regulamentação da profissão de cozinheiro(a) tem sido marcada por uma série de tentativas legislativas. Os principais projetos incluem:

  • PL 425/2003: Propunha a regulamentação da atividade de gastrólogo e a criação do Conselho Federal e Conselhos Regionais de Gastronomia.  Situação: Rejeitada.
  • PLC 74/2011: Visava regulamentar o exercício da profissão de cozinheiro. Situação: Rejeitada.
  • PL 2079/2011: Propunha a regulamentação da atividade de gastrólogo. Situação: Rejeitada.
  • PL 3736/2019 : Apresentado pelo deputado federal Isnaldo Bulhões visa regulamentar a atividade de gastrólogo. Situação: Em tramitação.
  • PL 1020/2022: Apresentado pelo senador Carlos Fávaro, visa regulamentar a profissão de cozinheiro e gastrônomo. Situação: Em tramitação.

A rejeição das propostas mostra a resistência política e econômica em formalizar a profissão, consequentemente, o quanto de trabalho que temos a frente.

FUNDAMENTAÇÃO

A regulamentação da profissão de cozinheiro(a) é justificada por diversos fatores:

– Qualificação Profissional Específica: A formalização da profissão de cozinheiro(a) assegura que os profissionais recebam uma qualificação adequada, essencial para garantir a segurança dos alimentos e a proteção da saúde pública. O treinamento especializado permite que sejam seguidos padrões rigorosos de higiene e segurança, minimizando os riscos de contaminação.

Além disso, trata-se de um setor com alto índice de mortalidade empresarial, e a presença de profissionais qualificados pode ser um fator determinante para a sustentabilidade dos negócios. Segundo dados do SEBRAE, atualmente, de cada 100 empresas abertas, 75 encerram suas atividades antes de completar um ano. A capacitação técnica de profissionais é, portanto, não apenas uma questão de saúde pública, mas também de fortalecimento econômico e redução das taxas de fechamento no setor.

– Interesse Público: Profissões regulamentadas asseguram que os serviços prestados sejam de alta qualidade e seguros, beneficiando a sociedade. A regulamentação pode, portanto, reduzir a incidência de práticas impróprias e proteger os consumidores.

– Legislação de Proteção: O fornecimento de alimentos impróprios é crime, conforme o Art. 7º, IX da Lei nº 8.137/90. A regulamentação pode ajudar a mitigar esses riscos ao garantir que apenas profissionais qualificados atuem na área.

DESAFIOS

A implementação de medidas que regulamentem a profissão de cozinheiro(a) pode trazer desafios para pequenos empresários. O custo com pessoal já representa um dos principais gastos operacionais, especialmente em setores como o varejo e serviços de alimentação. Segundo Luis Bigonha, da Fecomércio-SP, muitos empresários, que dependem de crédito e operam com margens reduzidas, podem enfrentar dificuldades com o aumento de custos. A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) também alerta que a redução da jornada pode encarecer em até 15% os preços dos cardápios, impactando tanto empresários quanto consumidores. Os empresários de micro e pequenas empresas da gastronomia desempenham um papel central na economia brasileira, respondendo por 52% dos empregos formais. No entanto, enfrentam desafios significativos para manter suas operações em meio a um ambiente econômico marcado por altos tributos e margens de lucro reduzidas. A implementação de uma jornada de trabalho reduzida, como propõe a PEC, sem contrapartidas adequadas, pode aumentar consideravelmente os custos operacionais. Isso é particularmente preocupante em um setor onde muitos empresários estão endividados e já operam no limite de suas capacidades financeiras.

O governo federal reconheceu as dificuldades enfrentadas pelos pequenos empresários ao aprovar o Projeto de Lei 334/23, que desonera a folha de pagamento de 17 setores e estende até 31 de dezembro de 2027 algumas regras que ajudam empresas a pagarem menos impostos sobre a folha de pagamento e a importação de produtos. Essa medida é crucial para ajudar a manter empregos e apoiar setores da economia que enfrentam dificuldades, como inflação e juros altos. No entanto, o setor de serviços, incluindo a gastronomia, ficou de fora dessa lista, evidenciando a necessidade de uma abordagem mais inclusiva.

