Prefeitura lança nova peça publicitária a fim de maquiar fracasso na Cracolândia

O prefeito de São Paulo, João Doria, lançou na última sexta-feira, 23, no seu perfil do Facebook, uma peça publicitária com o mote “Crack: a melhor saída é nunca entrar”. Confira o vídeo abaixo:

A ação tem seu porquê. Na quarta-feira, 21, as pessoas em situação de rua e usuários de crack da Cracolândia saíram da Praça Princesa Isabel (em que estavam desde a ação da prefeitura, no dia 21 de maio) e aportaram na rua Cleveland, ambas na região de Campos Elíseos.

A volta da Cracolândia para o endereço original é um grande revés para a Prefeitura, que afirmou ter “acabado com a Cracolândia”.

A peça publicitária segue a mesma linha de discurso adotada pela gestão Doria sobre o assunto, em que afirma-se: “vamos ajudar quem quer ajuda”. Nessa narrativa, fica claro que, quem não comprar a “ajuda” da Prefeitura, estará sujeito à ação diária e irrestrita da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana no local, através da falta de acesso à alimentação e abrigos, e sob a mira da repressão.

A prefeitura, ainda em fevereiro, destinou 100 milhões do orçamento municipal para publicidade, mesmo cortando gastos em saúde e cultura. A campanha sobre o crack custou 4,9 mi aos cofres do município, mais que a metade do custo do programa De Braços Abertos, voltado para o cuidado de dependentes químicos e pessoas em situação de rua, da gestão anterior.

A mesma estratégia foi utilizada para questionar o número de acidentes no trânsito após o prefeito tucano aumentar a velocidade nas Marginais. Desde a mudança, o número de acidentes com vítima aumentou 38%, somando 540 ocorrências entre fevereiro e maio.

A Prefeitura, por sua vez, lançou uma campanha publicitária alertando para a “imprudência no trânsito” com principal causa das incidências. Confira o vídeo: 

 

O que pessoas que trabalham na Cracolândia acham da campanha?

◇ ◇ ◇

Marilia Fernandez, Frente Estadual Antimanicomial: O que Doria faz não é nada diferente da campanha da Guerra às Drogas que já se faz. Dois pontos sobre essa campanha: primeiro, ele mudou a narrativa para um apelo social. As pessoas não querem perder a vida, a família e o espaço social. Então, ele usa do apelo emocional, da comoção social e da construção de famílias, e sabemos o quanto isso é apelativo para quem assiste a televisão, no caso “a família”.

O segundo ponto: os atores são brancos, dentro de uma família branca, dentro de possibilidades de construção de se formar na universidade, a gravidez como algo construído e planejado, coisas que não são construídas dentro de uma população vulnerável.

A cracolândia é feita de pessoas vulneráveis que não tem estrutura social e familiar.

Há algo dito especificamente no meio da propaganda “o crack destrói uma vida inteira”. Mais uma vez, ele traz o problema como um problema da substância, não faz a discussão de um problema social. Isso não é diferente do discurso da Guerra às Drogas que permeou a nossa mídia durante muitos anos, e não é um privilégio do governo dele, é uma construção antiga.

O problema nunca foi as drogas, o problema não é o crack, o problema é como a sociedade se constrói.

Quem coloca o crack lá são os donos do narcotráfico, e eles não estão na Cracolândia. Os números que ele [João Doria] vai dar de presos, do combate ao crime ao dizer que prendeu 160 traficantes na Cracolândia, eu respondo, não existem 160 traficantes na cracolândia, os traficantes não estão lá.

A Prefeitura, com isso, coloca o problema da cracolândia enquanto o crack, e subverte a lógica, que é uma responsabilidade do estado de cuidar das pessoas de forma integral.

Campanha proibicionista, não dialoga com outros problemas da Cracolândia, como a quantidade de álcool consumida. Um amigo meu diz: “o problema do crack é o Corote”.

O problema da cracolândia não é o crack. A Cracolândia é o lugar onde as pessoas se juntam afetivamente e se protegem, tem uma lei ali dentro.

A gente vem falando sobre proteção social, acesso à saúde, assistência social e educação, no entanto, a narrativa que ele encontrou é muito chiclete, muito acessível, e ele está ganhando as pessoas, porque ninguém quer ficar inseguro, perder sua família.

É isso, gasta milhões em uma propaganda enquanto faz cortes na saúde, dizendo que a prefeitura tem um rombo que não existe.

◇ ◇ ◇

Raonna Martins, Psicanalista: “Crack: melhor não entrar”, e quem já entrou, acontece o que? Esse slogan, na melhor das hipóteses, vem no sentido de prevenção, então diria: “melhor não usar crack”.

Ok, você até pode fazer um trabalho preventivo desse tipo, mas você não conversa com um contingente significativo da população que já entrou e está inserido no crack. Então esse slogan não contempla o que de fato está acontecendo na Cracolândia, que são pessoas que já entraram.

A pergunta é, e aí Doria, meu camarada, você vai pegar de novo esse atalho ou vai conseguir produzir uma resposta que abarque as pessoas que já entraram no crack?

