Cozinhar ou não cozinhar: eis a questão?!
Entre o fogo e a frigideira, encontrar uma relação assertiva com as panelas se torna algo cada vez mais vital para sobrevivermos.
De um lado, a publicidade da máfia alimentícia tenta nos levar em banho-maria, veiculando falsidades. De outro, sofremos a ameaça de fritura pelo caos climático gerado pelo sistema insustentável de produção agroalimentar. Entre o fogo e a frigideira, encontrar uma relação assertiva com as panelas se torna algo cada vez mais vital para sobrevivermos.
Há mais de 5 décadas atrás, quando certo macarrão se tornou famoso por ficar pronto em 3 minutinhos, muita gente teve a impressão de que o mundo real e o mundo da fantasia – no qual a comida simplesmente se auto-preparava – estavam se aproximando. A cultura da instantaneidade, onipresente nos fragmentos de vida que atualmente circulam em redes sociais virtuais, como o Instagram (que não por acaso tem esse nome), já espalhava suas sementes no imaginário popular. A refeição “preparada” em 3 minutos e os 15 minutos de fama anunciados por Andy Warhol faziam parte da mesma ideologia: a do não-esforço e a do descarte.
Como eu nasci pouco depois dessa época, essa ideologia era embrionária e me lembro muito bem que ainda era preciso guardar as garrafas de refrigerante durante o ano todo, para que pudéssemos levá-las no supermercado quando fôssemos comprar a bebida para o aniversário de alguém – único momento em que ela entrava, com muita parcimônia, na minha casa. E levávamos os velhos cascos vazios, bem como trazíamos os novos, dessa vez cheios com o líquido gasoso, em sacolas de feira. A cultura do usa-e-joga-fora ainda não tinha se tornado imperativa e a gente costumava praticar mais o verbo reusar ou reaproveitar e ainda não nos iludíamos tanto, como fazemos ou fingimos fazer hoje, com o verbo reciclar – ação que já se mostrou completamente insuficiente para resolver o problema monstruoso dos resíduos sólidos não orgânicos, como provam os índices pífios de reciclagem e os imensos oceanos de plástico pelo planeta.
Nas raras vezes em que minha família comia uma pizza, havia duas possibilidades: ir até o salão de uma pizzaria e fazer um “passeio”, ao comer fora de casa, ou ir até um balcão de uma pizzaria, fazer um pedido e esperar, ansiosamente, que ela ficasse pronta para levá-la para comer na nossa cozinha. Então, em minha vida, o ato de saborear um pedaço de pizza sempre esteve atrelado ao cheiro da lenha queimando para assá-lo. Quando minha mãe passou a seguir a alimentação macrobiótica, ela até fazia umas “pizzas” de farinha integral com tofu, mas não tinham absolutamente nada a ver com as que eram feitas pelos pizzaiolos, manuseando suas imensas pás na boca do forno. O que quero dizer é que ir até um salão ou um balcão de pizzaria, bem como no caso de tirar as garrafas retornáveis do armário nos dias de festa, era um ritual. Fico imaginando como seria no tempo em que a pizza se tornou popular na Itália, quando a massa era feita em casa, assim como era a massa do pão, alimento do qual ela derivou. Ou como seria na aldeia natal do meu avô, em uma região do leste europeu chamada Bessarabia, quando ele aprendeu a fazer o vinho mais amoroso que eu já provei e que eu tomava sempre como refresco (com água e um pouquinho de açúcar), durante a minha infância.
E já que falei em pão, ir comprar pão na padaria era outra ação que as crianças da vizinhança da região periférica em que eu morava, situada na divisa entre São Paulo e Osasco, costumavam fazer ao final da tarde. O hábito de fazer os próprios pães em casa já não era tão comum (embora minha mãe muitas vezes fizesse), mas ainda era necessário levantar a bunda da cadeira e caminhar uns 10 ou 15 minutos até a única padaria do bairro, entrar na tortuosa fila para comprar, e voltar com o saco de papel com os pãezinhos quentinhos nas mãos. Tomar lanche na casa dos vizinhos era corriqueiro e, quando eu estava com uns cinco anos, tinha um “namoradinho” que simplesmente tocava a nossa campainha e falava para minha mãe que queria suco!
