por Renata Souza* e Isabela Amaral*

Há uma anedota em que um oficial alemão visitou Picasso em Paris durante a Segunda Guerra. Chocado com o caos retratado em Guernica, perguntou: “Foi você que fez isto?”. Picasso respondeu: “Não. Isso foi feito por vocês”.

Essa história diz menos sobre arte e mais sobre responsabilidade. Há sempre um momento em que o Estado precisa responder pela violência que produz, quando o quadro da tragédia é apenas o reflexo daquilo que ele próprio pintou.

Nesta semana, o Rio voltou a ser tomado por uma cena que se repete há décadas: helicópteros sobrevoando comunidades, tiros cruzando as ruas, escolas fechadas, unidades de saúde paralisadas e famílias confinadas em casa. A Operação Contenção, deflagrada na terça-feira (28), mobilizou 2.500 agentes das polícias e deixou mais de 100 mortos — número superior ao da chacina do Jacarezinho, até então a mais letal da história do Estado.

As imagens são conhecidas, mas nunca deixam de causar espanto. É o mesmo discurso de sempre — o da guerra travada em nome da segurança. Mas o que o Estado chama de segurança, para quem vive nas periferias, tem outro nome: medo.

A cada nova operação, o Estado repete o mesmo ritual — o de autorizar a exceção e suspender direitos sob o argumento da ordem. O que se institui, no entanto, é a naturalização da violência como método de governo. Como no diálogo entre Picasso e o oficial, é preciso devolver a pergunta ao Estado: quem fez isto? Quem transformou o território da vida em campo de guerra?

Quando o Estado escolhe a força como linguagem, além de não superar o crime, destrói o próprio sentido da democracia. Não há democracia possível quando a letalidade se torna política pública. A cada incursão armada, o Estado confirma que há territórios onde a Constituição não chega — e vidas que não merecem ser protegidas.

O STF, ao julgar a ADPF 635, reconheceu que a política de segurança no Rio se transformou em um campo de violações sistemáticas de direitos, mas pouco mudou. Em vez de proteger a vida, o Estado insiste nos meios mais letais — e menos inteligentes — de combate ao crime.

A insistência no modelo militarizado, além de ineficaz, é moralmente insustentável. Ele não combate o crime, apenas o reproduz: destrói comunidades, gera trauma e reforça a lógica da vingança e do abandono.

A segurança de um Estado democrático deve ser medida não pelo número de mortos, mas pelas vidas preservadas e pelas rotinas protegidas — pela escola que funciona, pelo hospital que atende, pela moradia digna e pela alimentação adequada, pelo trabalhador que circula. Um Estado democrático não é um estado de exceção permanente. A operação policial deve ser o último recurso — nunca a regra.

A verdadeira segurança nasce de políticas universais — educação, saúde, cultura, mobilidade — e da reconstrução de um pacto civilizatório capaz de romper com a gramática punitiva herdada do escravismo.

O Rio precisa reencontrar a ideia de Estado — um Estado que não chegue às favelas com caveirões e helicópteros, mas com professores, médicos e bibliotecas. Afinal, a democracia não é uma operação: é um projeto. E é um projeto que o Estado ainda deve à sua própria gente.


* Renata Souza é Deputada Estadual no Rio de Janeiro, presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CDDM) da Alerj, jornalista e pós-doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ.
* Isabela Amaral é professora substituta de Direito Constitucional e Direito Ambiental da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, doutoranda e mestra em Direito Público pela UERJ, advogada.