De quarto em quarto e o entretenimento em quarentena
Por Ana Garcia Assim que o Brasil entrou em isolamento social e todos os festivais, shows e turnês começaram a ser cancelados, vi que em Portugal, país que já estava há pelo menos um mês em quarentena, era criado o Festival Eu Fico em Casa. Após ler sobre o festival lusitano, em questão de minutos […]
Por Ana Garcia
Assim que o Brasil entrou em isolamento social e todos os festivais, shows e turnês começaram a ser cancelados, vi que em Portugal, país que já estava há pelo menos um mês em quarentena, era criado o Festival Eu Fico em Casa.
Após ler sobre o festival lusitano, em questão de minutos já formávamos um pequeno grupo de Whatsapp com produtores, jornalistas e ativistas culturais para falar sobre e pensar o festival online que iríamos criar como resposta imediata a esse novo momento – onde todos que fazem parte da cadeia produtiva musical se viam impossibilitados de continuar com seus trabalhos.
Aquela energia positiva que se tem ao criar algo em conjunto me moveu pelas primeiras semanas de isolamento. De repente reunimos artistas de todos os gêneros musicais e tipos de cena, unindo nomes da música clássica ao axé, do rock ao rap. Ver vários dos maiores nomes do nosso jornalismo cultural apresentando os shows e com o suporte da Mídia Ninja, explorar essas tecnologias de streaming ainda pouco usadas pelos artistas e festivais independentes para transmitir tudo com unidade estética, trazendo o universo que acompanhava cada um dos artistas e jornalistas para um festival de fato.
A sensação ao juntar todos aqueles universos para incentivar a população a ficar em casa, era de que estávamos fazendo história e ainda demonstrando que enquanto representantes do setor criativo, buscamos a solução FAZENDO. Fizemos quatro semanas do festival #FicoEmCasaBr , de maneira colaborativa, passamos noites em claro encaixando artistas e repensando novos formatos e foi fantástico. E assim acompanhamos as lives tomarem outras formas e dominarem as timelines de todos. Até grandes produções sertanejas com grandes equipes (e até mesmo garçons para servir os cantores) quebrando recordes mundiais de audiência.
E aí teve o Travis Scott, rapper norte-americano que bateu todos os recordes em uma “live” histórica reunindo mais de 12 milhões de pessoas em todo o mundo dentro do jogo Fortnite. Live entre aspas pois não se tratava de um concerto ao vivo de fato e sim um “experimento” onde cantor e jogo expandiram para nós produtores um pouco mais os limites dessas possibilidades, que se mostram realmente infinitas.
Desde a criação do #FicoEmCasaBr me vejo pesquisando e assistindo ao que o mundo virtual oferece para entender os formatos e o que trazer de mais novo e excitante para o Coquetel Molotov. A que mais me chamou atenção foram as festas no Zoom, onde a possibilidade de interação entre espectadores é maior que simplesmente chat padrão de Youtube/Instagram. Achei sensacional entrar na casa das pessoas, ver o que cada um estava fazendo. Tinha um fazendo malabarismo, outro só sentado, outra em pé dançando e o chat sendo animado pela host, fazendo sorteio de laricas e bebidas via algum serviço de entrega. Sabia que ali já estávamos caminhando para uma experiência diferente e mais próxima do que o CQTL gostaria de fazer.
Indo mais a fundo descobri outras festas que já estão fazendo isso há algum tempo, inclusive uma que tinha ambientes diferentes. Como assim ambientes diferentes? A Club Quarentine de Toronto é uma das pistas mais quentes do momento, já teve Charlie XCX e até Pablo Vittar discotecando. No meio dessas pesquisas e conversas para entender novos formatos foi que a Laura Damasceno, da Casa Natura, me contou sobre uns amigos de Portugal que estão armando uma festa com vários palcos pelo Zoom chamado ¼ Fest: De Quarto Em Quarto. Vários palcos? É o que queremos, um festival precisa ter vários palcos pra ser um festival! Como fazemos vários palcos? E assim fui atrás do @umquartoclub para entender tudo que estão armando e por que essas festas no Zoom (agora com palcos diferentes simultâneos) são provavelmente a coisa mais legal acontecendo atualmente pela cena musical.
Podem se apresentar e contar um pouco sobre a área de trabalho de cada?