Congelar, descongelar, fritar
Não, não era só o lanche da tarde que fazíamos nas casas alheias, naquela época. Almoço, jantar e até café da manhã, quando dormíamos algumas noites no quarto das crianças amigas, eram algo bem comum. A comida, invariavelmente, era feita em casa e me lembro do gosto ímpar de muitas das receitas que algumas das famílias costumavam oferecer nesses momentos. Havia, inclusive, uma comunidade japonesa no bairro e eu aprendi desde pequena o que era um sushi, um teishoku, um doce de feijão azuki. E me aventurei a comer com os tais pauzinhos, os hashis. Eram comidas feitas pelas batchans – que mal falavam o português – e eu achava mais gostoso olhar para aqueles rolinhos coloridos do que comê-los.
Aí vieram os freezers e os microondas, e congelar e descongelar foram virando verbos comuns no dia a dia da vizinhança. Assim, ficou um pouco mais raro entrar na casa de alguém e sentir o cheiro de um bolo assando no forno ou de um feijão fumegando nas panelas. Se as moradias mudaram, os supermercados também passaram por transformações visíveis. Os pacotes de comidas congeladas – que, assim como o tal macarrão, também “ficavam prontas instantaneamente”, ao passar uns minutinhos dentro daquela pequena caixa de metal que, habitada pelas tais ondas geradoras de calor, ameaçava substituir o fogão, – povoaram os corredores, ocupando o interior de outras tantas caixas de metal, maiores e com muitas prateleiras, em que as temperaturas baixas eram garantidas por um uso intenso de energia elétrica.
Me recordo que outro ritual que começou a diminuir nas rotinas familiares foi o de fazer pipoca. Na minha casa, a gente continuou seguindo a tradição e estourando os grãos na panela, batucando na tampa com uma colher de pau enquanto cantarolava assim: “rebenta pipoca, Maria Sororoca”. Eu até achava que, sem fazer essa mandinga, o milho não se dignava a estourar como devia e os piruás apareciam em maior quantidade. Mesmo depois de descobrir que esse procedimento era só uma brincadeira, ainda gosto dele e nunca cedemos ao novo modo de “preparar” que, de forma muito sem graça, substituiu o antigo: os pacotes para levar ao microondas. E também ficaram bem mais raros os carrinhos de pipoca que, tradicionalmente, batiam ponto em frente ao cinema e faziam dupla com o filme do momento.
Das bacias coloridas cheias de florzinhas brancas de milho estourado, que passavam de mão em mão nas sessões de filmes na casa de vizinhos ou primos, aos “baldes” individuais de material descartável que são vendidos nos cinemas dos shoppings, assistimos a uma mudança que vai muito além da dimensão cultural e se transformou em um verdadeiro pesadelo. Se a Cultura Alimentar é algo que merece, por si mesma, toda a nossa atenção, as intensas transformações que ela sofreu nas últimas décadas não apenas sufocaram saberes e fazeres milenares, mas estão na raiz de dramas como o aumento brutal da obesidade e das doenças crônicas não transmissíveis no planeta. Infelizmente, até mesmo as crianças de hoje sofrem com o excesso de peso e com os distúrbios que costumam acompanhá-lo, como diabetes tipo 2 e hipertensão.
A crise mundial de saúde pública, decorrente desse cenário de domínio dos ultraprocessados e de declínio das panelas, se entrelaça com a crise ecológica planetária, também enraizada nas mudanças sofridas pelos sistemas alimentares em todos os continentes, que, por serem baseados em poucos tipos de imensas monoculturas envenenadas e na industrialização em massa do que se come e se bebe, destruíram os ecossistemas locais, reduziram a biodiversidade, poluíram água, terra e ar, alteraram o clima e ameaçam, como parte de um modelo produtivo e civilizatório totalmente insustentável, botar um ponto final na experiência humana de existência. A visão unificada dessas crises (a sanitária e a ecológica), já inseparáveis devido às suas raízes comuns, deu origem ao conceito de Sindemia, o adoecimento do planeta.
