Por Paula Ramos Smith

A Parada LGBTQIAPN+, que faz a Avenida Paulista brilhar e se colorir há 28 anos, tem ganhado um tom especial que vem se fortalecendo, brigando por seu espaço e protagonismo a cada versão. Trata-se das crianças trans. Muitos acham um tema polêmico, já que se tornou o alvo predileto da nossa tacanha extrema direita e sua fábrica de pautas morais – porém, precisamos conversar sobre isso.

Vamos falar de infância e de direitos, para início de conversa. De acordo com o artigo 4° do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):

 É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Vocês acham mesmo que a criança e o adolescente trans têm esses direitos básicos assegurados? O que nos faz pensar que devemos abaixar a cabeça para esse discurso nefasto e hediondo da extrema direita, que invalida a existência das crianças trans?

Quem vai perder com isso?

A infância trans é perpassada por muitos desafios, que se tornam problemas reais quando estão cercadas por ignorância e mentira. Calar e invisibilizar é colaborar com sua desumanização, com a marginalização dessas crianças, com a negação de seus direitos, que, cá entre nós, deveriam ser tratados como os de todas as crianças e adolescentes. Calar e invisibilizar é o projeto da extrema direita para todas as nossas comunidades.

Se nós não estaremos com elas, quem estará?

São poucas as que têm o privilégio de ter apoio da família e isso está longe de ser o suficiente. Estas vão ter que se contentar em viver numa bolha, com medo constante, sempre cercadas? E aquelas que nem o apoio da família têm? Vão viver destinadas à marginalidade?

Só há um modo de acabar com esse cerco contra a infância e adolescência trans e é com informação, educação, posicionamento e políticas afirmativas.

Nós não temos que escondê-las:

“Pessoas trans não brotam em vasos aos 18 anos,” diz Aline Melo, 42. “A gente pode definir padrões, mas as pessoas são quem são e isso não pode ser mudado por pressões externas. É preciso falar sobre pessoas trans. Crianças, adultos e idosos. Elas precisam que seus sentimentos e suas certezas sejam validadas, do mesmo jeito que as certezas da pessoas cis são. Ser trans é normal. As pessoas precisam naturalizar isso. Todas as pessoas trans foram crianças e em famílias acolhedoras elas vão se identificar cedo e não terão medo de reivindicar suas identidades de gênero.” Jornalista e ativista, Aline é mãe de um adolescente trans de 15 anos, em transição social desde 2021.

Legitimar suas existências, suas vozes, as vozes de familiares que lutam por suas vidas, pelas conquistas de pequenos direitos – direitos que para a população cis são naturais, inerentes – é um dever de todes nós. Vamos desmistificar a infância trans, que no fim das contas é infância do mesmo jeito, é criança do mesmo modo. Ser trans não é errado, não é influência de algum adulto, não é uma fase, nem, muito menos, um defeito.

A população trans vem sendo achincalhada há muito tempo, sobretudo a infância trans que é bombardeada por uma rede de ódio e desinformação. Dito isto, é importante salientar que existe uma regulamentação do CFM (Conselho Federal de Medicina), sobre o acompanhamento ambulatorial que rege o modo de lidar com esses casos e que consiste: em bloqueio puberal quando entram em puberdade e hormonização cruzada, se for o caso, a partir dos 16 anos. O CFM, portanto, alinha-se à OMS que retirou a transgeneridade do rol de doenças.

Portanto, criança não toma hormônios, nem passa por cirurgias. Até aproximadamente 12 anos, o que pode ser prescrito é o acompanhamento psicológico e a transição social, que é a criança ser tratada a partir do gênero com o qual se identifica, com correção de pronomes, mudança de nome em documentos, retificação da certidão de nascimento, ou inclusão do nome social.

Ainda, de acordo com Aline “trans são pessoas que não se identificam com o gênero atribuído quando nascem, que sempre leva em conta apenas a genitália. Ser trans é mais do que gostar disso ou daquilo e falando especificamente sobre crianças, é mais do que gostar de carrinho ou de boneca. É como a pessoa se vê e quer ser vista no mundo, ser acolhida, entendida e respeitada.” A transgeneridade nos faz entender que, assim como tudo na nossa vida, gênero é uma construção social.

Quando a gente pensa em origem, de onde vem tanto ódio e desinformação direcionada e organizada, a gente tem o remetente preciso e ele tem nome e sobrenome: Machismo Misógino LGBTfóbico.

Atinge toda nossa comunidade

A infância trans é tão assustadora para extrema direita porque vem com o colorido da nossa sigla. Que tal, no lugar de nos calarmos, lançarmos a tag #deixemnossascriancastransempaz?

Estamos em tempos que pedem coragem. Etimologicamente, coragem vem do latim coraticum, que significa ‘bravura que vem do coração’. Agir com o coração, com a bravura que pulsamos para enfrentar o fascismo, com a bravura que tivemos para derrotar Bolsonaro, com a bravura que precisamos ter para eleger candidates municipais que nos representem genuinamente. Este foi o tema desta Parada: “Basta de negligência e retrocesso no legislativo!” e isso também depende de nós, do nosso voto, as eleições municipais são de extrema importância.

Precisamos pôr em prática nossos ideais, encaminhar nosso discurso. Precisamos conhecer as propostas de candidates a fundo e eleger quem de fato se compromete com nossa sigla! Certamente, não vai ser deixando nossas crianças trans sem o direito de lutarem pelo básico, que iremos para frente. O que lhes é negado é a própria existência!

Unir nossa sigla e entender que a luta de um é a luta de todes, lembrando de Audre Lorde: “Não serei livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”. Audre, para quem não sabe, foi uma mulher negra, ativista estadunidense, feminista interseccional, lésbica, mãe. No lugar da palavra mulher, podemos pensar em pessoas, pessoas que compõem a comunidade LGBTQIAPN+, por exemplo.

Aline afirma a importância de uma reformulação no atendimento de saúde, que começa na formação dos médicos. “Nossos filhos não podem ficar dependendo de ambulatórios especializados, quando muitas vezes o acompanhamento que eles precisam é o mesmo de uma criança cisgênera. O mesmo ocorre nas escolas, onde os funcionários e professores, na maioria das vezes, não estão preparados para lidar com alunos trans, quando o que é preciso é apenas respeito à identidade de gênero deles.”

O dia da Parada é um dia de todes nós, em que estamos festivos e festeiros lutando por nossas necessidades, por avanços e cuidado, não podemos ter a covardia de deixar as pessoas trans de lado. E, sim, as pessoas trans já foram crianças.

Não por medo

O medo desde cedo nos acompanha, somos íntimos dele e mesmo assim nunca recuamos. Não será agora! A bandeira é nossa e as ruas também! Nossas crianças só precisam de respeito. Ser trans é um direito, nossas crianças só precisam de respeito. E sim, extrema direita: “CRIANÇAS TRANS EXISTEM! ADOLESCENTES TRANS EXISTEM E OS PRECONCEITUOSOS QUE LUTEM!”²

¹ Paula Ramos Smith é mãe de uma criança trans e um adolescente cis, pessoa não-binária, pansexual, ativista, jornalista e educadora
² Grito do Bloco Minha Criança Trans