Confinada: um diário obrigatório
A HQ “Confinada”, da ciberativista e roteirista Triscila Oliveira e do ilustrador e também roteirista Leandro de Assis, é o diário da nova Peste.
Em 1722 foi publicada a primeira edição de ‘Um Diário do Ano da Peste’, de Daniel Defoe. O livro é uma grande reportagem sobre como foram os dias mais terríveis da epidemia de Peste Bubônica que matou mais de 50 milhões de pessoas. A HQ “Confinada”, da ciberativista e roteirista Triscila Oliveira e do ilustrador e também roteirista Leandro de Assis, é o diário da nova Peste, que assim como no livro de Defoe, não reside apenas em uma doença mortal, mas na forma com que as pessoas lidam de forma egoísta e individualista com um problema coletivo.
Fran Clemente é uma influenciadora com milhões de seguidores, mostrando sua vida “perfeita” para os seguidores enquanto ganha milhares por mês emulando um estilo de vida “gratiluz” que marcas moderninhas tanto amam. A pandemia de Covid-19 vira uma oportunidade de fazer ainda mais dinheiro. Ju, sua empregada, mulher negra, moradora da Rocinha, é compelida a passar a quarentena trabalhando com a patroa para ajudar a família e as amigas.
“Confinada” não utiliza sutileza em suas críticas e isso é foi um dos segredos de sucesso da HQ no Instagram. Todo o círculo familiar e de amizade de Fran Clemente existe para alimentar um pensamento racista, elitista e alienado. Em determinada passagem, vemos a criança Fran mostrando empatia pela filha negra da empregada, sentimento que passa anos sendo confrontado pelo racismo intrínseco à sua família. Mesmo que a influenciadora realmente acredite que não é como o restante de sua família, seus preconceitos de classe e cor são ainda mais ferozes, pois são camuflados em pequenas “boas ações” como pagar salários altos aos empregados ou votar em partidos de esquerda.
É muito esperta a escolha dos escritores em ter usado a linguagem do Instagram para fazer os apontamentos sobre a dinâmica tóxica da rede. Mais que apenas um trampolim para explicar a personalidade narcisista de uma das protagonistas, a rede social é um personagem central dentro da trama, sendo uma forma de comunicação mediadora entre o leitor e as personagens. Os comentaristas puxa-saco, os críticos de ocasião e as marcas fazendo mea-culpa estão presentes na representação fiel de como funciona a rede. Será que alguns leitores se reconhecem?
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A doméstica Ju surge como uma personagem identificável de pronto, fazendo as vezes de antagonista da branca egocêntrica. Como tantas mulheres negras e pobres, Ju é dona de grande inteligência, mas com poucas oportunidades, precisa aguentar humilhações diárias para sobreviver. Através dela conhecemos histórias de outras iguais e também o caminho que muitas pessoas pretas têm seguido, ao conhecer influenciadores que entendem e traduzem as agruras do que se passa no dia a dia de seus iguais. Há citações a Emicida, Tia Ma, Gilberto Porcidonio, Preta Rara,Winnie Bueno, Silvio Almeida, Ad Junior, e outras importantes figuras negras que oferecem contraponto ao mar de influenciadores que tratam o público como massa imbecilizada.
Se a pandemia ajudou Fran a potencializar ganhos financeiros, também graças à tragédia houve um despertar de revolta da empregada negra que enxerga a desigualdade se aprofundar. Enquanto pretos morrem por falta de ar em barracos apertados, brancos ricos fazem festas e espalham vírus no terraço de suas mansões. Essa situação leva a um ponto de virada na vida de ambas e a redenção de uma delas gera uma inevitável satisfação.
A HQ vem com duas capas variantes. Uma com a Ju e a outra com a Fran. Algumas das páginas são quadros inteiros e generosos, ressaltando os traços fortes e característicos de Leandro Assis. Um diário obrigatório sobre duas realidades distintas dividindo a mesma dimensão. Uma boa mistura de entretenimento e documento histórico.