Dez mitos sobre Lutero e sua reforma atualizados
Diante dos tempos de questionamentos e atualizações sobre a Reforma Protestante, convém resumidamente tratar de alguns elementos que não se justificam numa análise mais histórica. Assim, no dia da Reforma, selecionamos dez “mitos” comuns professados pelos religiosos em geral.
Diante dos tempos de questionamentos e atualizações sobre a Reforma Protestante, convém resumidamente tratar de alguns elementos que não se justificam numa análise mais histórica. Assim, no dia da Reforma, selecionamos dez “mitos” comuns professados pelos religiosos em geral.
Em tempo!
1. Seu nome é Lutero
Mito.
Na verdade, seu nome de nascimento é Martin, por isso, é chamado no Brasil de Martinho. Foi batizado no dia seguinte do nascimento 10 de novembro de 1483, recebendo o nome pelo santo do dia;
2. (Então) seu sobrenome é Lutero.
Mito.
Ele nasceu Martin Luder, contudo mediante ao “Debate de Heidelberg” (1418) passou a assinar Euletheruius (“o liberto”) isto é: Lutherus, Luther, Lutero. Ao que parece promove a troca de consoantes “d” por “th” para indicar o momento de liberdade na descoberta da justificação da graça pela fé. E, ao mesmo tempo, para se dizer liberto das amarras do mundo antigo;
3. Lutero era um libertino, promiscuo.
Mito.
Ao que tudo indica não. Essa ideia é do senso comum do catolicismo, que algumas vertentes apologéticas evangélicas se aproveitam dizendo que “mudou de vida”, “se converteu” quando propôs seu movimento reformatório. Sobre isso, afirma-se que ele casou-se (até tarde) com a ex-freira Catherina von Bora, na noite do dia 13 de junho de 1525. Na data tinha 42 anos e Catherina seus 26 anos. O casamento foi o fechamento de um processo complexo argumentativo de Catherina que pelas cartas provou para ele que casar era a melhor saída para organizar sua vida diante das demandas acarretadas pela reforma;
4. A Biblia é “inerrante” para Lutero.
Mito!
A Bíblia para Lutero era inspirada por Deus, utilizando o termo sola scritura no Debate de Leipzig (em alemão: Leipziger Disputation), em 1519. Esses termos são confundidos hoje pelo raciocínio binário fundamentalista. Aproveitam isso a partir da idéia de que Deus é perfeito e eterno, assumindo assim que a Biblia não poderia teria erros, falhas. Um raciocínio simplificador, pois, por exemplo, nos próprios textos bíblicos se lê que Deus errou. As idéias binárias fundamentalistas fazem sentido no mundo de formulação racionalista moderna. É sim, nesse contexto, não do de Lutero, que se desenvolve o termo “inerrante” – vocabulário inventado pelos motes fundamentalistas americanos no inicio do século XX, entre 1909 a 1015 na série de volumes intitulados: The Fundamentals: A Testimony to the Truth (“Os Fundamentos: A Testemunho da Verdade”). Vem do titulo dessa coleção a qualificação “fundamentalista”, pois tem a pretensão de chegar aos pretensos fundamentos da fé cristã reversos a qualquer erro. Pois, assumem que Deus ditou integralmente os fragmentos bíblicos para os homens, que nesse processo não esboçaram qualquer inteligência, criatividade e muito menos sentimentos.
5. Pregou as 95 teses no Castelo de Wittenberg.
Provavelmente mito.
Ludher deve ter apenas enviado para seus superiores o conteúdo das 95 teses nas quais deve ter escrito entre 1416 e 1417 quando ministrou para seus alunos um curso do livro de Romanos. Deve ter enviado as teses aos bispos nos quais obedecia-os: Jerônimo Schultz de Brandenburgo e Alberto de Magdeburgo/Mogúncia. Não existem provas concretas de que ele teria fixado as teses no Castelo;
6. A Reforma é o grande marco do inicio da modernidade.
Cuidado: mito apologético (protestante-evangélico) disfarçado academicamente.