De fato, quanto mais congelamos e descongelamos o que comemos, mais alimentamos as engrenagens de uma máquina gigantesca de destruição da natureza, usando quantidades avassaladoras de energia e despejando, ininterruptamente, gases de efeito estufa na atmosfera – responsáveis por um fenômeno global que envolve um outro verbo ligado ao universo alimentar: fritar. Hoje, a fritura climática já é realidade e a luta deixou de ser para evitar que os desastres decorrentes dela se apresentem e passou a ser para lidar com tais mazelas com um pouco mais de resiliência, dada a situação dramática que já atingimos e a inércia de governos e empresas em tomar medidas adequadas para segurar a temperatura da Terra no valor necessário.
O futuro (nunca) chegará
Quem tem em torno de 50 anos deve se lembrar de um desenho animado de ares futuristas em que uma simpática família voava em seus automóveis pelos céus da cidade e acionava engenhocas domésticas quando queria que algum serviço fosse realizado. Os Jetsons fizeram sucesso em um tempo em que os computadores ainda não estavam disponíveis para a população, mas em que o ritmo do desenvolvimento tecnológico se acelerava e a animação parecia antecipar um cotidiano que logo mais se faria real. Me lembro de assistir os episódios em nossa pequenina TV de tubo que transmitia as imagens em preto e branco, e imaginar quanto tempo ainda demoraria para os carros voarem, a comida surgir ao apertar botões e os robôs realizarem as tarefas domésticas.
E lá se foram quatro décadas. Hoje, os carros não voam e não temos robôs em nossas casas, embora a frota de jatinhos e helicópteros tenha crescido muito e a automação tenha se desenvolvido expressivamente e já esteja disponível na esfera residencial. A pergunta é: toda essa tecnologia para quem? Podemos começar a responder com um dado terrível. Cerca de 4 bilhões de habitantes do globo terrestre não têm acesso ao saneamento mais básico que você possa imaginar. A fome ainda atinge 820 milhões de pessoas e mais de 3 bilhões não têm acesso ao que teriam que ingerir para uma existência plena. Doenças que poderiam há muito ter sido erradicadas, com o nível de conhecimento e tecnologia que conquistamos, ainda fazem milhões de vítimas. Não, o povão não tem nem o necessário para sobreviver dignamente, quanto mais a possibilidade de usufruir de traquitanas futuristas que voam e que fazem coisas sozinhas.
Na pontinha da pontinha do ranking econômico, é que temos um punhado de bilionários que não apenas circulam em seus aviões particulares, mas planejam se aventurar pelo universo afora em seus foguetes produzidos com custos inimagináveis para qualquer pessoa que ganha um ou alguns salários mínimos, como eu. Na mente doente dessa elite, isso parece mesmo fazer sentido, já que ela nunca se importou com a deterioração que causa no único planeta que conhecemos até hoje (depois de tanto bisbilhotarmos o universo), que possui as condições para a vida surgir e se sustentar, e já pensa em fazer com ele o que está acostumada a fazer com tudo, inclusive pessoas: descartá-lo.
É dentro desse cenário para lá de perturbador que compreendo uma frase dita por um diretor de uma empresa que ”vive de moer carne humana”, ao explorar milhares de motociclistas e ciclistas em rotinas de entrega de comida compatíveis às jornadas da época pré-revolução industrial, quando a classe trabalhadora operária, que então surgia, ficava mais de 10 horas nas linhas de produção. O distinto executivo veio a público, em uma entrevista para um jornal de grande circulação no país, para dizer que “daqui há dez anos, ninguém mais vai cozinhar em casa”, o que gerou grande revolta nas nossas redes de militantes em prol da (considerada por nós) Comida de Verdade.
