CPI da Rouanet termina com resultado positivo
Comissão elaborou propostas para democratização do incentivo fiscal e fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura.
A CPI da Rouanet terminou no último dia 9 de maio de um jeito bem diferente do que começou. O requerimento de criação da Comissão, em maio do ano passado, veio na esteira da operação Boca Livre, que mostrou irregularidades na aplicação dos recursos de alguns projetos. Naquele momento a criação da comissão foi totalmente contaminada pelo clima político de caça à esquerda que se seguiu ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff. Criou-se uma onda de perseguição a artistas que haviam resistido ao impeachment, que se juntou com um clima de suspeição sobre o Ministério alimentado pela grita de setores da população que pediam o fim da Lei Rouanet.
Um ano depois, o resultado foi bastante diferente. Ficou claro que não houve nenhum tipo de favorecimento por parte do Ministério da Cultura, não foi apurada nenhuma irregularidade cometida por artistas e a maior parte das irregularidades detectadas foi encontrada em processos cuja investigação começou no próprio Ministério. As investigações mostraram problemas da própria lei e apontou a ausência de um controle mais rígido e eficaz da Administração Pública, mas mostrou que este controle depende de mudanças na própria entrada dos projetos para poder gerar efeitos.
A maior contribuição da CPI foi elaborar uma série de proposições para mudanças na Lei Rouanet, no sentido da democratização do incentivo fiscal e do fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura, mecanismo complementar ao incentivo e essencial para a democratização do fomento à cultura. Embora a proposta não corrija todas as distorções da Rouanet, ela avança de maneira positiva na direção de um mecanismo menos concentrador. Vale passar pelas principais conclusões da CPI antes de analisar as propostas de modificação da Lei.
As conclusões da CPI
Ao fim dos trabalhos, a CPI não verificou nenhuma “irregularidade no volume anual de aprovação dos projetos incompatível com a capacidade administrativa do Ministério da Cultura”, tampouco detectou qualquer “irregularidade no acompanhamento e avaliação dos projetos culturais durante sua execução”. Da mesma forma, a CPI conclui que “aparentemente, não houve irregularidade no controle da movimentação financeira dos projetos culturais”.
Ao falar do volume de projetos, a CPI aponta que o problema de acúmulo de análises de prestações de conta ocorre, “em grande medida, porque, na fase de aprovação das propostas/projetos culturais, praticamente não há mecanismos capazes de barrar propostas/projetos, mesmo que muitas delas apresentem fortes indícios de inadequação desde o princípio”. Isto é, a lei não dá ao Ministério discricionariedade para atuar nesses casos. Como conclui o relatório, “sem resolver boa parte do problema de fluxo nas fases iniciais do processo, será difícil solucionar todos os desafios que se põem ao longo da tramitação administrativa no Poder Executivo na etapa final de fiscalização dos projetos”.
Da mesma forma, a CPI apontou a liberalidade que foi introduzida na lei a partir de 1999 em relação à intermediação de captadores de recursos. Diz o relatório: “como os captadores não são vedados por lei, é fácil estes serem o elo capaz de interferir diretamente nos projetos e no vínculo com os incentivadores de modo a propiciar possíveis acertos ilícitos entre incentivadores, proponentes e fornecedores. Sem a reforma da Lei Rouanet nesse aspecto, dificilmente o Ministério da Cultura terá como vetar projetos culturais com alto risco de cometimento de irregularidades”. A CPI conclui que “tem-se configurada o que se sugere ser excessiva liberalidade de empresas que desejam se especializar em obter recursos da Lei Rouanet”.
Na dimensão criminal, a CPI apontou falhas de investigação no período de 2011 a 2013 (ministras Ana de Hollanda e Marta Suplicy), mas fica claro que não houve responsabilidade direta das ministras nestas falhas. Aqui é possível concluir – sem que a CPI tenha dito isso – que a maior parte das falhas têm a ver com o fato de o processo de captação e execução se dar todo a partir da relação entre terceiros privados, em um volume incompatível com a capacidade operacional do Ministério, como identificado pela própria Comissão.