Estender incentivos fiscais semelhantes ao setor gastronômico seria essencial para garantir que a regulamentação da profissão não se torne um fardo para os empresários. A proposta de desonerar a folha de pagamento permite que as empresas paguem uma contribuição menor sobre o faturamento, em vez da contribuição tradicional sobre os salários dos funcionários, facilitando a manutenção de postos de trabalho e evitando demissões. Além disso, é importante ressaltar que essa redução de impostos, conforme apresentado no Projeto de Lei, não compromete o orçamento do governo nem programas sociais importantes, mostrando-se uma solução equilibrada para os desafios econômicos.

No entanto, é fundamental compreender que a regulamentação profissional vai além da alteração da escala de trabalho, como propõe o Movimento Vida Além do Trabalho (VAT), ou da inclusão dos negócios gastronômicos no Projeto de Lei 334/23. A regulamentação busca um equilíbrio que permita a dignidade dos trabalhadores enquanto considera a sustentabilidade dos pequenos empresários.

O VAT, ao propor a redução da jornada, também aponta para a necessidade de um ambiente de trabalho mais seguro e respeitoso. Embora haja resistência por parte das associações empresariais, a regulamentação profissional, acompanhada de políticas de apoio e incentivos fiscais, pode ser um caminho para harmonizar os interesses de trabalhadores e empregadores.

O fim da jornada 6×1 é apenas um dos passos em direção a uma maior dignidade no trabalho para cozinheiros(as) e outros profissionais do setor de serviços. No caso específico da gastronomia, a regulamentação profissional envolve diversas ações já mencionadas, como a qualificação específica, melhores condições de infraestrutura nas cozinhas, a promoção de boas práticas de segurança alimentar e o suporte à saúde mental e física dos trabalhadores. Essas medidas, aliadas a incentivos fiscais, podem fortalecer o setor e proporcionar melhores condições tanto para empregadores quanto para empregados, garantindo uma gastronomia mais justa e sustentável.

FUTURO

O movimento VAT e outras iniciativas refletem uma sociedade cansada de condições de trabalho abusivas. O apoio crescente à PEC de redução da jornada e à eliminação da escala 6×1 mostra uma demanda por mudanças reais que considerem não apenas os direitos trabalhistas, mas também a sustentabilidade das empresas. A resistência de associações empresariais e a cautela do governo federal indicam que o caminho para a regulamentação será marcado por debates complexos e busca por soluções equilibradas.

A busca pela dignidade na profissão de cozinheiro(a) vai além da formalização de direitos; é uma questão de respeito e reconhecimento para aqueles que sustentam um dos setores mais importantes da economia. A regulamentação é fundamental para proteger a saúde dos profissionais, garantir segurança alimentar e promover condições de trabalho mais humanas. No entanto, para que essa transformação seja sustentável, é necessário um diálogo aberto entre trabalhadores, empresários e governo, visando soluções que beneficiem a todos.

Que a regulamentação permita que a paixão pela gastronomia seja acompanhada de dignidade e respeito, assegurando um futuro onde cozinheiros(as) possam prosperar sem sacrificar sua saúde e bem-estar. Convido você a continuar acompanhando esta série de artigos e refletir sobre como construir uma gastronomia mais justa e digna para todos. Nos próximos textos, abordaremos a importância das cozinhas institucionais e comerciais no combate à fome e na promoção da inclusão social.

**Este texto faz parte da série especial “A Dignidade,” em que o professor Gustavo Guterman discute a necessidade urgente de regulamentação e de condições de trabalho justas para cozinheiros(as), com base em exemplos internacionais que demonstram o impacto positivo da regulamentação. Na série, trataremos da regulamentação como um caminho para que cozinheiros(as) tenham seus direitos garantidos e sua saúde e bem-estar preservados, protegendo esses profissionais de condições insalubres e jornadas excessivas.

SOBRE OS AUTORES

” Juntando o nosso tempo de trabalho dedicado à Gastronomia dá 45 anos! Cozinha, gestão, coordenação de cursos, sala de aula, fóruns, congressos, textos, blog, e muita, muita dedicação pela Gastronomia. Por ela, para ela, por respeito a todos que fazem parte, tentamos juntar a experiência dos dois para contribuir com a profissão que garante que as pessoas comam, que garante saúde, alegrias e sentimentos. – Vanessa Santos e Gustavo Guterman, professores de gastronomia e produtores de conteúdo no blog Comida RJ-CE.