Gui trabalha com eventos desde 2012. Começou produzindo festas na faculdade e ali viu que gostava da profissão. Depois disso se envolveu nos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016, com live marketing, eventos corporativos e produção audiovisual. Hoje, em Portugal, realiza eventos para estreias de filmes. Ísis é produtora audiovisual e atua na área de cinema, televisão e rádio há mais de 10 anos. Nos últimos tempos quis voltar ao contato mais próximo com a música através de eventos e entre projetos surgiu a ¼ Club. Bicudo, do Rio, mora em Lisboa há mais de dois anos. Desde 2014 é DJ, ano em que também se formou em publicidade e marketing, desde então tem trabalhado nas áreas de comunicação e produção de eventos, sendo a sua maior experiência no Rock in Rio. Hoje trabalha para o mais conceituado festival de cinema português, o Indie Lisboa. Pedro é artista visual de Belo Horizonte, mas mora fora do Brasil há quase cinco anos. Se formou em cinema e audiovisual em Paris e dividiu os últimos anos trabalhando em projetos autorais, além de produção cinematográfica e produção de festivais de cinema e desfiles de moda na Fashion Week de Paris, incluindo os da marca Chanel.
Como foi encarar o isolamento e a criação dos primeiros eventos online?
Antes da pandemia ganhar grandes proporções, nós já tínhamos um projeto de festa para ser realizado em Lisboa no começo de Abril. Na primeira semana de casos em Portugal já percebemos que teríamos que cancelar o evento, antes mesmo da adoção de medidas obrigatórias de confinamento. Foi aí que surgiu a 1/4: em dois dias organizamos tudo, certos com a vontade de fazer uma festa que queríamos muito ver acontecer em Lisboa, e juntamos nossos amigos agora no ambiente virtual. Escolhemos o Zoom, já que acreditamos na interação das pessoas e não apenas ao “assistir a live”, e fizemos a versão teste com o pessoal incrivelmente muito animado, o que nos fez tacar o projeto pra frente.
Fala um pouco sobre o primeiro evento online que criaram e como os eventos foram evoluindo.
Tudo foi uma descoberta e ainda está sendo. O primeiro evento, em 21/03, contou apenas com o Lucas tocando e foi realizado no Jitsi, o que de fato não proporcionou uma boa qualidade técnica. Logo depois aprendemos e fomos pesquisando novos softwares e plataformas que possibilitaram uma grande melhora na transmissão e na experiência da festa em si, o que nos levou ao modelo utilizado hoje, Twitch + Zoom. Também resolvemos incluir performers e não só Djs, afinal a cena afetada pela pandemia é enorme e o ambiente virtual permite também aos artistas a exploração de um novo caminho de criação. A verdade é que, no início, como se tratava de um conceito muito novo, várias pessoas tiveram dificuldade em aderir e entender como funcionava a festa. Fomos então criando manuais de instruções e fidelizando o público amigo aos poucos, sempre focando em um line plural, diversificado e representativo. As pessoas foram comprando a ideia, novas festas também surgiram e hoje já se fala muito em “Zoom parties”.
Por que decidiram ficar entre as plataforma Zoom e Twitch? Pode falar um pouco sobre a parte técnica dos eventos online que vocês organizam?
Não existe ainda (mas acreditamos que logo haverá) uma plataforma desenhada especialmente para eventos. O Zoom possibilita espelhar uma tela com boa qualidade de som e imagem, além de ser a plataforma de videochat mais utilizada ultimamente – o que traz certa facilidade para o novo espectador na hora de entender a experiência da festa. O Twitch, por sua vez, tem evoluído muito nos últimos meses e não tem grandes bloqueios de copyrights, então podemos transmitir uma live com mais tranquilidade sem correr o risco de sermos derrubados. Além disso, como a 1/4 é também uma produtora de conteúdo alternativo audiovisual para artistas, o Twitch nos permite guardar os vídeos automaticamente após a transmissão e divulgá-los depois nas redes com mais facilidade.
Como tem sido a recepção do público? Você sente que tem uma diferença entre o público português, europeu e brasileiro?
O público realmente criou um certo afeto pela festa por ser uma momento de diversão e alívio em meio à toda negatividade política e social do momento. A gente criou uma rede de pessoas que sempre estão presentes em todos os eventos e a cada semana mais pessoas se juntam. Grande parte deles se tornaram nossos amigos mesmo, já que trocamos muito, ouvimos muito o que todos têm a dizer e tentamos sempre achar soluções para o que a galera sente falta. Recebemos dezenas de mensagens de completos desconhecidos que agradecem a existência da festa dizendo que mudamos a quarentena delas e que o sábado ganhou outro valor. A verdade é que temos feito dezenas de amigos nas últimas semanas e isso tem a ver com um objetivo primário da 1/4, a de criar um “club”, uma família, uma comunidade. A gente fica cheio de orgulho e amor e foi inclusive esse bom feedback que nos moveu a produzir mais e a melhorar até chegar a ideia do festival. Sem contar os artistas envolvidos que também se sentiram motivados em trazer sua arte e talento e terem um retorno interativo do público. Por outro lado, quanto a diferença do público, é possível sim dizer que o brasileiro é extremamente conectado e aberto à experiências na web, enquanto o europeu, inclusive português, tem grandes dificuldades em aderir ao virtual da mesma maneira. Na verdade, temos percebido que o público na Europa em geral tende menos a ter este envolvimento no Zoom, aderindo mais às lives no Instagram e no Facebook. Portanto, acreditamos que esse hábito da festa online tem que se tornar mais familiar para aderência em Portugal. Felizmente, aqui a quarentena também foi mais cedo e mais leve, houve um lockdown total e já estamos passando para o desconfinamento, o que nos permitirá fazer festas em grupos pequenos em um futuro próximo (esperamos!).
