Desimperializar o orgulho: por que urge valorizar as insurgências ao sul de Stonewall?
Por que nosso imaginário colore em arco-íris Nova Iorque e San Francisco, e não Buenos Aires, Medellín, Santiago ou Chiapas, por exemplo?
Por Bruna Andrade Irineu
28 de junho é marcado em nossa agenda de lutas como o dia de remorar a batalha de Stonewall, ato de rebeldia e resistência à ataques policiais contra pessoas LGBTQIAP+ em um bar em Nova Iorque, nos Estados Unidos. A despeito desse significativo momento histórico, que anualmente relembramos, quais histórias de resistência LGBTQIAP+ mundo afora são conhecidas por nós? Quantas delas são latino-americanas? E por que foi Stonewall quem tornou-se o mito fundador do movimento LGBTQIAP+ global?
As narrativas estadunidenses encontram maior disseminação porque são produzidas e valorizadas como uma história quase única. Isso é um bom exemplo da força imperialista que os Estados Unidos desempenham sobre outras culturas e histórias. Não são desconhecidas de nós as raízes imperialistas norte-americanas fincadas a cada invasão estadunidense nos territórios latino-americanos e caribenhos, tampouco o financiamento dos golpes militares em distintos países sul-americanos.
A lógica imperialista estadunidense tem colonizado nosso imaginário LGBTQIAP+ desde ao estilo de vida, vestir, divertir, comer e, inclusive, de amar. Expressão máxima do capitalismo, em sua fase superior, os Estados Unidos são referência constante em nosso repertório simbólico. Essa influência também se explica no fato de que o próprio surgimento da identidade gay se correlaciona ao capitalismo, como aponta o historiador John D’Emílio. Ele sustenta seu argumento afirmando que o surgimento do trabalho assalariado e a incorporação massiva das mulheres no mundo do trabalho provocaram mudanças na família nuclear, no matrimônio e na relação das pessoas com a sexualidade. Do mesmo modo, o capitalismo não foi capaz de acabar com a LGBTQIAPfobia, tampouco tem garantido segurança social às pessoas em geral e às LGBTQIAP+, em particular. Os indicadores sociais estão aí a nos revelar que vive-se hoje um aprofundamento da desigualdade. A crise ambiental, a superexploração do trabalho e a precariedade da vida mostram-nos que destruir o capitalismo é o único caminho possível para construir uma sociabilidade mais justa.
Na Parada do Orgulho de São Paulo, uma cena me chamou a atenção. Enquanto o trio da marca Jean Paul Gaultier passava pela Avenida Paulista, em uma exuberante performance, que mais parecia um carro alegórico carnavalesco, com celebridades trajadas em roupas que referenciam a sedutora imagem do marinheiro musculoso, muito desejada em circuitos gays, uma multidão se aglomera nas esquinas para acompanhar a exibição, dentre eles muitos trabalhadores negros e negras, que por vezes precisavam esconder suas caixas de isopor da fiscalização policial. Por que naturalizamos imagens como essa, sem questionar essas contradições?
A partir de uma mirada pedagógica LGBTQIAP+, é urgente convocarmo-nos a DESIMPERIALIZAR O ORGULHO! Comecemos nos perguntando: Quem pode marchar por orgulho? Quais corpos são bem-vindos em nossas paradas? Quais cidades foram “pintadas em arco-íris” como amistosas e LGBTQIAPfriendly? E quais outras foram excluídas dos nossos roteiros sob julgo de serem menos amigáveis? Por que nosso imaginário colore em arco-íris Nova Iorque e San Francisco, e não Buenos Aires, Medellín, Santiago ou Chiapas, por exemplo?
A dominação social, política, econômica, cultural e linguística americana colonizou nosso orgulho. A lógica imperial estadunidense coloniza nosso imaginário de modo a nos convencer de que em países como os Estados Unidos, a liberdade seria uma garantia sólida para todos. Mas, qual liberdade? É ilusório acreditar que em uma ordem social, cujas bases se assentam na exploração, seja possível produzir algo que não aprofunde as desigualdades.
Desimperializar o orgulho envolve conhecermos nossas histórias, ao sul de Stonewall. Tomar nossa memória pelas mãos, entender em qual lado da história aquelas, aqueles e aquelus que nos antecederam estiveram. Parte de nosso processo organizativo LGBTQIAP+ tardou acontecer porque fora abruptamente interrompido pela violência das ditaduras na América Latina e Caribe, processos estes amplamente financiados pelos Estados Unidos. A exemplo, no ano de 1967, criou-se na Argentina, a primeira organização LGBTQIAP+ da América Latina, nomeada de Nuestro Mundo. No Brasil, a Turma OK, um clube de sociabilidade LGBTQIAP+ já existia desde 1962. Mesmo que com uma perspectiva distinta do que entendemos como organização política de ativismo, são expressões anteriores a Stonewall.
Após Stonewall, é interessante saber que na Cidade do México, em 1971, ocorreu intensa mobilização de estudantes da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional do México (UNAM), que protestavam em resposta a um ato de discriminação contra um trabalhador que foi demitido sob suspeita de ser homossexual. A mobilização também originou o primeiro manifesto em defesa dos homossexuais, que também marca a fundação da Frente de Liberación Homosexual (FLH) naquele país. Enquanto no Brasil, já com a existência do grupo Somos, em junho de 1980, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, se juntaram mil manifestantes para protestar contra a “Operação Limpeza”, comandada pelo Delegado Richetti, que ordenou varrer a população LGBTQIAP+ do centro de São Paulo.
Essas histórias são pouco disseminadas entre nós e têm uma potência interessante para pensarmos e produzimos ativismos em solidariedade latino-americana e caribenha. É urgente promover uma nova institucionalidade regional e repovoar nosso imaginário com histórias de Tibiras, Chicas Manicongo, Felipas de Souza, Gabrielas Mistral, Amarantas Goméz, Dianas Sacayán, Joãos Nery, Leons Zuleta e muitos outros nomes que desconhecemos, mas que constituem nossas insurgências ao sul.
Desimperializar nosso orgulho é colocar o cuidado com a vida humana e não humana em primeiro plano, nos posicionando contra ameaças econômicas, militares e socioambientais à nossa região. É construir ações que reconheçam que precisamos acessar bens, serviços e toda gramática que nomeamos como direitos em condições equânimes e produzir justiça social.
Marchar lado a lado contra toda forma de exploração e opressão, reconhecer a nossa história, defender nossa autonomia e autodeterminação. Com a certeza na frente e a história na mão, desimperializar o orgulho, o tesão, a política e o mundo!
* Bruna Andrade Irineu é feminista anticapitalista, ativista pelos direitos LGBTQIAP+, pesquisadora e professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT.