Camila Barraca, da Cobertura Colaborativa NINJA na COP30

A COP30, realizada em Belém (PA), recoloca o Brasil diante de uma contradição antiga. Somos o país com a maior biodiversidade do planeta, mas também um dos que mais têm fome. De acordo com a Rede Penssan, milhões de brasileiros vivem com algum grau de insegurança alimentar e 33 milhões não têm o que comer todos os dias. 

Além disso, segundo a mesma pesquisa, uma em cada cinco famílias chefiadas por pessoas autodeclaradas pardas ou pretas no Brasil sofre com a fome (17% e 20,6% respectivamente) – o dobro em comparação aos lares chefiados por pessoas brancas (10,6%). E o quadro fica mais alarmante, quando se incluem os dados de gênero: 22% dos lares chefiados por mulheres autodeclaradas pardas ou pretas sofrem com a fome, quase o dobro em relação a famílias comandadas por mulheres brancas (13,5%).  Ao mesmo tempo, seguimos entre os maiores exportadores de soja, milho e carne. Produzimos muito, mas comemos mal. Exportamos nutrientes, importamos veneno. A terra farta virou negócio, não direito. 

O que falta não é comida, é tempo.

Quando se fala em justiça climática, é preciso lembrar que a crise ambiental nasce também da pressa. Vivemos dentro de uma lógica que exige que tudo aconteça no ritmo das máquinas, que a comida obedeça ao tempo da embalagem, que o alimento esteja sempre pronto, embalado, sem pausa. A pressa virou método e a eficiência, uma espécie de virtude. Nesse compasso apressado, o gesto humano se torna refém do relógio e a terra, exaurida, perde o direito ao descanso.

As escolhas alimentares que moldam o planeta não estão apenas no prato, mas no modo como vivemos o tempo. O ‘delivery do delivery’ que chega ainda mais rápido, o pão ultraprocessado congelado no saquinho, a comida sem memória, tudo revela ao mesmo sintoma: a urgência como medida de valor. A pressa, que já foi estratégia de sobrevivência, virou modo de vida. 

O que aconteceu com o café coado, o feijão de molho, as massas que descansavam sob o pano de prato? 

O excesso nas prateleiras não é fartura, é ausência. A disponibilidade constante de tudo é sustentada pela exploração da terra. Produzimos em escala, mas rompemos o vínculo. Não há sistema alimentar justo sem devolver tempo ao alimento e à vida. O fogo aceso cedo, a panela que ferve devagar, o cheiro que anuncia o ponto certo ensinam outra relação com o tempo.

Pensar a alimentação como parte da justiça climática é recolocar a vida no centro. Cada escolha, do que se planta ao que se serve, carrega uma responsabilidade sobre o futuro. Comer define o que se preserva e o que se destrói e interfere na forma como o planeta respira. Enquanto as conferências discutem metas de carbono para 2030 ou 2050, a natureza segue em ciclos e nos pede paciência. É preciso observar o leite ferver sem derramar, respeitar o tempo do molho da canjica, esperar a pipoca estourar no fundo da panela. São gestos simples que lembram que o futuro é feito de lentidões. O feijão de molho, o café passado no coador, o pão sovado com calma são tecnologias do cotidiano, modos de reconciliação com o tempo. O futuro, como lembra Ailton Krenak, é ancestral.

A pressa prometeu progresso, mas entregou desigualdade e exaustão. Hoje o desafio é inverter a lógica: trocar produtividade por permanência, eficiência por escuta, lucro por relação. Reaprender a cozinhar como quem se reconecta à vida. Nas cozinhas de roça, nos terreiros, nos quilombos, nas feiras e nos quintais, a comida ainda guarda o tempo de quem planta e de quem espera. A justiça climática começa quando entendemos que o tempo gasto para cozinhar é o mesmo tempo devolvido à terra.

Talvez a resposta às emergências climáticas não estejam apenas nas conferências e em grandes debates, mas nas cozinhas que ainda sabem esperar, onde o tempo tem cheiro e o alimento não vem pronto, mas nasce do encontro. Comer é reivindicar o tempo. É recusar a pressa que adoece o corpo e destrói a terra. É insistir em outro ritmo para o mundo. 

Comer é plantar o tempo.

Tempo de deixar a mandioca desintoxicar, o feijão secar ao sol, o milho crescer entre outras espécies, o solo descansar, a chuva decidir voltar. Esse tempo não cabe na lógica de exportação nem no PIB. É o tempo que escapa ao mercado e devolve sentido à vida. É esse tempo que a COP30 precisa ouvir.