Sim, a cultura do delivery triunfou e os lucros nesse setor podem justificar a arrogância de seus engravatados. Mas, talvez, nem ele nem as demais pessoas tenham compreendido o que pode significar essa sentença. O que Fabrício Bloisi, CEO e proprietário do Ifood, pode ter anunciado, sem uma percepção consciente disso, é que estamos tão próximos daquele temido ponto de desintegração ecológica que, daqui uma ou algumas décadas, o ser humano pode não ter muito o que, onde e como cozinhar, já que culturas agrícolas básicas podem não encontrar condições para serem cultivadas, fontes de energia podem ficar mais escassas e até territórios inteiros podem se tornar inabitáveis, seja por alagamento ou desertificação.
É assim que, na minha triste visão, deveríamos assimilar a declaração aparentemente estapafúrdia do businessman. O foco não deveria ser tanto o de rebater o que ele mesmo deve ter pensado ser apenas um arroubo marqueteiro para atrair atenção e se auto vangloriar, mas o que valeria realmente fazer é nos debruçarmos para as ameaças reais que pairam não apenas sobre nossas panelas, mas sobre nossas vidas. Tais ameaças podem não se referir a um tempo tão curto, como a frase de impacto emitida por ele propõe, mas estão aí, cada vez mais próximas.
Panelas não se auto-pilotam
Dito isso, voltemos para o presente e vejamos quais são os cenários existentes, agora, no mundo das cozinhas. Ao contrário do que muita gente que emite suas bravatas em redes (anti)sociais pensa, há quem gostaria que uma leitura “otimista” da frase dita por Bloisi fosse possível e que esquentar a barriga no fogão todos os dias não fosse mais necessário para ter comida quentinha na mesa. Não, não estou falando de empresários sedentos por lucro. Falo de pessoas que têm bem menos visibilidade nos veículos de mídia e bem menos tempo para ficar concordando ou discordando de frases de efeito.
Dia sim e dia também, bilhões de mulheres aguentam rotinas de jornadas duplas ou triplas, em que precisam ter um ou mais trabalhos remunerados para sobreviver, e ainda acumulam todas as tarefas domésticas e os cuidados com familiares (e até com vizinhos), muitas vezes idosos ou doentes, dedicando praticamente todas as horas de suas vidas a essas missões tão imprescindíveis. Para elas, ter um único dia da semana em que não precisassem se preocupar com o preparo do alimento que vai nutrir seu corpo e o corpo de seus filhos, tendo a chance de usar um aplicativo de celular para escolher uma refeição saborosa e saudável, seria um luxo absoluto.
No livro Quem vai fazer essa comida?, Bela Gil, cozinheira, apresentadora de programas culinários e ativista social, não deixa dúvidas sobre o lado duro da pilotagem dos fogões e sobre quem são as pilotas desses equipamentos ancestrais. Por mais que existam homens se destacando no universo gastronômico – afinal, o que não faltam são chefes de cozinha machos bajulados e considerados melhores do que chefes mulheres nos pódiuns internacionais – e que o mercado de produtos gourmet para os cozinheiros de fim de semana siga crescendo, quem rala mesmo no preparo do arroz e feijão diário em casa, quando comida há, é o sexo feminino.
Eu mesma, que jamais peço comida por aplicativo nenhum, não como comida congelada nem “microonizada” e boicoto toda a cadeia de exploração humana e animal do setor agroalimentar, me sinto sufocada muitas e muitas vezes por ter que dar conta de um dia pesado de trabalho e ainda ter que, invariavelmente, comprar, lavar, picar e cozinhar do zero a comida em casa. Não, não tenho um padrão de vida que me permita frequentar restaurantes naturebas, nem nos finais de semana. Mesmo assim, sou extremamente privilegiada por ter condições de dizer não ao fast food e seus aditivos artificiais geradores de câncer, que é o que a maioria das pessoas que consegue comprar comida pronta tem acesso e o que está deixando os donos de corporações alimentícias de produção e entrega cada vez mais ricos.