Que outras plataformas e formatos a galera vem fazendo eventos online que tem chamado a atenção de vocês? Algo inovador que devemos ficar de olho?
Além do Instagram e YouTube, que são as plataformas mais utilizadas mas não transmitem a mesma ideia da 1/4, o Zoom é, com certeza, o software mais utilizado para os eventos. Alguns formatos ainda são mais exclusivos para grandes artistas, pois demandam de uma super internet e softwares pagos (e caros), mas por outro lado o catálogo de programas acessíveis que possibilitam novos caminhos é gigante, incluindo o próprio OBS, que é o mais utilizado para transmissões. Eventos de Realidade Virtual e VideoMapping têm ganhado cada vez mais espaço também e acreditamos que em breve se tornarão tecnologias mais democráticas e difundidas na sociedade. No mais, temos visto uma vontade geral dos artistas e produtores em aprender e começar a experimentar novas maneiras de criação no virtual, incluindo nós mesmos, que criamos não apenas as festas pelo Zoom, mas também sessões de debates (1/4 Talks) e sessions (1/4 Jams) correndo paralelamente ao longo das últimas semanas. Por fim, quanto aos projetos, é legal ficar de olho nas festas semanais Fissura e Discothèque, além do Club Quarantine, que provavelmente trouxe o modelo do Zoom com mais força até hoje.
A ideia dos palcos / salas simultâneas é genial, ter a escolha de poder ver outros artistas, etc, como está a preparação para atender a essa demanda tanto artística como técnica?
Não se engane: o evento online dá muito mais trabalho do que parece, pois nos livramos de algumas tretas e ganhamos tantas outras. Artisticamente convidamos representantes de todo o Brasil e também de Portugal para fazer um mix de gêneros e backgrounds no line up, da mesma forma que temos feito as festas desde o início. Já no backstage teremos 4 pessoas em 4 casas diferentes trabalhando simultaneamente – cada uma dedicada à uma sala/palco da festa. Cada pessoa usa dois computadores, além de precisar de uma boa internet conectada via cabo para poder assegurar a programação e o contato full time com os artistas. Além disso, temos pessoas responsáveis por cuidar unicamente dos tickets, da interação nos chats e também das redes sociais, além do apoio do Sympla que vem nos ajudando a desvendar novos caminhos para a monetização da cena. O suporte tem que ser forte e tudo pensado com muito cuidado, incluindo mais de um teste técnico com cada artista, mas no final das contas temos feito quase tudo que já fazemos com nossas festas todo fim de semana – só que agora numa escala quase 10x maior.
O que vocês acham que iremos manter em termos de formatos e aprendizados dessa pandemia para quando a vida voltar a ter contato físico?
Ninguém sabe ao certo quais serão os efeitos pós pandêmicos, se teremos uma “normalidade” totalmente de volta. Mais do que nunca a interação digital foi incorporada à nossa rotina e a cena artística deve aceitar essa mudança como uma oportunidade a ser explorada no momento, sem esquecer, é claro, a força do rolê físico e presencial. De qualquer forma, acreditamos que algo do online permanecerá como um complemento à experiência e a 1/4 abraça isso, já que o digital está no nosso DNA. Estamos criando de fato uma comunidade e muitas pessoas têm se manifestado a favor da manutenção de festas online depois da pandemia. Pensamos na permanência no pós-quarentena em uma frequência menor, afinal, por que não variar entre os rolês de vez em quando? São experiências completamente distintas e que podem coexistir muito bem. A verdade é que uma nova relação com as festas e um mundo paralelo antes impossível e sem limites foi aberto, novas formas de interagir com o público, de performar e de comunicar apareceram. Artistas e festas que antes eram locais, seja em Belém, São Paulo ou Porto Alegre, agora se tornaram festas nacionais – e em alguns casos até mesmo globais. Olha, se alguém nos tivesse dito desse conceito todo de “Zoom parties” há pouco mais de 2 meses, nunca botaríamos fé que iria pra frente. Mas tudo tem sido um teste, um aprendizado e sobretudo um experimento: é hora de se reinventar mesmo.