Deixa o erê viver!
No Brasil, para as mães negras, o sonho de ver os filhos crescer esvaece com balas perdidas, que costumeiramente encontram o corpo preto
A foto da pequena Eloah da Silva dos Santos, de cinco anos, com a mão no queixo deitada em um quarto cor de rosa nos remete à doçura da infância e à ideia de futuro. É o que as mães e pais sonham para os filhos. No entanto, no Brasil, para as mães negras, o sonho esvaece com balas perdidas, que costumeiramente encontram o corpo preto. De acordo com a ONG Rio de Paz, ela foi a 15ª criança morta por bala perdida no Rio de Janeiro nos últimos dois anos. E qual a cor dessas crianças?
Uma semana antes, choramos junto às meninas e meninas no velório do amigo Thiago Menezes Flausino, jovem de 13 anos, baleado na Cidade de Deus, vítima também de balas perdidas em uma ação policial. Dias antes de ser assassinado, Thiago revelou o sonho de ser jogador de futebol.
Em 2016, o assassinato de jovens negros motivou artistas negros a compor a música Deixa o erê viver!, um trabalho lindo e sensível: “Deixa o erê brincar! Deixa o erê viver! Deixa o erê crescer para ser doutor e assinar a nova lei”. O projeto foi idealizada por Luiza Daiola, a composição e direção musical de Sérgio Pererê, composição de Tamara Franklin e Douglas Din e as vozes de um time de peso: Celso Moretti, Dokttor Bhu e Shabê, Josi Lopes, Michelle Oliveira (Cromossmo Africano), Roger Deff (Julgamento), Izaque Bohr, Mandruvá, Denominado Chu, Bárbara Hannelore, Lana Black, Marcela Rodrigues (Berimbrown), Polly Honorato, Eda Costa, Guilherme Ventura, Maurício Tizumba e Vander Lee, falecido em agosto de 2017.
Quase nada mudou de 2016 a 2023. A arte é potente na denúncia desse genocídio, sensação que se confirmou em meus pensamentos quando visitava a exposição “Um defeito de cor”, no Museu de Arte do Rio (MAR), em homenagem ao clássico de Ana Maria Gonçalves. No último dia 15, ainda impactada com as mortes de crianças e jovens naquela cidade, olhei para as imagens da exposição com a compressão que arte é, sobretudo, um ritual de cura, para que possamos ter força para seguir em frente defendendo e protegendo nossos erês.
Os casos do Rio ganham repercussão nacional, mas a violência contra crianças e jovens negros está disseminada em todo o país. E não é diferente em Minas.Porém, um dos fatores que dificultam o enfrentamento a essa violência é a falta de dados. Em Belo Horizonte, a carência de levantamentos é um dos maiores impeditivos para um diagnóstico preciso do problema e, consequentemente, proposição de estratégias e políticas públicas para sua solução.
Os últimos dados, frutos de pesquisa de iniciativa da Comissão Especial de Estudo do Genocídio da Juventude Negra e Pobre da Câmara Municipal, em parceria com o professor Rodrigo Ednilson de Jesus da FAE/UFMG, são de 2018 e mostraram que 70% dos jovens, entre 15 e 19 anos, assassinados em BH, são negros. A Comissão Especial de Estudo do Genocídio da Juventude Ngra e Pobre, na época, era presidida pelos então vereadores Arnaldo Godoy (PT) e a relatoria era de Áurea Carolina (PSOL).
Na legislatura seguinte, revezei a presidência e a relatoria com Iza Lourença (PSOL), da Comissão Especial de Estudo – Empregabilidade, Violência e Homicídio de Jovens Negros da Câmara. Apresentamos dois Projetos de Lei para o enfrentamento da violência contra a juventude negra: um deles previa que jovens em situação de vulnerabilidade social, especialmente os que cumprem medidas socioeducativas, fossem priorizados no programa Jovem Aprendiz, como política de combate à evasão escolar. O outro projeto propunha ampliação de vagas destinadas a pessoas negras em concursos em Belo Horizonte, foi aprovado e virou Lei, prevendo 20% das vagas para os próximos dez anos.
Na próxima semana, teremos oportunidade de construir ações para dar sequência a esse enfrentamento. Nos próximos dias 21 e 22 de agosto (segunda-feira e terça-feira), o Ministério da Igualdade Racial e a secretária Nacional de Juventude da Secretaria-Geral da Presidência irão realizar o evento Juventude Negra Viva em Minas Gerais! Essas caravanas abrem espaço para a participação social de jovens negros e negras, de organizações da sociedade civil e gestores dos estados e municípios na elaboração do Plano Juventude Negra Viva.