Neste ponto, vale ressaltar que o aumento do consumo de ultraprocessados é um fato real, que eles estão ficando cada vez mais baratos em relação aos alimentos saudáveis, que fazem parte da dieta das pessoas cada vez mais cedo – já que mulheres grávidas têm ingerido quantidades alarmantes desses produtos e bebês de colo tomam bebidas adoçadas em mamadeiras -, que entre os povos indígenas e quilombolas os índices de crescimento são mais expressivos do que no restante da população – mostrando como até os redutos de preservação da nossa Cultura Alimentar estão sendo atingidos pelo processo -, que a infância e a juventude são particularmente afetadas por serem alvos constantes da indústria publicitária, e que todas as camadas da sociedade vêm perdendo a referência do que é um alimento de verdade e quais são as relações biológicas e sociais que estão envolvidas em seu ciclo. Incontestavelmente, a verdade é que o delivery tem contribuído muito para essa expansão, o que explica parte da “alegria presunçosa” da frase do presidente do Ifood, já que cada vez mais gente é pescada pelo sistema de “comida” pronta entregue em casa, e que uma pessoa como eu, que se recusa a ter um aplicativo desses no celular, é algo cada vez mais raro.
No entanto, apesar de tudo isso, eu ainda consigo, em inúmeras ocasiões, encontrar no ato de pilotar as panelas um refúgio contra o estresse profissional ou social e falarei sobre isso mais adiante.
Antes do moto ou do bikeboy
Agora vale um contraponto ao meu grito feminista, já que, quando falamos de cozinhar, não estamos falando só do ato que é feito dentro das cozinhas caseiras. Existe uma outra galáxia que não pode ser ignorada. Se os entregadores de comida por aplicativo são a face que as pessoas (mal e desleixadamente) vêem, ao pedir suas refeições prontas, não são eles que preparam os quitutes. Quando o tal fulano soltou a frase destemperada (ou muito bem temperada para o circuito dele), ele foi enfático ao dizer que as pessoas não iriam mais cozinhar “em casa”. É que, na base do sistema de delivery, há um gigantesco número de cozinhas profissionais (ou que deveriam ser profissionais), para transformar determinados ingredientes comestíveis em pratos ou lanches no ponto de serem imediatamente devorados por quem chegou em casa faminto.
Seja com carteira assinada, algo cada vez mais raro, seja através da pejotização, há uma classe trabalhadora que está, hoje, batendo ponto nas cozinhas de restaurantes e de empresas de comida sob encomenda. Muitos de seus integrantes são do sexo masculino e são explorados quase tanto quanto suas colegas mulheres – já que, como homens, ainda desfrutam de pequenos privilégios (assumidos ou não assumidos) em suas relações profissionais. Sabemos que os motoqueiros e ciclistas do Ifood precisam sair como loucos pelas ruas da cidade, para que possam fazer o máximo de entregas que puderem no menor tempo possível e, assim, receberem um pagamento diário que permita que eles, além de entregar a comida alheia, também tenham grana para comer – o que nem sempre conseguem, como já mencionei em outro artigo. Mas é mais difícil de perceber que cozinheiras e cozinheiros de lanchonetes, bares, restaurantes e dark kitchens também têm que se submeter, constantemente, a jornadas estafantes para que consigam recursos para garantir a alimentação da própria família, depois de preparar tantas refeições para as famílias de gente que nunca viram nem verão.
Quantos hambúrgueres você precisaria “chapar” para ganhar o suficiente para comprar o seu lanche em uma dessas redes famosas, como o MCDonald’s, vulgo Méqui, aqui no Brasil? Eu, que devo ter pisado meia dúzia de vezes em lanchonetes de comida ultra-rápida – e não tenho esse desgosto há uns 20 anos -, não faço a menor ideia e sempre me revolto quando vejo que o preço do tal biguiméqui é referência para medir o custo de vida em cidades do mundo todo. Mas há quem se debruce sobre questões indigestas como essa, e as denúncias de relações para lá de abusivas nessa cadeia são constantes e consistentes.