Nesse sentido, o relatório recomenda ao Ministério Público Federal que prossiga com a apuração sobre a Operação Boca Livre e com investigações sobre novos indícios que apareceram em relação a empresas patrocinadoras, como a Rannavi Projeto Cultural e o Grupo Colorado. Ao Ministério da Cultura, o relatório também faz diversas recomendações em relação a mecanismos para aprimorar a fiscalização e o controle, e pede ao Ministério do Planejamento mais estrutura para que o Ministério dê conta do passivo de prestação de contas.
Propostas de alteração da Lei Rouanet
As recomendações são positivas, mas os resultados mais importantes foram mesmo as propostas de alteração da Lei. A CPI elaborou projeto de lei que incide nos dois principais mecanismos da Lei Rouanet: o incentivo fiscal e o Fundo Nacional de Cultura. Em relação ao incentivo fiscal, cuja captação é de mais R$ 1 bilhão por ano, ela faz modificações para garantir a desconcentração regional e a democratização da lei. As propostas obrigam uma regulamentação que detalhe formas de promover distribuição equitativa entre os estados.
Também em relação ao incentivo, o projeto propõe que músicos iniciantes possam ter acesso a 100% de renúncia fiscal. A medida tem o aspecto positivo de estimular músicos iniciantes, mas ao mesmo tempo pode gerar uma drenagem de recursos de outras áreas, como artes cênicas e patrimônio. Esta proposta foi uma mediação frente à proposta original do relator de dar 100% de incentivo a qualquer projeto de música, que geraria distorção muito grande na lei.
Em relação à captação de recursos, o projeto de lei restringe esse papel a pessoas jurídicas de natureza cultural ou pessoas físicas, no objetivo de que não haja intermediação por empresas estranhas ao ramo cultural.
Mas é em relação ao Fundo Nacional de Cultura (FNC) que as propostas são mais avançadas, tanto para garantir seus recursos como para democratizar suas despesas. Em relação às receitas, a proposta sugere texto legal que impediria o contingenciamento dos recursos de loterias, já que o FNC deveria receber 3% desse valor, mas hoje sofre contingenciamento.
O relatório também propõe que o equivalente a 20% (vinte por cento) dos recursos doados ou patrocinados a projetos culturais com valor total aprovado pelo Ministério da Cultura (MinC) maior que R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) deverá ser destinado ao Fundo Nacional de Cultura (FNC). Para que a medida não prejudique os projetos e não desestimule os patrocínios, a proposta é que o montante possa ser incluído no valor a deduzir do Imposto de Renda devido pelo incentivador e que os projetos possam captar 20% a mais do que o valor aprovado. A proposta também define que este valor não poderá ser objeto de contingenciamento pelo Poder Executivo. Se aprovada, essa medida cria um vaso comunicante entre recursos do incentivo fiscal e o Fundo Nacional de Cultura, fazendo com que o aumento na renúncia fiscal gere um aumento proporcional no FNC.
Em relação ao uso do Fundo Nacional de Cultura, a proposta estabelece a transferência fundo a fundo para estados e municípios, com regras para utilização dos recursos pelos outros entes de forma a garantir a democratização. Essa é uma medida muito importante para garantir a efetiva democratização regional. Além disso, diminui de 20% para 10% a contrapartida a ser dada pelos projetos no acesso a recursos do fundo, e estabelece que ela pode vir de fundos ou leis de incentivo estaduais e municipais.
Todas as propostas dependem da aprovação das modificações pelo Congresso Nacional, mas o fato de a CPI ter conseguido dar conta, ao mesmo tempo, de seu papel investigativo e de ter gerado proposições democratizantes foi um avanço importante – inimaginável um ano atrás.