Existem (muitos) autores que até levantam essa questão. Contudo, lembra-se que a Reforma fez parte de um conjunto de ideias que permeavam o centro da Europa no século XV, o humanismo. Esse movimento que valorizou o saber critico para conhecimento do homem e que o representava no desenvolvimento das potencialidades pela condição humana. Logo, a Reforma seria um braço religioso humanista no centro da Europa, prova disso é que ora desenvolvia suas idéias por meio das aulas de teologia e ora pelos debates públicos que participava. Ao mesmo tempo, a construção mostra a severa centralidade da Europa, no mundo racional-ocidental, o que vem sendo questionado nos meandros dos estudos anti-coloniais.
7. A Reforma foi um movimento coeso, uma totalidade.
Mitoooo.
Não mesmo. É muito complicado afirmar o dado da continuidade dos trabalhos dos ditos reformadores, como algumas tendências conversadoras insistem em afirmar. Existe uma linha argumentativa neocalvinista (ultra-conservadora) que assume a continuidade das ideias de Lutero para Calvino, por exemplo. Contudo, ao inverso disso, se destaca que existam um conjunto de reformas que marcaram o tempo, ontologias, geografias. Logo, é difícil achar uma linha horizontal de desenvolvimento, pois uma se dedicou mais a leitura Bíblia (luterana), outra a natureza de Deus (zwingliana), outra pela libertação dos oprimidos do medievo (revolta camponesa), etc. Logo, torna-se altamente complicado de marcar uma linha de desenvolvimento e/ou crescimento entre elas;
8. As 95 teses contém os postulados da Reforma de Lutero.
Completo mito.
Luder/Lutero como qualquer homem influenciado por pré-supostos humanistas vai descobrindo e formulando ao longo de suas atividades de professor de teologia e de exegese suas criticas e diferenças com a Igreja. Isso pode ser lido ao longo de seus comentários exegéticos, mas pode ser melhor percebido quando participa dos debates com seus adversários intelectuais da época.
9. Lutero se autodesignou “protestante”.
Mito.
Ele nunca usou o termo protestante. Que o faz é o teólogo católico João Esck, de Imgolstadt, no debate já citado (Debate de Leipzig, em alemão: Leipziger Disputation) ocorrido entre 27 de junho até 16 de julho de 1519. Nesse embate de idéias Lutero discutiu o primado papal, o direito divino do papado e da autoridade dos concílios. Por conta disso o teólogo João Eck passou a o designar como o “homem que protesta contra a fé”, pois, Lutero afirmou solenemente que o papado era uma instancia falível não estava nas Escrituras – reforçando o que Jan Huss em Constança, em 1415, já havia escrito;
10. A Igreja Luterana é fruto de Lutero.
Mito.
Claro que seu inicio se deu junto á figura controversa de Lutero, contudo, ao se aproximar da morte ele foi deixando a seu movimento reformador e sua igreja para estruturação junto a seu amigo fiel, Filipe Melanchthon – humanista, professor e reformador que seguiu na organização da nova igreja desenvolvendo suas estruturas institucionais e organizacionais. Muito se diz de Lutero, contudo, o que se conhece como Igreja Luterana advém das ações de Melanchthon. Cuidou da Reforma na Germânia após a morte de Lutero e sua importância pode ser vista na geografia da Igreja do Convento de Wittenberg, quando se vê lado a lado, próximo ao altar da sepultura de Lutero.
Bibliografia:
DREHER, Martin. A igreja latino americana no Contexto Mundial, São Leopoldo, Sinodal, 2003.
DREHER, Martin. De Luder a Lutero: Uma biografia. São Leopoldo: Sinodal, 2017.
EBELING, Gerhard. O pensamento de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 1988.
GALINDO, Florencio. O fenômeno das seitas fundamentalistas. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 168-175.
HAHN, Udo. Der Mann neber Luther: Philipp Melanchthon, Buchheister GmbH,Hamburg, 2010.
KOLB, Robert. Martin Luther, New York: Oxford University Press, 2009.
LINDBERG, Carter. As Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2009.
ULRICH, Claudete Beise; KLUN, João. Felipe Melanchthon: pedagogo da Reforma protestante, patrimônio da educação. Revista Brasileira de História das Religiões, 2016, p.149-170.