Além disso, ambientes comerciais de preparo de comida não são como as cozinhas das casas da classe média e podem se parecer mais com uma linha de produção fabril do que com um lugar em que se faz algo tão antigo e visceral como usar o fogo para transformar frutos e grãos em pratos repletos de significado cultural. A iluminação muito forte ou inadequada, o calor excessivo, o confinamento do espaço, em que não se sabe nem se é dia ou noite pela ausência de janelas, são alguns dos fatores que, somados à pressa, podem contribuir para os incontáveis casos de estresse ou de depressão de quem trabalha nos bastidores da cadeia da comida pronta.
Você acha que alguém que fica a maior parte de seu tempo nessa rotina nada palatável não iria agradecer aos céus se chegasse em casa e não precisasse pilotar as próprias panelas para que sua família tivesse uma refeição pronta sobre a mesa? Para muitas dessas pessoas, a declaração do executivo do Ifood poderia ser duplamente saborosa, ao significar mais emprego no setor e a possibilidade de, até em suas próprias vidas, não ser mais necessário acumular, todos os dias, seu trabalho profissional na cozinha com o trabalho caseiro de preparar a comida de sua própria gente. Mas, feliz ou infelizmente, a profecia do grande pensador dos negócios parece não ser, ainda, uma realidade incontornável. E agora vamos aos motivos positivos que temos para desacreditá-la.
Solidariedade e rebeldia
O único país em que eu já pisei – sem ser a nossa querida terra pindorâmica – foi a Argentina. E não foi em um momento qualquer. Estávamos em plena crise político-econômica galopante e a expressão ”que se vayan todos” ganhou fama internacional, deixando mais do que explícito a decepção de nossos hermanos e hermanas com a classe política. Estávamos no início dos anos 2000, a relação do peso argentino com o dólar sufocava a população e me lembro que eu tinha que pensar muito bem quando eu iria comprar uma garrafinha de água, dado o valor exorbitante de tudo. Se as panelas ganharam as ruas, não foi somente para fazer barulho. Os panelaços, de fato, eram constantes e batucar nos utensílios esvaziados pela falta de comida e de dinheiro se tornou uma ferramenta de protesto altamente expressiva. Os blocos desses “músicos” perambulavam em locais estratégicos, como o entorno da Casa Rosada.
Mas o espaço público recebeu panelas, caldeirões e colheres de pau não somente como instrumentos mambembes de uma orquestra de gente revoltada. Praças e outros locais de encontro foram usados também para cozinhar. Eram as formas comunitárias de organização se manifestando e rompendo a lógica do cada um e cada uma no seu quadrado. Sim, na hora em que a coisa fica feia, o tão cultuado individualismo pode perder seu domínio e dar vazão a manifestações mais expressivas de coletividade. Muitas provas disso podem ser encontradas ao analisarmos o que ocorreu aqui mesmo no Brasil, na época de pico da pandemia de Covid.
Espremida pela crise sanitária, por um lado, e pela postura criminosa do governo federal negacionista por outro, a população brasileira precisou se reorganizar para sobreviver. Milhares de iniciativas comunitárias surgiram ou se adaptaram para garantir comida no prato de quem estava sem renda, sem saúde, sem amparo e quase sem esperança, em meio ao vendaval que se formou no território do país. Uma delas, da qual eu faço parte, é a Campanha Gente é Pra Brilhar, Não para Morrer de Fome, que surgiu com a facilitação do Coletivo Banquetaço. Criada no primeiro ano da pandemia, ela mobilizou mais de cem organizações para chamar a atenção para o aumento da fome no país e para levar alimento aos pratos vazios. Ainda não havia nenhum estudo mostrando a gravidade da situação, como de fato ocorreu, posteriormente, com a publicação dos levantamentos feitos pela Rede PENSSAN. Nossa percepção do drama alimentar se baseou somente no que as ruas mostravam: as filas das quentinhas engordavam, enquanto a grana no bolso definhava, deixando as organizações de assistência enlouquecidas para dar conta do aumento da demanda.