◇ ◇ ◇

Rafael Escobar, Cientista Social e militante do coletivo A Craco Resiste: [A campanha é] uma romantização à lá Hollywood! O uso de drogas é bem mais complexo que isso. O filme começa com a imagem da grávida e do menino na faculdade. Isso não é o que a gente vê na Cracolândia. O garoto ser branco é só mais uma clara visão do que essa prefeitura entende sobre a Cracolândia: nada. Basicamente, é isso que deixa bem claro ali.

As famílias da Cracolândia não são a família Doriana. Na Cracolândia são famílias destruídas, e antes fosse pelo crack, até faria algum sentido, mas as famílias são destruídas antes disso, vítimas de problemas sociais que deixa a situação da pessoa vulnerabilizada à mil.

É aquela velha história, o crack não é a porta para cair na rua, o crack é a última saída da pessoa na rua. Há quem diga que seja um fio condutor para essa pessoa depois de tanta merda que aconteceu na rua.

É muito inteligente usar a figura de uma pessoa branca para trazer a dor eo sofrimento do ser humano na situação do crack, porque o negro é tão vulnerabilizado que faria muito sentido, no contexto da sociedade racista, entender que o cara está lá.

Essa campanha custou quase 5 milhões. Ele dá toda essa grana para propaganda, mas os projetos dele são containers temporários. Quanto eles gastaram para fazer aquilo ali? Mixaria! A tenda usa uma lona para esconder os usuários de crack. Se voltarmos um pouco, vamos lembrar da 14 bis, que mandou colocar uma rede de galinha para esconder os moradores de rua.

Se pegar a última frase “Crack: a melhor saída é nem começar”, é muito interessante a construção da violência com essa pessoa [usuário de crack]. Ele insiste neste título, dando a entender que o crack é sem volta. Se você fumar a primeira vez, não tem volta, vira zumbi. É muito bem construída simbolicamente essa propaganda, e é isso que ele está perpetuando.

O que ele quer afirma com isso, de fato, é que não quer atuar no cuidado com os usuários de crack, quer criminalizar ainda mais a situação de miséria.

◇ ◇ ◇

Daniel Carvalho, militante do coletivo A Craco Resiste: É uma publicidade sem sensibilidade, que não é para as pessoas que possam vir a fazer uso de crack, tem o objetivo de justificar a política e as ações da prefeitura.

O uso problemático de substância o uso abusivo de crack e outras drogas está muito associada a problemas anteriores. Não é à toa que 70% da população da Cracolândia é de ex-presidiários, ou seja, perderam os laços com a família, não conseguem se inserir no mercado de trabalho, não tem possibilidade de moradia e vão parar lá.

A questão não é essencialmente de drogas. O governo leva a crer que é a substância. O problema lá é de uma série de desagregações. Até aquelas que vem de uma condição financeira melhor, tiveram problemas graves de família, ou tiveram outros problemas, como reveses financeiros muito fortes.

Então, não é uma questão assim, a pessoa está em uma vida linda cor de rosa, conhece o crack e daqui a pouco ela está na Cracolândia.

Na maior parte das vezes, o consumo está associado a uma questão social muito forte. Você vê que há uma prevalência grande ali de LGBTs, de gente que saiu de casa ou foi expulso e que não consegue voltar para a cidade de origem

Eles estão fazendo política e propaganda que não é para pessoas, que não foca nessas pessoas. Se percebe que o foco é em internação. Ele quer tirar as pessoas de lá para liberar a área, e está justificando isso com essa maquiagem humanista.

◇ ◇ ◇

Lucio Costa, psicólogo e ex-coordenador geral da Coordenação de Direitos Humanos e Saúde Mental da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República: Primeiro, é completamente equivocada, porque, partindo dessa propaganda, se tem a ideia falsa de que todas as pessoas que usam crack tiveram anteriormente uma família, afeto, oportunidades e que, em contato com o crack, substituiu toda essa rede de cuidados e de afetos pelo uso de drogas. O que, na realidade, não corresponde.

A maioria esmagadora das pessoas que fazem uso de drogas, não estão na rua em função da droga, estão na rua em função de outras coisas, e a droga acabou se tornando mais um elemento na vida dessa pessoa.

Segundo, o investimento para essa peça publicitária é um absurdo, a previsão é de 5 milhões de reais. Se a ideia era fazer prevenção, existem outras formas, investindo por exemplo nos espaços de acolhimento, nas unidades de saúde, no esclarecimento sobre as consequências do uso de drogas sob a perspectiva do cuidado.

Essa peça responsabiliza o indivíduo como único agente de uma possível mudança, o que não é verdade. A mudança de vida do indivíduo não depende só da força de vontade dele, depende de uma série de estratégias que possam junto à ele construção da cidadania.

O efeito colateral de colocar a responsabilidade sobre o indivíduo, como é o caso da propaganda, é reforçar a ideia de que sobre ele cabe qualquer tipo de intervenção para que saia dessa realidade, intervenção no sentido violento da palavra, por que em alguma medida, quando responsabiliza ele como sendo o único responsável pela mudança e ele não muda, isso autoriza a sociedade a condená-lo, atribuindo a ele todos os rótulos que tradicionalmente são direcionados à essa população, como falta de vergonha na cara, pessoas vagabundas, pessoas que não querem sair dessa vida, e que, portanto, o estado tem autorização pela sociedade de intervir.