É dentro desse mundo em desmoronamento que as cozinhas comunitárias se apresentaram como instrumentos de combate à fome, se estruturando em muitos territórios, a partir da população e de entidades locais. Foram milhões de marmitas preparadas voluntariamente (sobretudo por mulheres), que sustentaram boa parte das gentes brasileiras em pé. Como, diferentemente de desenhos futuristas, o alimento não fica pronto para comer de modo instantâneo, vale reforçar que, além de todo o trabalho dentro das cozinhas, foram necessários muitos trabalhos anteriores, seja nas roças, seja no beneficiamento, seja no transporte e na distribuição. Braços de pessoas de todos os tipos se somaram nessa teia.
Sobretudo movimentos do campo, como MST e MPA, se dedicaram arduamente à produção de comida para ser partilhada com quem já não tinha condições de pagar por uma refeição diária. Novas pontes foram estendidas para unir gente das cidades, das roças, das florestas e das águas e um dos destaques em solo urbano, é o setor de luta pela moradia. MTST e MSTC encontraram no fortalecimento e ampliação de suas cozinhas comunitárias um caminho para alimentar milhares de habitantes das urbes e, também, para resistir à opressão do capital, sempre ocupado em tirar proveito até mesmo das tragédias, como ficou evidente com o aumento do patrimônio de vários empresários internacionais, durante os anos de pandemia e com a destruição de bairros inteiros de cidades, como São Paulo, pela especulação imobiliária.
Assim, o que era militância com foco em socorro emergencial se enlaçou com o ativismo por um novo modelo de civilização, buscando uma forma de solidariedade que transcendesse o mero assistencialismo e abrisse portas para uma virada de mesa rumo à Soberania Alimentar. Unindo forças com setores da sociedade que já vinham lutando pelo direito ao alimento de verdade, cultivado de modo agroecológico, preparado de forma caseira a partir da bagagem cultural de cada região, livre de venenos, de aditivos artificiais e de exploração do trabalho humano, as redes de cozinheiras e cozinheiros solidários vêm promovendo uma transformação não apenas em seus territórios, mas na estrutura política do país.
Uma prova desse alcance é que a união dessas forças já permitiu duas conquistas importantíssimas: a criação de um programa nacional de apoio às cozinhas comunitárias, com recursos já estabelecidos, e a redefinição dos alimentos que compõem a cesta básica, para que ela contenha comida in natura ou minimamente processada e esteja em sintonia com o que é proposto pelo Guia Alimentar para a População Brasileira – que este ano completa 10 anos de resistência contra as tentativas das forças corporativas de desfigura-lo e segue como uma referência internacional em orientação ao público sobre como as pessoas podem comer o que faz bem a elas, à sociedade e ao planeta.
Plantar, cozinhar, partilhar e saborear
Se você ainda não percebeu a importância dessas medidas, saiba que a nova composição da cesta básica vai ter uma influência direta no mundo rural. Através de políticas públicas, como Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), maiores quantidades e variedades dos alimentos nutritivos da nossa biodiversidade, cultivados pela Agricultura Familiar, vão ser adquiridos pelo poder público. Isso significa que os camponeses e camponesas terão melhores condições de plantar o que faz bem, de cuidar da teia biodiversa da natureza, de obter renda para se manter no campo e de ter uma vida mais saudável, já que o cultivo da maioria dessas espécies não tem uma relação tão marcante com o pacote químico implantado pela Revolução Verde – agrotóxicos, fertilizantes a base de petróleo, sementes transgênicas – que atingiu culturas como a soja, o milho, a cana-de-açúcar, a batata, a laranja e outras que se organizam em imensas monoculturas.
Podemos mencionar algumas das hortaliças e frutas que passaram a contar com os benefícios trazidos pela promulgação da nova cesta básica: azedinha, beldroega, bertalha, capiçoba, capuchinha, carrapicho-agulha, caruru, croá, crem, dente-de-leão, guariroba, jambu, jurubeba, major-gomes, maxixe, muricato, ora-pro-nóbis, palma, puxuri, serralha, taioba, ariá, cará, inhame, abiu, abricó, açaí, araçá, babaçu, bacuri, baru, biribá, brejaúva, buriti, butiá, cacau, cagaita, cajarana, cajá, cambuci, cambuí, camu-camu, cupuaçu, cupuí, cutite, curriola, guabiroba, grumixama, guapeva, guaraná, inajá, ingá, jambolão, jaracatiá, jatobá, jenipapo, juá, juçara, pitomba, pupunha, sapucaia, sapoti, seriguela, taperebá, tucumã, umari, uvaia, uxi e xixá. São delícias nutritivas dos campos, águas e florestas!
Se o campo não planta, a cidade não janta, não é? Já vimos como essa frase é verdadeira pelo brutal aumento da fome que o país sofreu quando o governo agrofascista destruiu os programas de apoio à Agricultura Familiar. Então, podemos dizer que o oposto também é verdadeiro, ou seja, se o campo planta, a cidade janta! O que quero dizer com isso é que, com o aumento do cultivo da biodiversidade pela rede camponesa, quem habita a urbe vai ter mais alimentos para se nutrir – e eles vão precisar ser preparados nas cozinhas, já que virão in natura ou terão passado por muito pouco processamento. É um ponto a mais para quem defende o ato de cozinhar e um ponto a menos para os pouco modestos donos de empresas alimentícias e de delivery.
Se considerarmos que ainda há o efeito do incentivo às cozinhas comunitárias, os pontos a favor da comida de verdade aumentam e a tendência é que exista maior integração entre campo e cidade, o que pode reforçar a resistência contra o processo de empobrecimento alimentar – no qual há a destruição dos laços culturais relativos ao ciclo do alimento e às tradições dos povos nos territórios. Como consequência desse fortalecimento popular frente à tentativa de mercantilização do que é mais sagrado para nós, poderemos ganhar fôlego no setor da saúde, tão comprometido pela aliança inescrupulosa da indústria alimentícia com a indústria de agrovenenos e com a indústria farmacêutica – responsável em grande parte pela deterioração da qualidade de vida humana e pela ameaça à sobrevivência da espécie, em função da destruição ambiental.
Sim, plantar biodiversidade, cozinhar, ter saúde e cuidar da nossa Mãe Terra estão totalmente interligados e ainda garantem algo muito especial: a celebração dos sabores! Não há nada como apreciar uma receita feita com os frutos dos nossos solos bem nutridos, preparada de forma caseira pelas mãos alquímicas de mulheres e homens das diferentes etnias que nos constituem, temperada segundo uma mistura de tradições antigas com uma dose de criatividade curiosa, partilhada em relações fraternas e livres de exploração.
Fiquei de retomar os motivos pelos quais, mesmo em meio à pressão cotidiana das minhas tarefas profissionais, o ato de ir para a cozinha e mergulhar no mundo das panelas é, muitas vezes, o momento de me reequilibrar – sobretudo em relação aos ataques sofridos por parte do desgastante reino das telas, cada vez mais presente como mediador das experiências humanas e indutor de falsas realidades. Acho que, ao manipular os alimentos frescos, desde o banho que é preciso dar neles antes de iniciar qualquer preparo culinário até a hora de saborear, eu me conecto a um universo ancestral, repleto de vida, em que tudo é transformação e tem significado, em que sou um elo dentro da imensa teia cósmica de matéria e energia que circula desde que o mundo é mundo, em que os reinos vegetal, mineral e animal podem se interpenetrar para que, mais uma vez, o fogo transmute os elementos que pulsam ao meu redor e o sol possa nascer, dentro e fora de mim.
Que as cozinhas caseiras – familiares ou comunitárias – possam ser instrumentos de libertação ao invés de opressão, que elas sejam, cada vez mais, espaços de integração, de descoberta e de prazer – e permitam que louvemos a terra viva em que tantas pessoas derramaram seu suor e tantos seres se dissolveram. Que elas nos alimentem o corpo e a alma, nos dando as forças necessárias para construirmos a utopia de uma vida coletiva plena, em que não existam bilionários para declarar a morte de elementos absolutamente essenciais para que continuemos sendo seres humanos.
Susana Prizendt é ativista pró comida de verdade, integrante do MUDA – Movimento Urbano de Agroecologia, do Coletivo Banquetaço, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, além de colaborar com outras organizações sociais e veículos da mídia independente.